Ensino de nível médio — perspectiva dos serviços

 

 

Isabel Santos

Enfermeira-Sanitarista, Membro do Grupo Técnico do Acordo Interministerial MS/ME/MPAS/OPS

 

 

No mito Hebraico-Cristão do Criação, o homem é criado.

O trabalho de criação está reservado ao Demiurgo, que molda-lhe o corpo e, com um sopro, infunde-lhe consciência, temor e conseqüentemente moral.

O que se passa depois com essa criatura e em torno dela exige-lhe somente adaptação, que será alcançada na dependência de dotes e esforços pessoais.

Pari passu com as sucessivas transformações ocorridas no trato do homem com o mundo físico e com os grupos humanos, sucederam-se umas às outras elaborações racionais, de tal sorte que o mistério da "criação" foi se esmaecendo na cogitação de criaturas empenhadas no domínio da natureza e na busca de riquezas.

Contudo, pode ser valioso relembrá-lo quando, ao buscar-se além da aparência a explicação de um fenômeno, se perca à falta da luz da história do fazer e do pensar humanos.

Não se surpreende, por exemplo, ao reconhecer-se, mal percebido em atividades e doutrinas contemporâneas, o mesmo caráter idealista do referido mito.

Diz-se, por exemplo, que o homem deve incorporar conhecimentos e habilidades específicos para integrar-se como "trabalhador" em sua sociedade.

O homem de que se fala é qualquer um, de qualquer tempo e lugar, com pré-condições inatas para aquela incorporação através do processo educacional.

Pouco importa o que de fato ele é hoje, que sociedade é a sua e de que natureza o trabalho a que ele será submetido nela.

Tudo se passa como se esse trabalhador se relacionasse com os objetos e o produto do trabalhador da mesma maneira que seus ancestrais antropomorfos, exceto no que concerne à dicotomia trabalho intelectual/manual e sua correspondente, teoria/prática.

São conhecidos seus efeitos na definição de objetivos da educação, do seu locus, de seu tempo, de seu conteúdo e métodos.

Reproduzindo o mito da criação, confina-se o homem para uma nova gestação nas Universidades, que o recriam para uma sociedade que, apesar de tudo, se lhe apresenta, hoje, como o mundo físico se apresentava ao Neanderthal.

Ele ignora tudo sobre ela, mas penetra-a como novo demiurgo.

O que dizer dos que não têm a mesma oportunidade? Jogados precocemente de uma experiência subsistencial a outra, vêem não só a natureza, mas seu trabalho fora de seu controle. Conhecimentos e habilidades podem ser-lhes úteis, mas não indispensáveis. Resignam-se às leis naturais e submetem-se às leis sociais, por instinto da sobrevivência.

Entre o indivíduo e os grupos sociais interpõem-se instituições e do mundo físico ele está apartado pelo estatuto da propriedade.

Essa dupla alienação perverte seu trabalho, diferenciando-o essencialmente: ele está alienado dos meios de produção assim como do produto de seu trabalho.

Ele se torna uma fração mais e mais insignificante no processo de trabalho, cujo inteiro teor ele conhece e domina menos e menos, na medida das transformações das forças produtivas.

Ao mesmo tempo, escapam-lhe as correlações entre essa realidade mal percebida e as diferenças sociais com que ele convive no cotidiano e que ele foi levado a atribuir a própria inoperância no aproveitamento de seus talentos.

É verdade que o simples fato de "sofrer" esse trabalho pode despertar graus de consciência que, entretanto, raramente são bastante para romper a resignação idealista. Sobretudo se se considera que, assediado pela oferta de bens financiados, é-lhe concedida a participação nas benesses da economia monetária e de mercado.

Não lhe ocorre que ele pertence, com seus companheiros de infortúnio, a uma classe que, se organizada, constitui-se na força apropriada para confrontar-se com a outra classe, a dos proprietários, por mais que esta se esforce hoje por definir-se também como trabalhador e definir o capital como patrão inevitável de todos.

Os que, graças a cursos e treinamentos, conseguem funções mais "nobres" no processo de trabalho e melhor performance social, mais comumente o usufruem individualmente, tornando-se seus próprios heróis, modelos bem aproveitados pela ideologia burguesa dominante.

O quadro é ainda mais intrigante, se nele se destacar o componente de serviços dessa organização produtiva e, particularmente, os serviços em que ainda não estão claramente caracterizados os fatores capital e trabalho.

Entre os últimos estariam principalmente aqueles providos diretamente pelo Estado.

Inúmeros fatores amortecem ali os choques provocados pelas diferenças, que lançam, por isso, pouca luz sobre os caminhos da conscientização.

Um desses fatores está em que o Chefe imediato é tão empregado do Estado quanto o mais humilde servidor e seus mais eminentes colegas, os Presidentes da República, do Congresso e do Supremo Tribunal.

O Estado é da sociedade, como um todo. Colocar-se a seu serviço é servir a esta última. E a contradição jamais está presente nos mais acirrados conflitos, que refluem sempre os reajustes salariais, única causa e único fim dos referidos enfrentamentos entre funcionários e autoridades públicos.

Mais importante porém do que a presença do Estado está a dificuldade para caracterizar os serviços em geral como objeto de troca, de mesma significação que uma mercadoria, para a economia de mercado. Assim, como caracterizar a alienação do produtor em relação ao seu produto, quando este é um ato que se esgota no exato momento em que está sendo executado, realizando ao mesmo tempo seu eventual "valor" e sua utilidade para o consumidor? Quem foi despojado do quê? Os meios de trabalho, ainda que sendo em geral propriedade de outrem, aparentemente não se incorporam nesse ato como um bem, em que uma fração de seu valor se agrega a outros valores, um dos quais o tempo de aplicação da força de trabalho do trabalhador. No ato do serviço eles simplesmente instrumentam esse trabalho.

Quando um serviço é vendido com lucro, aparentemente este se realizou na troca e não na produção: conseguiu-se vendê-lo por um preço maior do que o que se pagou pelos seus componentes, inclusive a mão-de-obra.

Uma das conseqüências da aparente inexistência da alienação e da contradição capital/trabalho, associada à presença do Estado, está na caracterização da contradição prestador de serviço/usuários como essencial no setor terciário da economia de mercado. Como, além de tudo, no campo da saúde interfere ainda a consciência técnico-científica da necessidade do usuário, nesse setor se definem metas e se planeja a produção de serviços segundo critérios não mercadológicos imperativos e alheios à disposição de produção e de consumo dos agentes que nele se envolvem.

Concentram-se esforços para conscientizar o usuário de suas próprias necessidades e para transformá-lo na força que se contraponha ao produtor de serviços: se este é privado-lucrativo, privando-o ou reduzindo-lhe o lucro; se não lucrativo, (Filantrópico ou Governamental), moralizando-o funcional e tecnicamente.

Prevalece sempre nessa postura a convicção da utilidade do serviço para o usuário, individual e/ou coletivo, em detrimento da avaliação dos mecanismos em jogo na produção do ato útil. Enquanto se esgotam tempo, energia, meios de comunicação preparando a população, (que população? a rica? a pobre? a trabalhadora? a marginal urbana? rural?. .), relega-se o agente de saúde ao esquecimento.

Para seu preparo técnico, por que mais do que treinamento intensivos? Seu prepraro político-social? Desnecessário e indesejável! Já não bastam os imperdoáveis conflitos e sua mobilização sindical, atentando justamente contra os interesses do usuário?

No entanto, por anos e anos essa postura tem-se provado irrealista.

O compromisso com o usuário tem sido traído pela prestação de serviços de má qualidade, independentemente da qualidade e independentemente da qualidade dos treinamentos. De outro lado, esse compromisso jamais impediu que os conflitos sociais espocassem mais e mais, freqüentemente, precisamente entre trabalhadores de saúde e instituições prestadores de serviços e não entre usuários (indiscriminados) e prestadores (também indiscriminados, como se Estado, investidor privado, sociedades filantrópicas, atendente, enfermeiros, médicos, todos formassem um só corpo e espírito).

Afortunadamente, tanto o analista como o formulador de políticas de saúde, o planejador/administrador do sistema prestador de serviços e o educador podem hoje apoiar-se em outros fundamentos teóricos, que não são de hoje, senão que do século passado.

Foi então que se subverteram os termos do mito da criação: o homem se cria a si mesmo, a partir do contato com um mundo que se lhe apresenta e que ele "trabalha" para subsistir.

Circunstancialmente pode ser também valioso remontar-se a um tal pensamento e buscar-se seu efeito sobre a educação.

Primeiramente, tem-se que admitir que não há pré-condições ou dotes pré-infundidos no indivíduo, tudo dependendo do espaço em que ele está e do estágio em que se encontra sua sociedade.

Relacionados com este último estão os fatores que favorecem ou impedem o desabrochar do homem.

Em segundo lugar, não cabe resignação, pois o trabalho que garante a sobrevivência do indivíduo necessariamente o leva também, a propulsionar a superação do estágio em que se encontra sua sociedade.

Fica anulada a distinção entre o fazer técnico (manual e/ou intelectual) e o fazer história.

Desfazem-se as dicotomias referidas acima.

O homem é ser histórico, isto é, gerado na história que por sua vez ele próprio gera.

O que mudaria com respeito ao setor saúde?

Primeiramente, não poderia continuar prevalecendo a polaridade prestador de serviços/usuários, que concerne à teleologia dos atos humanos.

Vimos que concretamente em saúde os fins não são os mesmos para aqueles dois pólos.

Em seu lugar energeria a preocupação com o estado das relações de trabalho na produção dos serviços e de suas correlações com as relações de produção da economia de mercado como um todo, mesmo que as categorias capital e trabalho não estejam claramente postas. Quando o interesse do capital pode encontrar satisfação no setor, ele se faz presente. Quando não, seja qual for o "proprietário" dos meios de trabalho — Estado, filantrópicas, cooperativa médica, a tendência é, ainda assim, o assalariamento do trabalhador.

Este, não o usuário, passaria a ser objeto preferencial das preocupações educacionais, não se podendo relegá-lo a uma preparação limitada ao mínimo de habilidades que sua tarefa específica vai exigir, com o que se tem reforçado sua alienação política e social. Se se trata de avançar, a participação aleatória do usuário é sempre menos operativa do que a do trabalhador, que participa, inevitavelmente, no mínimo para reivindicar salário. E, se conscientizado de todo o processo de trabalho em que está metido, não é impossível que sua participação vá além, exigindo condições condignas de trabalho, incluindo aí equipes, meios, conhecimentos, produtividade, resolutividade, humanização do atendimento e assim por diante.

Além disso, identificando-se com os demais assalariados, o trabalhador ganharia consciência de que pertence a uma classe social que não participa da história simplesmente como "benfeitora da população usuária" e como consumidora pobre dos bens que pode adquirir com seus exíguos salários.

A própria prática cotidiana pode contribuir para essa conscientização, embora a experiência venha demonstrando que o impacto de mil e um mecanismos alienadores anula esse efeito espontâneo do trabalho em si.

Paralelamente, o processo educacional regular ou alternativo pode tanto elevar como restringir o nível de consciência profissional e sócio-político do trabalhador.

Observa-se mais comumente nos últimos anos a alternância de metodologia e propostas curriculares que ou bem reforçam a informação técnica, em detrimento do conhecimento da história e da realidade sócio-econômica e política do país, ou bem concentram-se nestes temas, em detrimento da informação técnica.

Entendemos que a prática sozinha e a crítica não gera, espontaneamente a consciência de que estamos falando.

Entendemos também que os postulados teóricos decorrentes da fórmula "o homem se cria pelo trabalho" são instrumentos valiosos não só para as especulações de cientistas sociais, mas para operar um processo educacional que transforme de modo crítico as práticas em saúde num campo de ações específicas e ao mesmo tempo de mudanças históricas.

Conteúdo curricular e metodologia carregam consigo pesados conceitos teóricos.

Os que propomos hoje, após tantos anos de atividade, estão marcados pelos que acabamos de expor e compõem um processo educacional que se coloca na intimidade do próprio processo de trabalho, assim como do próprio processo existencial de um homem em transformação.

Buscamos assim participar da criação de um ser consciente de seu papel técnico-profissional específico, ao mesmo tempo que do seu papel social e histórico.

 

NOTA:

— Este texto foi inteiramente extraído de reflexões que se vêm fazendo ao longo do processo de preparação de pessoal auxiliar, em diferentes instituições prestadoras de serviços de saúde.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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