PESQUISA

 

Espaço social urbano e doença mental: um estudo de área ecológica*

 

 

Naomar de Almeida FilhoI; Vilma Souza SantanaII

IDepartamento de Medicina Preventiva da UFBA
IIDeportamento de Medicina Preventiva da UFBA

 

 


RESUMO

A hipótese de uma correlação positiva entre densidade demográfica e níveis de psicopatologia foi testada, a partir de um estudo de área ecológica realizado em um setor de baixa renda da Região Metropolitana de Salvador-BA. Taxas de prevalência de doença mental em adultos e em crianças, além de níveis de sintomatologia psiquiátrica, coletadas por área, através de um inquérito transversal, com uma amostra representativa de 1 549 adultos e 848 crianças, foram tomadas como indicadores da variável dependente. Densidade externa e densidade interna, tempo de residência urbana e renda média per capita, medidas por meio de coleta direta na mesma amostra, foram utilizadas como variáveis independentes. A análise de regressão múltipla revelou que apenas renda exercia um efeito significante, porém no sentido oposto ao previsto, sobre as equações de todas as variáveis dependentes. O incremento no R2, que variou de 15 a 71%, deveu-se principalmente a variáveis não incluídas nas hipóteses, como média de idade, número de residentes por família e proporção de migrantes. As hipóteses deste estudo, em resumo, são refutadas pelos seus resultados, devendo-se interpretar tais achados basicamente em termos das suas objeções metodológicas.


ABSTRACT

The hypothesis of a psitive correlation between population density and levels of psycopathology was tested with an ecological study carried on in a low-income sector of the metropolitan region of Salvador — Bahia, Northeast Brazil. Prevalence rates of mental illness in children and adults, as well as scores of psychiatric simptomatology (collected by means of a cross-sectional survey with a representative sample of 1 549 adults and 848 children) were taken as indicators of the dependent variable. External and internal density, time of urban residence and average per capita income, measured directly from the same survey, were employed as independent variables. Multiple regression analysis showed that only income had a significant effect, but in the opposite direction, over the equations of all dependent variables. The increase in the R2, which varied from 15 to 71%, was due mainly to variables not included in the hypothesis, such as average age, number of residents per dwellers and percent of migrants. The hypothesis of this study, in sum, are not confirmed by data, and such findings may be interpreted basically in terms of methodological problems of the study design.


 

 

INTRODUÇÃO

Dentre os principais fatores que se supõem diretamente associados ao estado de saúde das populações urbanas, destaca-se a densidade demográfica, tomada principalmente como elemento mediador entre certos determinantes sócioeconómicos e diversos quadros patológicos. A alta concentração de indivíduos em ambientes restritos tem sido relacionada principalmente com a mortalidade infantil e doenças infecto-contagiosas27, associação interpretada basicamente como resultante de uma maior facilidade de transmissão. Porém, a maior parte dos estudos sobre as conseqüências da alta densidade populacional sobre a saúde tem destacado mais as condições associadas ao estresse, como por exemplo tensão arterial15, estresse propriamente dito5 e indicadores de saúde mental14,22. Em geral, tais estudos têm concluído que a densidade demográfica encontra-se relacionada a níveis de sintomatologia associada a estresse.

Conforme acentua Knowles18, ampliando uma discussão iniciada por Cassel7, a maioria dos estudos que conformam a hipótese geral de um efeito nocivo da concentração populacional sobre a saúde emprega áreas ecológicas (bairros, cidades, e até países) como unidades de análise, ao invés de indivíduos. Além disso, segundo Baldassare3, aquelas investigações não distinguem entre densidade interna, ou concentração populacional no interior do domicílio, e a densidade populacional externa, referida ao número e concentração de habitantes de uma dada área geográfica.

A maior parte das investigações sobre essa questão foram realizadas em países desenvolvidos, de condições sócio-econômicas e culturais bastante diversas dos países do Terceiro Mundo, justamente aqueles onde, em função das características do processo de urbanização dependente, a densidade demográfica encontra-se mais claramente associada a outras condições geradoras de estresse social. Investigações completadas em Hong-Kong21, e em Singapura16 apresentam sérios problemas metodológcos e, em função de resultados inconsistentes e de deficiente análise de dados, pouco contribuem para a compreensão do problema. Até onde se sabe, inexistem estudos específicos sobre o tema completados na América Latina.

Evidentemente, trata-se de uma questão da maior importância para a pesquisa em Saúde Coletiva, que está por merecer um tratamento cuidadoso, uma vez que é pouco defensável a simples transferência do conhecimento adquirido sobre o assunto nos países desenvolvidos. Nestes, as condições de habitação e a organização do espaço social urbano são bem diversas em comparação com os países dependentes.

Além disso, é interessante registrar, nessa literatura específica, a falta de sistematização do conhecimento sobre o tema, o que contra-indica mais ainda a adoção e o transplante das conclusões alcançadas por tais investigações para o nosso meio.

A partir de modelos explicativos capazes de organizar resultados empíricos, o presente trabalho pretende testar, em uma área metropolitana de crescimento rápido e crescente adensamento populacional, localizada no Nordeste do Brasil, algumas hipóteses específicas sobre o tema em questão.

 

QUADRO DE HIPÓTESES

As variáveis densidades interna e externa podem representar manifestações demográficas de diferentes processos sociais, diversamente valorizados por referenciais teóricos antagônicos. Para uma abordagem funcionalista da questão urbana, a raiz do crescente adensamento populacional nas metrópoles do Terceiro Mundo encontra-se em um processo de urbanização provocado pela inevitável modernização, ou mudança cultural, das populações nos países em desenvolvimento. A conexão entre esse processo global e os níveis de saúde mental-individual tem sido pensada tanto em termos de problemas adaptativos a uma nova "cultura", quanto como reação ao estresse ambiental das grandes cidades8. Neste modelo explicativo, a variável densidade externa desempenha um papel fundamental, supondo-se que o seu efeito se exerce diretamente, como um tipo de estresse específico da excessiva aglomeração populacional, ou indiretamente, amplificando o conjunto de estressores típicos do meio supostamente hostil e agressivo da cidade. A partir desse referencial, é possível derivar as seguintes hipóteses:

Hipótese 1: correlação positiva entre densidade externa e níveis de sintomatologia psiquiátrica;

Hipótese 2: correlação positiva entre exposição ao estresse urbano, estimada pelo tempo de residência em área urbana, e níveis de sintomatologia psiquiátrica.

Por outro lado, para um referencial teórico histórico-estrutural, o processo social de maior interesse consiste na formação de um proletariado urbano, com um volumoso exército industrial de reserva, condições fundamentais para o desenvolvimnto capitalista dependente nesses países. Tanto a reserva industrial quanto a maioria do proletariado urbano encontram-se submetidos a um processo de pauperização que resulta em péssimas condições habitacionais, traduzidas em geral por uma alta densidade interna. O papel fundamental passa a ser desempenhado pela variável renda, prevendo-se repercussões diretas sobre a saúde mental dos indivíduos, ou indiretas, medidas pela variável densidade interna. Este modelo converge para as seguintes hipóteses:

Hipótese 3: correlação negativa entre renda e níveis de sintomatologia psiquiátrica;

Hipótese 4: correlação positiva entre densidade interna e níveis de sintomatologia psiquiátrica.

Ambos os modelos, bem como as hipóteses derivadas, encontram-se grosseiramente representados pelo diagrama da Figura 1.

 

 

METODOLOGIA

A Região Metropolitana de Salvador, capital do Estado da Bahia, constitui-se atualmente na maior concentração urbana da Região Nordeste do Brasil (pop = 1 ,6 milhões Censo 1980). Sua densidade demográfica se intensificou nas três últimas décadas, quando as taxas de crescimento atingiram até 4% ao ano. Entre 1969 e 1980, a Universidade Federal da Bahia desenvolveu, em uma área urbana de baixa renda (que passaremos a chamar de 0 *) do município de Salvador, um programa de saúde comunitária, que propiciou a realização de vários estudos sociológicos e epidemiológicos. Em 1975, foi criado o Programa de Saúde Mental, destinado a desenvolver modelos alternativos de prestação de assistência psiquiátrica na área. O presente trabalho analisa dados produzidos pelo conjunto de investigações epidemiológicas sobre desordens mentais preliminares à implantação de tal programa. À época da coleta de dados, o bairro de 0* contava com cerca de 60 000 habitantes, ocupando pouco mais de 12 000 unidades domiciliares. Sua população, de composição predominantemente jovem, caracterizava-se também por baixos níveis de renda per capita, atividade produtiva irregular, precários níveis de escolaridade, habitação e saúde. Cerca de 60% provinham do interior do Estado, principalmente do Recôncavo Baiano (região que circunda a RMS).

Um mapa resultante de levantamento aerofotogramétrico do bairro foi dividido em 936 subáreas de igual superfície. Mediante uma tabela de números aleatórios, sortearam-se 39 destas subáreas, abrangendo 515 domicílios habitados por 2 397 pessoas acima de 4 anos. Isto perfaz uma amostra de aproximadamente 4% da população total; a análise de representatividade desta amostra revelou um desvio amostrai de 0,09%, estatisticamente não-significante. O tipo de amostragem por superfície, de base aleatória, possibilitou a análise dos dados em um sentido ecológico, tomando-se como base física cada uma das subáreas que a compunham.

A coleta de dados, devido às especificidades do quadro epidemiológico das doenças mentais para a infância e a idade adulta, foi realizada a partir de instrumentais distintos, embora o desenho fosse análogo. Assim, dados gerais, relativos a aspectos sociais, demográficos e econômicos foram obtidos para cada unidade familiar enquanto que para cada indivíduo acima de 5 anos eram tomadas informações relativas ao seu estado mental, mediante a aplicação de dois instrumentos especialmente desenvolvidos para a detecção de suspeitos de doenças psiquiátricas. O QMPA (Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adultos), para sujeitos de idade igual ou acima de 15 anos26, e o QMPI (Questionário de Morbidade Psiquiátrica Infantil), para as crianças entre 5 a 14 anos1.

O QMPA se compõe de 37 questões estruturadas com respostas sim/não (1/0) e seis questões ponderadas com o valor do escore de corte (valor de escore a partir do qual se considera o indivíduo como suspeito, determinado por procedimentos de validação) que abrangem aspectos relativos a tratamento psiquiátrico, uso de drogas, alcoolismo, epilepsia, crises de loucura e incapacitação para o trabalho por problemas emocionais. Todos os indivíduos que obtiveram escores compatíveis com os níveis de suspeição foram incluídos na segunda etapa do estudo, que compreendia a confirmação de sua condição diagnóstica. A fim de evitar o "bias da falsa positividade, uma subamostragem proporcional de 8% dos não-suspeitos foi também selecionada para exame psiquiátrico. Os escores obtidos no QMPA eram desconhecidos tanto pelos psiquiatras quanto pelos entrevistadores, reforçando o caráter duplo cego da avaliação. A taxa de suspeição foi da ordem de 22%, e o desempenho do instrumento plenamente satisfatório, com 93% de sensibilidade, 72% de especificidade e uma taxa de classificação incorreta de 12%.

Para as crianças, o procedimento foi semelhante. Psiquiatras com experiência no atendimento infantil realizaram entrevistas diagnósticas com todas as crianças com escores no QMPI indicativos de suspeição, bem como um grupo nao-suspeito, possibilitando deste modo a validação do instrumento que, por se revelar bastante sensível no diagnóstico deste grupo etário, foi capaz de substituir as entrevistas ao modo do grupo adulto. O fluxograma da coleta de dados pode ser visto na Figura 2. As recusas observadas em 19 domicílios, abrangendo cerca de 30 indivíduos, e 15 pessoas que se recusaram a responder aos questionários de detecção, não chegaram a comprometer os resultados da pesquisa.

 

 

As variáveis dependentes deste estudo, indicativas da presença de doença mental em adultos e crianças, foram média de prevalência dessas enfermidades e média dos escores (QMPA e QMPI) obtidos para ambos os grupos, em cada uma das áreas, tratadas como medida contínua em todas as análises. Como variáveis independentes considerou-se: a) densidade externa, b) densidade interna, c) tempo médio de residência urbana, d) renda média mensal per capita. A densidade externa foi definida como a razão do número de habitantes de cada área estudada pela sua respectiva superfície, medida em quilômetros quadrados. A densidade interna foi considerada como a razão entre a área construída de cada família (m2) e o número de pessoas residentes. Deve-se notar que, dessa forma, o indicador da variável densidade interna inverte o sinal da correlação predita na hipótese 4.

A inexistência de mensuração direta de área domiciliar construída no banco de dados, levou a que esta fosse estimada a partir da razão-metragem média domiciliar (aproximadamente 35 m2, de acordo com Neves & Brasileiro24, por número de membros do grupo familiar. Também como variáveis independentes foram tomados o tempo de residência em área urbana, expresso em anos, e a média da renda familiar per capita, em salários mínimos. Devido à natureza ecológica do presente trabalho, vale lembrar que suas variáveis foram construídas a partir dos dados dos indivíduos residentes nas diversas subáreas. Como em maioria estes eram de natureza contínua, a média foi calculada e considerada como um "atributo" das áreas. Exceção feita à migração, cuja característica nominal levou a que fosse definida como proporção de migrantes residentes em cada área.

Para o teste das hipóteses em questão, empregaram-se, em primeiro lugar, análises de correlação linear entre todas as variáveis da pesquisa. Em seguida, com a finalidade de avaliar o efeito isolado de cada uma das variáveis independentes, utilizaram-se técnicas de regressão múltipla. As análises preliminares empregaram testes de significância dos coeficientes de Pearson e, para regressão múltipla, utilizou-se o teste de significância da adição de variáveis ao modelo. Todos esses procedimentos foram realizados com os programas Pearson Correlation e Regression do SPSS25, na unidade DEC-10 do Centro de Processamento de Dados da UFBA.

 

RESULTADOS

A densidade externa variou de 4,4 a 70,8 habitantes por km2 e a densidade interna de 3,4 a 17,5 m2 por habitante. A prevalência de doenças mentais, global, em adultos foi de 20,0%, oscilando nas áreas entre 0 e 50%. Nas crianças, a média de prevalência se situou em torno de 11%, também com grande variação por área. Isto se explica pela também intensa dispersão do número de habitantes por cada uma das áreas.

A tabela 1 mostra os resultados da análise de correlação linear entre as variáveis dependentes (prevalência e escore dos adultos, prevalência e escore das crianças) e variáveis independentes selecionadas. Observa-se que a variável independente da Hipótese 1, Densidade Externa, não se correlaciona com nenhum dos indicadores de saúde mental considerados. A variável Média do Tempo de Residência Urbana apresentou uma correlação positiva (r = + 0,42) e significante (p < 0,01), com a Prevalência de Doenças Mentais em Adultos, sugerindo, a esse nível e para esse indicador específico, evidências em apoio à Hipótese 2. A variável Renda Média Familiar per Capita, por outro lado, apresentou uma forte correlação positiva (r = + 0,48; p < 0,01), com a Prevalência de Doença Mental Infantil, no sentido oposto ao previsto na Hipótese 3, portanto. Finalmente, em relação à variável Densidade Interna, elemento da Hipótese 4, não se observaram correlações significantes com qualquer dos indicadores das variáveis dependentes.

Ainda na tabela 1, podemos notar que, entre os indicadores de saúde mental, apenas Média de Escores das Crianças correlaciona-se com a Prevalência de Doença Mental Infantil (r = + 0,68; p < 0,005). Em segundo lugar, verificamos que outras variáveis não constantes das hipóteses também apresentam correlação com indicadores da variável independente, orno é o caso de Proporção de Migrantes com Média de Escores de Adultos (r = + 0,31; p < 0,05), Média de Idade dos Adultos com Prevalência de Doença Mental Infantil (r = + 0,49); p < 0,005) e Media de Idade e Média de Escores das Crianças (r = + 0,36; p < 0,01). Em relação à primeira questão, a ausência de maior intercorrelação entre os indicadores das variáveis dependentes recomenda-se a manutenção de todos estes indicadores nas análises de segundo nível que se seguem. Em relação à segunda questão, a análise de correlação linear indica a necessidade de se considerar o possível efeito confundível das variáveis "estranhas" às hipóteses.

As tabelas seguintes apresentam os sumários das análises de regressão múltipla sobre os indicadores de Saúde Mental, forçando-se em cada modelo, primeiramente, as variáveis independentes das hipóteses em questão, incluindo-se em seguida os efeitos das putras variáveis presentes no banco de dados. Na tabela 2, observa-se que, dentre as variáveis independentes, apenas Renda Média Familiar per Capita contribui significativamente para o R2 referente à Prevalência de Transtornos Mentais em Adultos (que indica o percentual de explicação da variância da viriável dependente proporcionado pelo modelo de regressão considerado). A variação do R2 atribuída a essa variável situa-se em torno de 10%, atingindo níveis borderline de significância (0,05 < p < 0,1). De fora do quadro de hipóteses, apenas Média de Idade das Crianças conseguiu níveis de significância que justificaram a sua inclusão no modelo que, em termos globais, explica 29% da variância deste indicador de saúde mental dos adultos.

 

 

A tabela 3 mostra que nenhuma das variáveis independentes contribui, significantemente, para a regressão sobre as Médias dos Escores dos Adultos, apesar da posição relativa da Renda Média Familiar per Capita. Em relação às outras variáveis, podemos notar que somente Proporção de Migrantes acrescenta poder explicativo a este modelo de regressão, a níveis borderline de significância (0,05 < p < 0,1).

 

 

As tabelas 4 e 5 apresentam as análises de regressão múltipla sobre os dois indicadores de morbidade psiquiátrica infantil. Mais uma vez, Renda Média Familiar per Capita apresenta-se como a variável independente mais importante para o modelo de regressão considerado. No modelo que tem o indicador de prevalência como variável dependente, Renda chega a explicar 23% da variância, a nível de significância de 5%. Dentre as variáveis do banco de dados, destacam-se Média de Adultos por Família e Média de Idade dos Adultos que entram na equação adicionando, em conjunto, 46% de variação ao R2 (que aí atinge seu ponto mais alto, de 71 %). No que se refere ao modelo de regressão sobre Média dos Escores das Crianças, Renda se constitui na variável mais importante dentre todas as componentes do banco de dados, sendo responsável sozinha por metade da variação no R2, a níveis de significância estatística (p < 0,05). Também em relação a este indicador, nota-se o efeito significante da adição de Média de Adultos na Família, responsável por uma parcela de 13% para um R2 global de 36%.

 

 

 

 

DISCUSSÃO

O resultado principal desta investigação é que, em resumo, todas as suas hipóteses foram refutadas. Aquelas variáveis que, no nível preliminar da análise de regressão linear, apresentam correlações significantes com alguns indicadores de saúde mental tiveram o seu efeito isolado completamente apagado na análise de regressão múltipla, controlando-se o efeito de outras variáveis. O caso de Renda Média per Capita é ainda mais intrigante, na medida em que, se na análise preliminar revelava uma correlação de sinal oposto ao da hipótese apenas com uma das variáveis dependentes, consistentemente aparece na regressão múltipla como a mais importante para a predição de todos os indicadores de saúde mental. A análise de regressão múltipla, nesse caso, reforçou ainda mais o achado de uma correlação no sentido contrário ao esperado.

A interpretação dos achados do presente estudo passa pela consideração dos seus problemas metodológicos em potencial. Em primeiro lugar, devemos examinar possíveis objeções referentes à definição de variáveis e ao próprio processo de coleta de dados. Por um lado, as medidas das suas variáveis independentes apresentam sérias limitações. Densidade interna, por exemplo, utiliza uma razão com um denominador constante, o que seguramente reduziu a variação da sua medida. No global, nada existe em tais indicadores além de uma relação indivíduo/espaço quantitativa, simplista, que impossibilita uma aproximação de natureza qualitativa à questão proposta. Dessa forma, não se consegue tocar na questão do sentido interpessoal do espaço4, provavelmente determinante do caráter estressor ou protetor da densidade externa e da aglomeração intrafamiliar ou densidade interna. Por outro lado, devemos indicar pelo menos uma limitação mais importante das medidas das variáveis dependentes empregadas. Sem dúvida a realização de um estudo de dois estágios implica uma expectativa de variação por área dos indicadores de desempenho (sensibilidade e especificidade) dos instrumentos de screening. Assim, a variação nas taxas de prevalência observada poderá ser mais uma função do desempenho de distintos aplicadores do que propriamente determinada por diferentes características demográficas de cada área. A utilização simultânea de médias de escores como medidas acessórias da variável independente certamente terá reduzido esse problema. Apesar dessas objeções, comparando-se esta com outras investigações similares, que predominantemente utilizam dados secundários ou registros de indivíduos em tratamento5, reconhece-se uma nítida superioridade do método (epidemiológico-clínico) de medida da variável dependente na presente pesquisa.

Em segundo lugar, precisamos chamar a atenção para problemas metodológicos relativos ao próprio desenho de investigação. Trata-se de um estudo de área ecológica, tipo corte-transversal. Evidentemente, o caráter transversal do estudo, que se baseia em dados coletados ao mesmo tempo, impede qualquer derivação de conclusões etiológicas. Além disso, esse desenho impossibilita a redução ao âmbito individual de padrões observados ao nível agregado, devido ao que se denomina em epidemiologia de "falácia ecológica"23. Entretanto, a relativa homogeneidade e pequeno tamanho das unidades espaciais consideradas reduzem bastante esse problema no presente estudo, especialmente comparando-se com a maioria das outras investigações que utilizam países12, regiões metropolitanas11, cidades10 ou bairros inteiros14,20 como unidade de análise. Nesse aspecto, apenas os trabalhos de Baldassare3 e de Brogan & James6, respectivamente em áreas censitárias e blocos residenciais, utilizam unidades espaciais de dimensões comparáveis às do presente estudo.

Em terceiro lugar, deve-se contemplar problemas referentes à própria estratégia de análise de dados empregada. Na medida em que variáveis demográficas por definição compõem processos sociais extremamente complicados e multiformes, é de se esperar que o seu efeito sobre a saúde se exerça também de modo bastante complexo, influenciado por numerosas variáveis confundíveis e/ou interativas em potencial. A técnica de análise de dados, empregada pelo presente estudo, regressão linear múltipla, permite controlar o efeito de covariáveis em um dado modelo matemático. Porém é possível que, por um lado, muitas das variáveis analisadas não fossem enquadráveis dentro dos pressupostos dos modelos de regressão e que, por outro lado, algumas delas manifestassem uma função não-linear17.

Consideremos a possibilidade de que todas essas objeções metodológicas tenham sido superadas e que, portanto, a refutação das hipóteses desta pesquisa não seja apenas um artefato metodológico e sim trata-se de um achado válido. Nesse caso, os nossos resultados seriam compatíveis com aquelas investigações que, apesar do seu desenho ecológico, mostram um maior cuidado analítico3,13, e com aquelas que utilizam o indivíduo como unidade de análise4,21. Alguns estudos10,12,27 concluíram que a densidade externa seria um fator mais fortemente correlacionado com indicadores "psicossociais", enquanto que outros9,11,14,19,20 encontraram efeitos mais significativos determinados pela variável densidade interna. Porém, o volume de problemas metodológicos de tais investigações, advindos principalmente do pouco poder dos desenhos empregados e, às vezes, do uso de estratégias analíticas inadequadas, aconselha muita cautela na consideração dos seus achados.

Boots5 conclui uma detalhada revisão da literatura sobre esse assunto, da seguinte forma: "os efeitos de densidade e aglomeração até agora identificados parecem relativamente triviais". A interpretação de tal síntese, que evidentemente se aplica a estes resultados, poderá levar a uma de três possibilidades: a) os níveis de aglomeração/densidade detectados nas investigações têm sido baixos ou de pouca variação interna, incapazes, portanto, de produzir alterações psicopatológicas; b) a densidade demográfica é uma fonte potencial de estresse social, porém os seres humanos têm sido histórica e culturalmente capazes de adaptar-se ao seu impacto; ou c) em oposição à predição fundamental dessa linha de investigação, densidade interna ou externa simplesmente não tem a ver com a saúde mental dos indivíduos. A refutação das hipóteses do presente estudo obviamente não implica uma negação do potencial explicativo dos modelos teóricos que lhes serviram de base. Apenas indica-se que os processos sociais em questão podem exercer efeitos sobre a saúde mental que não passam pelos fenômenos relacionados à densidade demográfica (como mediadores). Evidentemente, mesmo para a compreensão de achados negativos, é necessário a realização de pesquisas que, a partir de um referencial teórico e metodológico sempre mais rigoroso, possam contribuir para um conhecimento mais aprofundado de tão relevante questão.

 

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Recebido para publicação em 05.08.86.

 

 

* Estudo desenvolvido pelo Programa de Estudos Epidemiológicos e Sociais do Departamento de Medicina Preventiva da UFBA. Convênio FINEP/UFBA.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br