A reforma sanitária e a educação odontológica*

 

 

Eugênio Vilaça Mendes

Odontólogo, Doutor em Odontologia, Mestre em Administração, Consultor OPS

 

 

A REFORMA SANITÁRIA

Na sociedade brasileira, no momento, colocam-se dois projetos sanitários alternativos.

De um lado, as forças conservadoras lutam para manter e consolidar o atual Sistema Nacional de Saúde, plural e desintegrado, com hegemonia do modelo médico-assistêncial privatista.

De outro, as forças democráticas propõem a mudança do sistema, através da reforma Sanitária, cujas bases doutrinárias estão definidas no relatório final da VIII Conferência Nacional de Saúde.

Assim, estabelece-se, no Brasil, uma luta política-ideológica entre um projeto conservador e um projeto democrático.

O atual sistema de saúde foi construído por uma deliberada opção política, que teve sua base ideológica na tecnocracia modernizante, que se instalou na Previdência Social (os cardeais do IAPI) e sua base política no movimento de 1964 que, pelo autoritarismo, pôs fim ao projeto nacional populista.

Os seus agentes de consolidação foram os anéis previdenciários, criados pela ação solidária da tecnoburocracia estatal, com os produtores privados de serviços e bens de saúde. Esses agentes atuaram, através de instrumentos de políticas públicas deliberadamente determinados e cujos principais foram:

a) O processo de gradativa centralização institucional e de recursos da Previdência Social (CAP's, IAP's, INPS, MPAS, SINPAS);

b) O Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social — FAS — que garantiu a expansão física do setor privado com recursos subsidiados;

c) O Plano de Pronta Ação que estabeleceu um mercado cativo de serviços de saúde para o produtor privado.

Do ponto de vista institucional, conformou-se um sistema de saúde em que: o Estado é o grande financiador e o produtor de serviços aos não-integrados, economicamente; os produtores privados nacionais, os principais agentes prestadores de serviços; e, os produtores privados internacionais, os principais produtores de insumos.

A formalização se deu pela Lei do Sistema Nacional de Saúde, onde se estabeleceram os limites entre a atenção à saúde das pessoas — ações lucrativas, destinadas às populações integradas, economicamente, e executadas pelo setor privado — e ações de saúde coletiva — não lucrativas, destinadas às populações marginalizadas e executadas, diretamente, pelo Estado, através do complexo Ministério/Secretarias de Saúde.

A lógica da construção política desse sistema faz com que seus objetivos sejam derivados de sua substantividade — a melhoria dos níveis de saúde — para outros, como a reprodução da força de trabalho e a mercantilização dos bens e serviços de saúde. Por conseqüência, surgem, ao longo de sua trajetória, diferentes modalidades assistenciais de produção isolada, cooperativa ou empresarial, nos setores estatal, privado filantrópico e privado-lucrativo.

A consolidação desse sistema vai se dando por um processo que tem as seguintes características básicas:

a) A incorporação crescente de beneficiários, o que se faz, de forma discriminatória, entre as diferentes clientelas. Ou seja, o sistema pretende uma universalização sem eqüidade;

b) O privilegiamento do setor privado e a deliberada ineficientização do setor público;

c) O privilegiamento das ações de "atenção médica" em detrimento daquelas de "saúde pública".

Tal sistema, criado na lógica do lucro, mostra-se, hoje, ineficiente, ineficaz e desigual, apresentando como conseqüências:

a)Desigualdade no acesso aos serviços;

b) Inadequação à estrutura de necessidades da população;

c) Baixa produtividade dos recursos;

d) Crescimento incontrolável dos custos;

e) Qualidade insatisfatória dos serviços;

f) Inadequada estrutura de financiamento;

g) Ausência de integralidade da atenção;

h) Multiplicidade e desintegração institucionais;

i) Excessiva centralização;

j) Ineficácia social;

— 7 milhões de chagásticos;

— 6 milhões de esquistossomóticos;

— 500.000 hansenianos;

— 1.200.000 acidentes de trabalho por ano;

— 400.000 casos/ano de malária;

— 40 milhões de desnutridos;

— Mortalidade infantil de 90%.

Esse sistema vem sendo combatido, há muito, por forças democráticas que não concordam com a sua conformação e com os seus objetivos.

Tais forças, de início, localizam-se nos núcleos de resistência ao estado autoritário, especialmente nas academias, onde começam a esborçar-se os movimentos de medicina preventiva, comunitária e social e os seus projetos-piloto.

A partir daí, invadem as instituições estatais onde, nos espaços periféricos de medicina simplificada, começam a articular um projeto contra-hegemônico.

A vitória das oposições, em vários estados brasileiros, em 1982, e a instalação do governo de transição democrática, em 1985, criaram um ambiente favorável à canalização política desse pojeto, o que vem a se dar na VIII Conferência Nacional de Saúde, na qual se constrói, como ato coletivo de um conjunto de atores sociais democráticos, a proposta da Reforma Sanitária.

O projeto democrático de mudança do setor parte de um entendimento mais amplo do conceito de saúde.

Inicialmente, há que se reconhecer que a saúde não pode ser reduzida ao conjunto de intervenções de natureza médica, preventivas, curativas, ou reabilitadoras, ofertadas por serviços de saúde.

Mais que isso, o termo saúde expressa a qualidade de vida de uma população, num dado espaço e num dado momento, refletindo as suas condições objetivas de vida, que têm sua origem num patamar transcendente à simples oferta e consumo de serviços médicos.

Falar de saúde implica, portanto, uma indagação permanente dos seus determinantes políticos, econômicos, culturais e sociais e a inserção, na política de saúde, de novos espaços sociais como os da educação, meio ambiente, previdência, emprego, habitação, alimentação e nutrição, lazer, esporte, terra e transporte.

Saúde será a resultante da ação articulada desses diferentes setores e o eixo integrador dos setores sociais com as políticas econômicas.

Essa é a dimensão maior da Reforma Sanitária, o que exige o reconhecimento explícito da necessidade de mudanças nesses setores, para que se possa melhorar os níveis de saúde.

O entendimento dessa real dimensão da saúde não deve, contudo, implicar a negação de que ela abriga um componente de serviços médicos que, sem perder o referencial macroesboçado e as interfaces que guarda com as outras políticas sociais, para fins práticos, pode ser tratado nas suas especificidades de modo a contribuir, com as modificações que são necessárias, para a melhoria da qualidade de vida da população.

Mesmo porque não se pode, mecanicamente, transportar para o Brasil, país que vive um momento de transição epidemiológica, a abundante crítica sobre a ineficácia absoluta dos serviços de saúde, especialmente aquela produzida nos países capitalistas centrais, onde o perfil nosológico é distinto do nosso, por já se ter dado o controle das "doenças da pobreza".

Na sua dimensão setorial, a Reforma Sanitária propugna a reformulação do atual Sistema Nacional de Saúde, através da criação de um Sistema Único de Saúde, que se estruturará em função exclusiva da essencialidade de seus objetivos, a melhoria da saúde de nossa população.

Fica claro, então, que a Reforma Sanitária constitui um projeto político-alternativo ao projeto conservador e que deve ser encarada na perspectiva de um pocesso de luta. Mesmo porque a experiência internacional ensina que, onde reformas semelhantes ocorreram, esse processo durou anos e décadas e, muitas vezes, ainda não terminou.

 

A DOUTRINA E OS PRINCÍPIOS DA REFORMA SANITÁRIA

Além do conceito de saúde, já mencionado, a Reforma Sanitária admite dois outros referenciais doutrinários.

Um primeiro — já reconhecido oficialmente pelo governo brasileiro no I Plano Nacional de Desenvolvimeno da Nova República — é a saúde como direito de cidadania e dever do Estado.

Trazido para o campo da saúde, o direito de cidadania é o reconhecimento tácito de acesso de todos, em todas as regiões, a um mesmo sistema de saúde. Ou seja, que todos os cidadãos tenham direito aos serviços e a todos os tipos de serviços de saúde, em todos os lugares. O que implica reconhecer que não basta a mera universalização. Demais dela, haverá que se eliminar o exercício discriminatório de diferentes modalidades assistenciais para clientelas diversas.

Por conseqüência, o que a Reforma Sanitária postula é a universalização com eqüidade.

Mas o mote só terá significação se se complementar com a afirmação de que a saúde é um dever do Estado, sem o que, os ideais de universalização e eqüidade ficam destituídos de sentido.

Isso vai exigir o reconhecimento do Estado como gestor público o que será, na prática, a aceitação do exercício pleno dos seus poderes normativo, fiscalizador, regulador, extrativo e coercitivo, sobre o conjunto do Sistema Nacional de Saúde, de modo a redirecioná-lo para a melhoria de saúde do povo.

Um outro, consiste em basear a Reforma Sanitária na correta interpretação da doutrina da atenção primária.

Com o único propósito de facilitar a análise das implicações formais e funcionais dessas variações de interpretações, se lhes sistematiza nos seguintes grupos:

a) A atenção primária como uma estratégia de reordenamento do setor saúde, o que significa afetar e compreender todo o sistema de saúde e toda a população a que esse sistema supõe servir;

b) A atenção primária, como um programa com objetivos restringidos, especificamente, a satisfazer algumas necessidades elementares e, previamente, determinadas, de grupos humanos considerados em extrema pobreza e marginalidade, com recursos diferenciados, de complexidade tecnológica e custos mínimos;

O resultado concreto dessa interpretação de programa é a definição e desenvolvimento de projetos marginais, com recursos marginais, dirigidos a populações marginalizadas de regiões marginalizadas e, portanto, significam, na concretude de sua operacionalização, o reconhecimento explícito, de que o papel possível do Estado é prover uma política setorial compensatória, que vai consolidar as desigualdades pessoais ou regionais, presentes ao nível da sociedade nacional. Em outros termos, interpretar atenção primária, como programa, implica reconhecer a impossibilidade de superar as desigualdades relativas, quanto ao acesso aos serviços de saúde e às possibilidades de adoecer, morrer ou incapacitar-se, das diferentes classes sociais, nas diversas regiões do país.

A interpretação correta é, pois, a da estratégia, porque se propõe a resolver os problemas de saúde mediante uma maneira alternativa de apropriar, recombinar, reorganizar e reorientar todos os recursos, de todas as instituições, de todo o setor de saúde, para satisfazer às necessidades e aspirações, na área sanitária, de toda a sociedade.

Tendo, como alicerces, esses elementos doutrinários, a Reforma Sanitária deverá se fazer orientada por um conjunto de princípios que, necessariamente, deverão ser tomados no seu conjunto.

É bem verdade que, se se propõe uma postura estratégica de reformulação, uns se materializarão mais rapidamente, outros mais demoradamente, na medida de seus tempos políticos e técnicos.

Importa considerar que o exercício estratégico é incompatível com as idéias de concomitância e com os raciocínios lineares ou etapistas que, de resto, expressam posições idealistas, distantes do mundo real em que se dão as políticas de saúde.

Esses princípios, referidos, principalmente, à criação do Sistema Único de Saúde, são:

a) Unicidade administrativa nas diversas instâncias governamentais;

b) Regionalização e hierarquização dos serviços;

c) Integralidade da atenção à saúde;

d) Descentralização das ações de saúde;

e) Redefinição das relações entre os setores público e privado;

f) Reorientação das políticas científica e tecnológica;

g) Controle social do sistema;

h) Reorientação das políticas de recursos humanos.

 

A REFORMA SANITÁRIA E A EDUCAÇÃO ODONTOLÓGICA

O Sistema Nacional de Saúde Bucal reproduz, como expressão regional, o Sistema Nacional de Saúde.

Assim, institucionalizou-se na mesma lógica dos objetivos derivados do Sistema Nacional de Saúde, centrado nas ações curativas e no prívilegiamento do setor privado mantendo, ademais, uma participação relativa maior, do exercício liberal.

Cerca de 75% das horas/dentista disponíveis no Brasil estão alocados a atividades liberais.

Os resultados do Sistema Nacional de Saúde Bucal, medidos pelos níveis de saúde bucal, são indicdores de sua alta ineficácia social.

Deste modo, as crianças de 12 anos apresentam um CPOD médio de 7,25 e, um brasileiro, em média, chega aos 39 anos com 12 dentes extraidos e, aos 59 anos, já perdeu 24 dentes.

O fracasso desse sistema se demonstra na crueldade dos dados que informam que 75% dos brasileiros de mais de 60 anos necessitam de próteses totais.

Ainda que os gastos sejam insuficientes (0,2% do PIB em 1981), pode-se afirmar que os recursos financeiros têm sido muito mal-utilizados.12

Por tudo isso, urge reformular, radicalmente, o Sistema Nacional de Saúde Bucal, o que se fará segundo a doutrina e os princípios da Reforma Sanitária.

Logicamente, esse movimento político de mudança vai, necessariamente, incluir a educação odontológica como exigência da aplicação do princípio da reorientação das políticas de recursos humanos.

A tese que se vai desenvolver é a de que existe um modelo tradicional de educação odontológica, coerente com a prática da odontologia científica ou flexneriana, que constitui o modelo hegemônico do atual Sistema Nacional de Saúde Bucal.

Por conseqüência, se se pretende instaurar a Reforma Sanitária, haverá que se mudar a prática odontológica hegemônica, pela odontologia integral e isso vai implicar um novo modelo de educação odontológica.

Em conclusão, a projetos odontológicos alternativos, corresponderão projetos pedagógicos também alternativos.

 

OS MARCOS CONCEITUAIS DOS PROJETOS PEDAGÓGICOS

1. A Questão do Marco Conceitual

Pode-se falar de um marco conceituai para educação odontológica e, também, de um marco conceitual para a prática odontológica, sem se perder de vista a identidade entre seus elementos constitutivos.

O marco conceitual representa uma construção social que resulta, historicamente, de uma multiplicidade de processos que se expressam, de uma parte, na autonomia relativa da prática e da educação odontológicas e, de outra, ao nível dos conjuntos sociais em que essa prática e essa educação se constituem e se exercitam.

Uma conceituação operacional de marco conceitual pode ser buscada em Andrade:2 "No caso particular da educação médica, que os egressos tendam a transformar-se em especialistas, em lugar de médicos gerais; que dediquem mais atenção aos problemas da saúde individual que aos da coletividade; e às ações curativas, mais que às preventivas; que tendam a desdenhar, em sua prática, os fatores psicológicos e sociais que participam na gênese da enfermidade, para dar maior valor aos puramente biológicos, são fatos que vêm preocupando os educadores médicos de todo o mundo, há várias décadas, e que, a nosso juízo, são expressão do que chamamos marco conceitual da prática médica."

Esse mesmo autor, num outro trabalho1, manifesta que o marco conceitual, muito raramente, é estabelecido de uma forma explícita e que, no geral, resulta de uma série de influências ambientais, entre elas, as educacionais.

Fica claro, portanto, que a questão do marco conceitual pertence ao campo das ideologias, aqui entendidas como conjuntos lógicos, mas difusos, de normas e representações que orientam os pensamentos e as ações, a serviço de grupos sociais sem que, necessariamente, esses grupos tenham, delas, consciência.

Quando se refere, então, ao marco conceitual de educação odontológica, há de se procurar os sistemas de valores, idéias e prescrições não explicitadas, formalmente, que penetrem educandos e educadores, conferindo-lhes uma inteligência particular, que induz a uma ação educativa determinada. Ou seja, há de se desvendar as ideologias subjacentes ao modo de fazer educação odontológica e há de se estabelecer sua organicidade.

Desse modo "Quando fazemos falar o silêncio que sustenta a ideologia, produzimos um outro discurso, o contradiscurso da ideologia, pois o silêncio, ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava"6.

Trata-se, agora, de identificar os marcos conceituais expressos nas práticas odontológicas alternativas, para o que se utilizará um enfoque dialético, expresso da seguinte forma:

a) A afirmação ou tese representada pela prática da odontologia científica;

b) A negação ou antítese, representada pela odontologia simplificada;

c) A negação da negação ou síntese, representada pela odontologia integral.

2. O Marco Conceitual da Educação Odontológica Tradicional — Odontologia Científica ou Flexneriana.

A odontologia flexneriana constitui, sem dúvida, uma manifestação regionalizada do paradigma da medicina científica. Para entendê-la, há de se remeter, ainda que, sucintamente, à evolução da prática médica.10

Até o final do século XIX, a medicina se estruturou sob o paradigma da polícia médica, entendida como conceito referente ás teorias políticas e práticas originadas da base política e social do estado absolutista e mercantilista, para atuar no campo da saúde, reforçando o seu caráter normatizador e higienizador.

A emergência da Revolução Industrial passou a exigir novo modelo de medicina, coerente com as novas formas de capitalismo. Os modelos sanitários anteriores não se adequavam às novas demadas da sociedade, e se esgotaram, daí surgindo um novo paradigma, o da medicina científica.

O paradigma da medicina científica começa a institucionalizar-se com a criação, em 1893, da Faculdade de Medicina da Universidade de Johns Hopkins. Contudo, a consolidação desse processo se dá através das recomendações do famoso Relatório Flexner, publicado em 1910, pela Fundação Carnegie.

Esse relatório não surge, aleatoriamente, como mais um simples documento dos reformistas da Era Progressista, mas como produto da iniciativa de uma fundação que escolheu, como objetivo de seu trabalho, estudos no campo da educação profissional em direito, teologia e medicina.

O Relatório Flexner poderia ter tido o mesmo destino de centenas de documentos preparados na Era Progressista, e que não foram levados à prática. Ele vingou, no entanto, porque as fundações privadas americanas aplicaram, em sua implementação, mais de 150 milhões de dólares, em 20 anos.

Além desse interesse das grandes indústrias, há que se ressaltar a participação, na origem e na consecução do Relatório Flexner, da profissão organizada, via Associação Médica Americana.

Pode-se concluir, pois, que a medicina científica se institucionalizou, através da ligação orgânica entre o grande capital, a corporação médica e as universidades. O novo paradigma determinou mudanças substantivas no objeto, nos propósitos, nos recursos e nos agentes da medicina, levando à configuração de um marco conceitual, que passa a referenciar a prática e a educação médicas.

A odontologia, como especialização médica, apreende também esse paradigma, denominado de odontologia científica ou odontologia flexneriana, que se constitui dos seguintes elementos ideológicos:

Mecanicismo:

O mecanicismo se introduz, na odontologia científica, pela analogia do corpo humano com a máquina, elemento importante do modo de produção dominante.

Biologismo:

O biologismo da odontologia flexneriana pressupõe o reconhecimento, exclusivo e crescente, da natureza biológica das doenças e de suas causas e conseqüências.

Dessa maneira, o novo paradigma procura absolver os fatores determinantes de natureza e social, na causa das doenças.

Individualismo:

A odontologia científica é, duplamente, individualista.

Primeiro, ao eleger como seu objeto, o indivíduo; segundo, ao aliená-lo, excluindo, da sua vida, os aspectos sociais.

Daí, poder-se imputar ao indivíduo, a responsabilidade pela sua própria doença.

Especialização:

Sem negar que o crescimento exponencial do conhecimento odontológico influencia a especialização, entende-se, contudo, que esse pocesso ocorreu, também, por outras razões.

Primeiro, e numa perspectiva ideológica, em função do mecanicismo que impôs a parcialização abstrata do objeto global, segundo um esquema contraditório que aprofunda o conhecimento específico e que atenua o conhecimento holístico.

Segundo, e numa dimensão econômica, a especialização decorreu das necessidades da acumulação de capital, que exigiu a fragmentação do processo de produção e do produtor, via divisão técnica do trabalho.

Exclusão de práticas alternativas:

A viabilização do paradigma da odontologia científica se fez com base na sua supremacia sobre as outras práticas alternativas, consideradas, "a priori", ineficazes.

Tecnificação do ato odontológico:

Os novos sacerdotes passaram a utilizar novos ritos.

A odontologia flexneriana estruturou, então, a engenharia biológica — calcada na tecnificação do ato odontológico — como nova forma de mediação entre o homem e as doenças.

E passou a erigir, por razões ideológicas e econômicas, como parâmetro de qualidade, o grau de densidade tecnológica da prática, em detrimento da capacidade de promover ou restaurar a saúde e prevenir as doenças. Ênfase na odontologia curativa:

O novo paradigma concentrou sua atuação na odontologia curativa.

Fê-lo, de um lado, porque esse é o setor mais suscetível de incorporar tecnologia.

De outro, porque prestigiar diagnóstico e terapêutica significa valorizar o processo fisiopatológico, em detrimento da causa.

A interação desses elementos criou uma nova prática — a odontologia científica ou flexneriana — que é entendida como aquela de universalidade biológica, orientada para a cura ou alívio das doenças ou para a restauração de lesões e que é caracterizada pela natureza individual de seu objeto, pela concepção mecanicista do homem, pela crescente corporização do conhecimento em tecnologia de alta densidade de capital, pela dominância da especialização, pela seletividade de sua clientela e pela exclusão de formas alternativas de prática odontológica.

3. A Odontologia Simplificada

A partir da década de 70, iniciam, a nível mundial, os questionamentos ao paradigma flexneriano que se concentraram na constatação de sua ineficácia, ineficiência, desigualdade de acesso e iatrogenicidade.

Começam, então, a delinear-se em vários lugares da América Latina, como negação da odontologia flexneriana, as propostas de odontologia simplificada.

Isso ocorre sob a influência da doutrina da atenção primária que tem aí, sua interpretação restrita como um programa.

Executa-se, em projetos-piloto universitários e, depois, em trabalhos institucionais, um modelo de prática denominado de odontologia simplificada, que pode ser definida como uma prática profissional que permita, através da padronização, da diminuição dos passos e elementos e da eliminação do supéfluo, tornar mais simples e barata a odontologia. E que, ao tornar-se mais produtiva, viabiliza os programas de extensão de cobertura.

Esse enfoque de odontologia simplificada — que é o mais encontradiço até o momento — é, na realidade, extremamente limitado, vez que não questiona o modelo de prática hegemônica, a odontologia científica.

Dessa forma, a odontologia simplificada não pretende uma mudança qualitativa da prática profissional. Tão-só, erige-se como um apêndice à odontologia tradicional, uma odontologia complementar, destinada às classes sociais marginalizadas e concretizada pela simplificação dos elementos da prática profissional, em especial, recursos humanos e equipamentos.

Por conseqüência, os esforços se fizeram no sentido de simplificar recursos humanos, material de consumo, instrumental, equipes odontológicas, sistemas de trabalho, técnicas e espaço físico com o objetivo de estabelecer uma odontologia de alta produtividade. E o que se buscava era a produção de mais atos curativos, em menor tempo, e a um custo o mais baixo possível.

Esse processo, por ser muito incipiente e por ter-se desenvolvido muito acodadamente, levou a distorções que implicaram na queda de qualidade — medida segundo os parâmetros restritos da odontologia flexneriana — de alguns tipos de trabalhos realizados nas clínicas de odontologia simplificada.

Começou, então, a marcar-se o dilema da quantidade versus qualidade e difundir-se uma fantasia de que, necessariamente, um trabalho de alta produtividade exige o sacrifício da qualidade.

Além disso, a odontologia simplificada discursava sobre a importância da prevenção mas, na prática, continuava a priorizar o curativo.

O que é explicável, na medida em que não se transformavam os elementos estruturais da odontologia flexneriana mas, apenas, se lhes racionalizava.

O contexto conflituoso colocado, principalmente, pelos dilemas da quantidade versus qualidade e da prevenção versus curativo, levou a uma reflexão mais profunda — agora calcada em alguns anos de experiência própria — sobre o significado real da odontologia simplificada.

E concluiu-se que era um caminho equivocado, porque se estava construindo uma prática odontológica que expressava, nesse campo específico, o exercício de uma política social discriminatória, que consolidava as desigualdades entre as classes sociais. A cidadãos tidos como de segunda categoria, se ofertavam serviços de segunda categoria, que valiam na medida de seu baixo custo, dado pelo seu conteúdo de simplificação.

Evidente que a concepção de tecnologia apropriada era, exclusivamente, a de tecnologia simplificada.

Fica evidente que a odontologia simplificada, por seu caráter discriminatório e excludente, não constitui uma prática odontológica coerente com a doutrina e os princípios da Reforma Sanitária.

4. Um Marco Conceitual Alternativo para a Educação Odontológica — A Odontologia Integral.

Esse amadurecimento conceitual levou a um terceiro momento, de síntese, ou seja, ao delineamento da proposta da odontologia integral.

A odontologia integral coloca-se, pois, como a possibilidade teórica de uma nova forma de pensar e fazer odontologia que desloca a prática hegemônica e que, por conseqüência, deixa de lado a complementariedade para instituir-se como uma prática substitutiva da odontologia científica.

O trabalho complexifica-se porque não se trata, simplesmente, de adaptar uma odontologia para os pobres, com base na simplificação dos elementos do flexnerianismo. Ao contrário, torna-se imperativo gerar e difundir uma odontologia capaz de substituir a prática hegemônica atual, superando-a, radicalmente, e fazendo nascer um novo paradigma profissional.

Algo como um corte epistemológico no saber odontológico, onde uma nova ciência odontológica se constitui, "cortando" com sua pré-história e com sua ambiência ideológica.

Essa abordagem da odontologia integral tem três grandes pilares interdependentes: a simplificação dos elementos, a ênfase na prevenção e a desmonopolização do saber odontológico.

A simplificação dos elementos da prática profissional — que constituía o único objetivo da concepção restrita da odontologia simplificada — não é rejeitada liminarmente. Diversamente, deve ser buscada e com o cuidado de não negar a validade de certos princípios técnicos da odontologia, que têm validade universal.

Nesse sentido, o esforço de investigação nos campos da simplificação de recursos humanos, de materiais, instrumentais e equipamentos, de espaço físico, de técnicas e de sistemas de trabalho, carece de aprofundamento e as pesquisas necessitam de ser conduzidas com maior rigor metodológico aproveitando-se inclusive, o conhecimento dos "experts" da odontologia flexneriana. Isso é fundamental porque a odontologia integral há de ser, sempre, muito eficiente, a fim de que possam atingir níveis de cobertura real, significativos.

A odontologia integral não rejeita a tecnologia sofisticada de eficácia comprovada. Antes, a incorpora, tendo, contudo, o cuidado de mantê-la no nível de atenção apropriado e de dar, a ela, uma utilização adequada, para o que é imprescindível um sistema de avaliação tecnológica.

O segundo pilar de odontologia integral é a prevenção que deixa de ser meramente retórica, para se tornar uma base palpável da prática profissional.

A prevenção passa a ser compreendida como a possibilidade da odontologia integral de manter a saúde que, idealmente, nunca deveria ter sido rompida. Conseqüentemente, o mais relevante na odontologia é o preventivo no seu contexto amplo e, não, como ocorre nas odontologias científicas e simplificada, o curativo ou o restaurador.

Por fim, o perfil teórico da odontologia integral se completa com o conceito de desmonopolização do saber odontológico, que pretende a superação do monopólio profissional pela difusão dos conhecimentos científicos e tecnológicos e dos benefícios da atenção odontológica, o que constitui o ponto fundamental para viabilização do controle social dos serviços, pela população.

A odontologia integral modifica, substantivamente, os elementos estruturais das outras práticas e seus elementos ideológicos são:

— Coletivismo

A odontologia integral resgata a característica coletiva do objetivo da prática odontológica;

— Integração de atividades promocionais, preventivas e curativas

A odontologia integral, ao reconhecer os problemas decorrentes do corte entre as condutas promocionais, preventivas e curativas, sob a hegemonia do curativo, procura recompor a integralidade do ato ondotológico, sob a hegemonia do promocional e preventivo;

— Descentralização da atenção odontológica

A concentração dos recursos da odontologia científica é substituída pela idéia de níveis de atenção, e propugna-se a universalização do acesso a todos os níveis, e o deslocamento do poder decisório para a periferia do sistema

— Inclusão de práticas odontológicas alternativas Valorizam-se as práticas odontológicas alternativas e procura-se captar o discurso popular da odontologia para integrá-lo, dialeticamente, com o discurso oficial;

— Equipe de saúde

O especialismo é substituído pela idéia de equipe odontoógica, onde se distribuirão as funções odontologies por diversos tipos de recursos humanos, profissional ou da própria comunidade

— Tecnologia apropriada

A mitificação do ato técnico e da sua sofisticação é substituída pela idéia de uso de uma tecnologia, que seja eficaz, quando aplicada no nível de atenção adequado, a um custo social mínimo;

— Participação comunitária

A comunidade deve participar, ativamente, dos processos educacionais e da prática odontológica, como condição básica de sua democratização.

Esse marco conceitual, explicitado a nível de seus principais elementos ideológicos, não se constrói "a priori"; ao contrário, deve ser induzido a partir da reflexão em cima de uma nova prática profissional e de um novo modelo de educação odontológica.

Essa nova prática profissional — a odontologia integral — pode ser definida como a prática, ecologicamente, orientada, alternativa à odontologia flexneriana, que tem, como objetivo ultimo, a manutenção da saúde, e que é caracterizada pela natureza coletiva do seu objeto, pela ênfase na prevenção no seu significado mais amplo, pela simplificação dos elementos da prática profissional, com utilização intensiva de tecnologia apropriada e pela desmonopolização do saber odontológico.

Entende-se que a odontologia integral é a prática profissional coerente com a doutrina e os princípios da Reforma Sanitária.

Demais disso, ela vai exigir um novo projeto pedagógico, profundamente, distinto daquele que é, atualmente, hegemônico, o modelo tradicional.

 

O PROJETO PEDAGÓGICO TRADICIONAL

As academias atuam, através de projetos pedagógicos, que conceituamos como idéias-força que direcionam o trabalho educacional, estabelecidos explicitamente ou embutidos na latência dos currículos e pesquisas, e definidos de acordo com os condicionantes estruturais e os diferentes modelos de práticas sociais profissionais.

Assim, não há processo educacional sem um projeto pedagógico ainda que, quase sempre, este não esteja, claramente, articulado e que se expresse, através do que se convencionou denominar de currículo oculto.

O pressuposto é de que um projeto pedagógico é determinado, em maior parte, pelos elementos ideológicos de um modelo de prática profissional hegemônico, o qual, por sua vez, é determinado pela estrutura sócio-econômica de uma sociedade, em um dado momento histórico.

Destarte, aos elementos ideológicos da odontologia flexneriana — específicos da área de saúde bucal — somam-se outros pertinentes à sociedade como um todo, e que se reproduzem no campo educacional. No seu conjunto, tais elementos ideológicos constituem o marco conceitual do ensino.

Esse plano de fundo ideológico leva à construção de um modelo tradicional de educação odontológica, prevalescente no Brasil, e que pode ser caracterizado a partir de um tipo ideal, no sentido weberiano do termo, isto é, reforçando suas características arquiteturais, que são:

a) Quanto à integração das funções educacionais.

As funções educacionais clássicas-docência, serviço e pesquisa — são tratadas isoladamente;

b) Quanto à definição do conteúdo do ensino.

Definido a partir do estoque de conhecimentos existentes e com critérios de senso comum;

c) Quanto à estruturação do plano de curso.

Plano de curso estruturado em microdisciplinas, por especialidades odontológicas;

d) Quanto às relações de conhecimento.

A teoria antecede à prática, o básico antecede ao clínico, e há grande ênfase na simulação;

e) Quanto à orientação geral do currículo.

Currículo dirigido para a doença ou lesão, com ênfase no curativo, e reabilitador;

f) Quanto ao espaço educacional.

O espaço educacional é dicotômico, mas o espaço interno anula ou desconhece o espaço externo. Ensino, exclusivamente, intramural ou com atividades de "extensão";

g) Quanto à natureza dos recursos humanos formados. Formação uniprofissional, de modo geral, cirurgião-dentista, a nível de graduação;

h) Quanto ao uso de tecnologia.

Ensino centrado no uso e difusão de tecnologia sofisticada;

i) Quanto à metodologia de ensino.

Metodologia de ensino centrada em aulas expositivas;

j) Quanto à estrutura física.

Estrutura física desintegrada, através de áreas alocadas, especialmente, a departamentos ou disciplinas;

k) Quanto ao planejamento educacional.

Planejamento educacional realizado, exclusivamente, por professores;

l) Quanto à natureza do pessoal docente.

Pessoal docente especializado por microdisciplina;

m) Quanto à relação professor-aluno.

Relação autoritária ou paternalista;

n) Quanto à natureza de pesquisa.

Ênfase na pesquisa biológica.

Desses elementos arquiteturais, resulta um currículo .tradicional-coerente com o projeto conservador de manutenção do atual sistema nacional de saúde bucal — composto por inúmeras (40 a 60) disciplinas, estruturadas em relação ao estoque de conhecimentos existente, desintegradas em relação aos aspectos básicos, clínicos, biológicos e sociais, e que pode ser caracterizado como um currículo microdisciplinar.

Esse é o tipo de currículo que, com algumas variações, predomina, hoje, nas faculdades de odontologia, brasileiras.

 

O PROJETO PEDAGÓGICO INOVADO

Será a possibilidade mesma, da superação da prática da odontologia científica, pela odontologia integral, dentro do movimento mais amplo da Reforma Sanitária, que irá permitir o surgimento de um projeto pedagógico inovado, alternativo ao tradicional.

É evidente que esse processo de mudança não se esgota nos limites do processo educacional. Por isso mesmo, esse processo exige que a educação odontológica substitua sua função sistêmica por uma função crítica, e passe a exercitar uma análise sistemática dos objetivos sociais, de modo a evidenciar suas contradições e suas deformações ideológicas, procurando soluções alternativas, ou seja, outros objetivos sociais, diversos daqueles aceitos pelo sistema.

Um novo modelo de educação odontológica — o modelo inovado — há de emergir a partir da estrutura da prática da odontologia integral, e do exercício da função crítica a nível das universidades, e seus elementos constitutivos são os seguintes:

a) Quanto à integração das funções educacionais. Docência, serviço e pesquisa, totalmente, integradas;

b) Quanto à definição do conteúdo de ensino.

Definido a partir da análise da realidade social, e da prática odontológica;

c) Quanto à estruturação do plano de curso Plano de curso estruturado em módulos integrados por níveis de atenção;

d) Quanto às relações de conhecimento.

A prática e a teoria, e o básico e o clínico são integrados, e a simulação é limitada ao pequeno número de tarefas essenciais, que ocorrem com baixa freqüência clínica;

e) Quanto à orientação geral do currículo.

Currículo orientado para a manutenção da saúde;

f) Quanto ao espaço educacional.

Superação da dicotomia espacial, através de um processo educacional orgânico a diversos espaços sociais;

g) Quanto à natureza dos recursos humanos formados.

Formação multiprofissional da equipe odontológica;

h) Quanto ao uso de tecnologia.

Ensino centrado na tecnologia apropriada;

i) Quanto à metodologia de ensino.

Metodologia de ensino centrada em atividades de grupo;

j) Quanto à estrutura física.

Estrutura física integrada, segundo os níveis de atenção;

k) Quanto ao planejamnto educacional.

Planejamento educacional realizado, conjuntamente, por alunos, professores, funcionários e comunidades;

l) Quanto à natureza do pessoal docente.

Docente generalista, integrado em módulos de ensino;

m) Quanto à relação pessoal e colaborativa;

n) Quanto à natureza da pesquisa.

Pesquisa dirigida à solução de problemas odontológicos das populações majoritárias.

O projeto pedagógico inovado deverá provocar uma mudança radical no currículo odontológico, que passará a ser estruturdo por níveis de atenção e organizado, não mais por microdisciplinas, mas, por módulos de ensino.

Nesse sentido, a lógica da estruturação curricular deixa de ser o estoque de conhecimentos especializados existente, para se deslocar para a organização do Sistema Nacional de Saúde Bucal, nos termos estabelecidos pela Reforma Sanitária (figura 1 e 2).

 

 

 

 

Dessa forma, os serviços se transformarão em espaços educacionais, enquanto os espaços educacionais restritos, atuais, se transformarão em espaços de serviço, vez que as funções de ensino, pesquisa e serviço estarão integradas, inclusive, a nível físico.

Por conseqüência, o espaço intramural perde sua hegemonia e o curso de odontologia deve se distribuir por diferentes espaços sociais como: o urbano integrado, o urbano periférico, o rural concentrado e o rural disperso, e por diferentes espaços institucionais como: o espaço domiciliar, o espaço ambulatorial em geral, o espaço ambulatorial especializado e o espaço hospitalar, em programas que não serão mais de extensão extramural, mas de odontologia integral, desenvolvido com as comunidades.

Cabe, aqui, uma pequena incursão no campo metodológico.

Quando se refere a ensino modular, há dois tipos de decodificação: mais comum em nosso meio, o da orientação psicologista, com antencedentes teóricos no ensino personalizado de Keller; outro, o que subscrevemos, com origem no famoso documento Villareal, que lançou as bases teóricas da criação da Universidade Autônoma Metropolitana — Xochimilco, no México.

Nesta concepção de ensino modular, pretende-se superar a fragmentação dos conteúdos, e a separação entre teoria e prática, através do processo de ação-reflexão, de tal maneira que o processo de ensino-aprendizagem conduza a uma ação sobre os objetos da realidade, de modo a transformá-la.

O ensino modular, a partir da análise das práticas profissionais, leva à concreção dos poblemas que o estudante deve abordar — os objetos de tasnformação.

Disso resulta que os poblemas não estão limitados a uma abordagem teórica, nem a uma informação abstrata. Ao contrário, a idéia-chave do ensino modular — o objeto de transformação — implica uma posição epistemológica, em que os conhecimentos não provêm, unicamente, da percepção, nem da sensação, mas da totalidade da ação do sujeito, que interatua com o objeto, em um contexto determinado.

O que é, pofundamente, diferente das bases epistemológicas do ensino convencional por microdisciplinas, seja em sua vertente mecanicista — onde o sujeito (o aluno) é passivo, contempla e recolhe o conhecimento, a partir do registro de estímulos do exterior — seja na sua vertente ativista — em que o sujeito é um criador de realidades, através de uma concepção subjetivista do conhecimento.

Ambas concepções desconhecem o papel da interação social no processo do conhecimento, ao negar as relações entre sujeito e objeto de ensino-aprendizagem.

 

ESTRATÉGIAS DE MUDANÇAS

No Brasil, a mudança de um modelo hegemônico de ensino tradicional, congruente com a ideologia e a prática da odontologia flexneriana e com o projeto conservador, para um modelo inovado, coerente com a prática e a ideologia da odontologia integral e com o projeto da Reforma Sanitária, exige o estabelecimento de uma estratégia, que sirva para referenciar, globalmente, esse processo.

Essa estratégia será parte da estratégia mais geral da Reforma Sanitária, que vem se delineando, no campo da luta política, em busca do Sistema Único de Saúde.

Poderá, além disso, contemplar um estágio intermediário, que possa tornar menos drástico, o processo de mudança, contribuindo para a sua viabilização. Tal estágio intermediário pode ser identificado como um modelo transicional, que se coloca entre o modelo tradicional e o modelo inovado.

Nessa transição, poderia se passar por um processo de integração gradativa nos níveis básicos — profissional, preventivo-curativo, biológico-social e teórico-prático, e a lógica da estruturação curricular poderia ser feita pela concepção de macrodisciplinas, definidas por problemas nosológicos.

Assim, o modelo tradicional é posto como uma realidade a ser transformada, e o modelo inovado, como uma situação-objetivo a ser alcançada. Ou seja, a estratégia parte de um real, para um utópico.

Cabe ressaltar, que a utopia tem um papel fundamental na educação, porque não pode haver projeto pedagógico, sem que se ponha em marcha, uma utopia educacional, entendida como a capacidade do educador de ir além do real e de criar novos possíveis.8

Nesse sentido, vale a pena lembrar a resposta do Diretor da Organização Mundial de Saúde aos críticos da utopia da saúde para todos, no ano 2000: "Tenho ouvido, repetidas vezes, que a saúde para todos, ainda não foi definida. Pergunto eu: que teria acontecido às grandes revoluções sociais da história do mundo, se "todos os homens são criados iguais e independentes"; se "liberdade, igualdade e fraternidade"; se "trabalhadores do mundo, uni-vos"; que teria acontecido a essas revoluções sociais se os lemas que as consagraram tivessem que ter sido dissecados anatonicamente, como pré-requisito para a ação?"4. Ou, como diz o educador Paulo Freire: "o impossível de hoje será o possível amanhã, porque estamos fazendo hoje, o possível de hoje".13

Concretamente, no Brasil, têm surgido nos últimos anos, movimentos de inovação em educação odontológica.

Ainda que não se explicitem, claramente, suas estratégias, podem-se perceber duas tendências principais. Uma primeira tendência pode ser denominada de modernização do processo educacional, e se inicia a partir dos laboratórios de relações humanas e ensino médico, desenvolvidos por Edward Bridge, e trazidos para a América Latina, pela OPAS, através das Oficinas de Educação Médica3. Esse movimento teve seqüência, na década de 70, com a divulgação da taxionomia de objetivos educacionais de Bloom, com os objetivos comportamentais de Mager, com os objetivos psicomotores de Manilla e com a crescente valorização e difusão da tecnologia educacional.

Especialmente, no campo da educação odontológica, essa tendência se completa com a disseminação da metodologia de análise de funções e tarefas clínicas.

Essa estratégia de mudança constitui um movimento interno ao processo educacional, que apresenta efeitos puramente modernizantes — uma modernização reflexa14 — sem implicar em mudança educacional real.

Reflete, de um modo geral, a preocupação com a ideologia da eficiência e da produtividade no ensino, e tem implícita, a hipótese de que os problemas educacionais são de natureza metodológica15.

A aplicação dessa estratégia — o que tem sido muito comum no Brasil — leva, por conseqüência, a um processo de reordenação curricular de caráter modernizante, que se esgota em si mesmo e que, finalmente, pode representar "uma mudança sem mudança"7.

Uma segunda estratégia é a da integração docente-assistencial.

Essa estratégia de mudança educacional foi testada como conseqüência da crise da medicina científica e representa a repercussão, no campo da educação da saúde, do paradigma da medicina simplificada.

Ela pressupõe que as mudanças na educação odontológica devem ser feitas por uma indução centrípeta9, a partir de áreas periféricas de integração de docência e serviço que, ao colocarem a universidade em contacto com a realidade social, determinariam, certamente, modificações substantivas no modelo educacional tradicional.

Conquanto, essa segunda estratégia seja mais abrangente que a da modernização, ela, na prática educacional brasileira, tem se mostrado de valor limitado porque, quase sempre, tem sido reduzida a programas de extensão em ambientes extramurais, verdadeiros apêndices do centro intramural hegemônico5, onde se pratica a odontologia simplificada.

Tem faltado, a esses programas, a integração, à docência e ao serviço, da pesquisa que deveria estar dirigida para o desenvolvimento de uma contra-ideologia e de uma contraprática — a odontologia integral — que emergiria no bojo de um projeto educacional, que deve significar o exercício da função crítica da universidade.

Torna-se claro que essa estratégia — a da integração docente-assistencial — investigacional — poderá conduzir a mudanças reais na educação brasileira, levando, num primeiro momento, à educação transicional, como etapa intermediária, na direção da utopia desejada, o ensino inovado.

Essa visão de mudança não exclui a modernização de processo educacional; antes, a inclui, como uma parte instrumental, de caráter acessório, a um processo que é, não simplesmente, metodológico mas, fundamentalmente, político.

Também, não se quer afirmar que esse processo seja linear, porque deverá haver um momento de ruptura que determinará o surgimento de uma pedagogia de qualidade, diferente e coerente com os postulados da Reforma Sanitária.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

1. ANDRADE, J. La estragia educacional en el plan de estudio. Educ. Méd.Salud, 5:151-64,1971.

2. ANDRADE, J. Marco conceptual de la educación medica en la América Latina. Educ. Méd. Salud, 12:1-9,1978.

3. ANDRADE, J. La pedagogia & la didactica. In: Organización Panamericana de la Salud Antologia sobre educación médica en la América Latina, 1950-1980. Washington, 1978.

4. ASSEMBLÉIA MUNDIAL DA SAÚDE, 33ª. Genebra, 1980. Genebra, OMS, 1981. (Doc. A 33/VR/2).

5. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Programa de integração docente-assistencial. Brasília, UFGo, 1981. p. 13.

6. CHAUI, M. de S. Ideologia e educação. Educ. & Soc., 2: 24-40, 1980.

7. CHAVES, M. M. Saúde: uma estratégia de mudança. Rio de Janeiro, Guanabara Dois, 1982.

8. FURTER, P. Educação e reflexão. Petrópolis. Vozes, 1966.

9. GARCIA, J. C. La articulación de la medicina y de la educación en la estructura social. In: ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE A SALUD. Antologia sobre educación en la América Latina, 1950-1980. Washington, 1978.

10. MENDES, E. V.A volução histórica da prática médica. Belo Horizonte, FUMARC, 1985.

11. MENDES, E. V. Reformulação do Sistema Nacional de Saúde. Brasília, 1986.

12. PINTO, V. G. saúde bucal no Brasil. R. Saúde públ.t 17: 316-27,

13. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS. Da crítica à proposta, a Universidade como projeto pedagógico. Campinas, 1981. mimeo.

14. RIBEIRO, D. A universidade necessária. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969.

15. SOARES, M. B. Travessia, tentativa de um discurso da ideologia. Belo Horizonte, 1981. [Memorial apresentado à Faculdade de Educação da UFMG].

 

 

* Este texto é constituído de reflexões retiradas da prática concreta do Departamento de Odontologia da PUCMG, onde o autor trabalhou durante 10 anos.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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