TEMA

 

A saúde e o município

 

 

Flávio A. de Andrade GoulartI; Zarie RezendeII

ISecretário Municipal de Saúde de Uberlândia; docente de Medicina Preventiva e Comunitária da Universidade Federal de Uberlândia
IIPrefeito Municipal de Uberlândia – MG; Vice-Presidente do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Municípios

 

 


RESUMO

O Governo Municipal é a única esfera de poder capaz de garantir o direito à saúde, verificado não apenas no plano individual (liberdade de escolha) como no plano coletivo (qualidade de acesso). A municipalização da saúde não pode, entretanto, se transformar em arma contra o município, já suficientemente responsabilizado e acumulado por extensa problemática, porém extremamente carente de recursos para resolvê-la.
As AIS e o SUDS representam medidas normalizadoras, porém realistas e politicamente aceitáveis de aliviar a "crise da previdência'', mas não devem ser encaradas como um fim em si mesmos, antes uma etapa para a real unificação do Sistema de Saúde no Brasil. Elas representam, acima de tudo, uma abertura importante para que os estados e prefeituras continuem a investir em programas de saúde. A etapa de "estadualização" de saúde deve ser concomitante ou ser sucedida imediatamente pela municipalização, caso contrário o processo de Reforma Sanitária no Brasil, será apenas parcial e excludente.


ABSTRACT

The Municipal government is the only branch of power structure wich is able to guarantee the right to health care pertaining not only to the individual level (freedom of choice) but also pertaining to the social levels (quality of access to service). Nevertheless, the process of transference or resources and decisions concerning the health system from the central structure to local governments can not became another obstacle against the country. The city government is already overloaded with responsabilities and extensive problems and lacking in resources to resolve them.
Even though the AIS (Ações Integradas de Saúde – Integrated Health Actions) and SUDS (Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde – Unified and Descentralized Health System) are realistic standard procedures and are politically accepted means of alleviating the "Welfare system crisis", they should not be considered an end in themselves but a step towards a real unification of the Health System in Brazil. Above all, they represent an important incentive to the state and municipal government to continue investing in health programs.
The transference of the health System from national to state control must be simultaneous with – or must be followed immediately by – the designation of the city government as responsible for its health services. In case this doesn't occur the process of the Sanitary Reform in Brazil will be partial and seletive.


 

 

POR QUE MUNICIPALIZAR?

Temos uma história marcada pelo centralismo exacerbado. Não foi outro o espírito das constituições vigentes no país durante o Império e boa parte da República, nos quais o Município sempre foi tratado como incapaz de gerir seus negócios. A Constituição de 1934, marcada pelo espírito liberal e modernizante do Tenentismo, procurava revogar tais disposições centralizadoras, mas é logo superada e abandonada pela emergência do Estado Novo. Em 1946 ressurge o espírito da autonomia municipal na Constituição democrática, o qual irá prevalecer nos anos seguintes, embora suas conseqüências práticas tenham sido limitadas pela estrutura organicamente oligárquica e vinculada ao poder central existente em grande parte dos municípios do país. 1964 representa o verdadeiro "golpe de misericórdia" no municipalismo. É, com efeito, no contexto da aliança tecnocrático-militar que então se instala que florescem as figuras espúrias do esvaziamento do Legislativo, das cassações indiscriminadas de mandatos políticos, da redução da autonomia política e financeira dos municípios, da supressão dos direitos políticos de milhões de eleitores nas capitais, estâncias hidrominerais e nas assim denominadas "áreas de segurança nacional".

E esta configuração autoritária, centralizadora e profundamente antidemocrática que é herdada pela Nova República. E é este um dos principais compromissos que a Assembléia Nacional Constituinte eleita em 1986 deverá ter perante a cidadania: restaurar a dignidade dos poderes Executivo e Legislativo municipais, devolvendo à célula da federação sua autonomia política, financeira e administrativa. Para os prefeitos, vereadores e outras pessoas preocupadas com a questão municipal, seria insuportável continuarmos a conviver com a dependência política, a subordinação administrativa, o amesquinhamento legislativo e a pauperização a que a instância onde verdadeiramente se processa a vida e o trabalho dos cidadãos foi reduzida. Que a nova ordem jurídica brasileira seja municipalista, não apenas no discurso, é o que todos esperamos.

O Município deverá ter, na sociedade democrática que todos sonhamos, responsabilidades intransferíveis no que diz respeito aos direitos humanos fundamentais, entre eles a SAÚDE.

Porém, nunca é demais lembrar que vícios estruturais do modelo sanitário adotado pelo Brasil, constituem sérios óbices que inviabilizam muitas das propostas conseqüentes de saúde que vieram à luz até o momento. Entre outros, podem ser citados a nefasta influência dos interesses lucrativistas dos produtores de equipamentos médico-hospitalares e medicamentos, o crescente empresariamento da saúde, a carência de racionalidade das políticas de saúde a nível nacional, os desvios da formação de recursos humanos etc. Diante de tal conjuntura ficam os municípios muitas vezes impotentes para agir no campo da saúde ou, o que é pior, obrigados a assumir atribuições muito acima de suas disponibilidades orçamentárias.

Tal situação, fruto do modelo político e econômico imposto à Nação bem como da política tributária dele decorrente nos anos pós-64, traz consigo o inevitável esvaziamento do Município, enquanto instância primeira da organização política e administrativa da Nação e do poder local, que perde grande parte de sua representatividade e legitimidade perante os cidadãos .

Em tal estrutura tributária e política, onde parcelas diminutas dos recursos e do poder são delegadas aos Estados e Municípios, tendem a ser naturalmente bastante reduzidas as possibilidades de municipalização dos serviços de saúde. Com efeito, o que se verifica nesta área é o distanciamento e mesmo o alijamento progressivo do município nas decisões que concernem à saúde dos cidadãos, embora freqüentemente sejam obrigados a assumir encargos muito além de suas possibilidades, como por exemplo, no campo da assistência médica.

As municipalidades ressentem ainda de um melhor assessoramento, por parte de órgãos federais e estaduais, no sentido de planejarem as ações de saúde que lhes competem por força da lei ou por pressões oriundas das camadas populares. Disto resultam ações descoordenadas, onerosas e de discutível eficácia, tais como a construção dos serviços hospitalares mal dimensionados, compra de equipamentos dispendiosos e de rápida obsolescência e de difícil manutenção, investimento em programas de controle de doenças com ênfase em ações curativas etc.

De tal contexto de má planifícação, reivindicações crescentes, embora legítimas, por parte da população, e ainda de pressões dos meios de comunicação e dos produtores de insumos médico-hospitalares para a aquisição indiscriminada dos mesmos, resulta freqüentemente a impossibilidade das Prefeituras assumirem algumas atribuições que lhes competem legalmente, tais como: a vigilância sanitária, o controle das zoonoses e o controle da qualidade ambiental.

Apesar de todos estes percalços, muitos deles revogáveis se existir por parte das autoridades na Nação, e particularmente dos constituintes de 87 decisão política de se promover a plenitude democrática e uma maior justiça tributária, acreditamos firmemente que a SAÚDE possa e deva ser MUNICIPALIZADA no Brasil. Não nos ateríamos a análises da atual Constituição, já no final de sua vigência, mas na qual as disposições municipalistas são numerosas. Utilizaremos como argumento principal aquele de que a SAÚDE É UM DIREITO DE TODOS OS CIDADÃOS, direito este verificado não apenas no plano individual (liberdade de escolha) como no plano coletivo (igualdade de acesso). É este "direito coletivo" à saúde que só pode ser garantido pela ação do poder público, enquanto exercido com a participação dos cidadãos e comprometido em fazer coincidir de maneira racional a distribuição dos benefícios e dos custos. Queiramos ou não, a única esfera de poder capaz de atender integralmente e com legitimidade estes dois pré-requisitos básicos é o governo municipal. É ele, como efeito, que inicia a cadeia de legitimação do poder, desde o nível local até o central; é o único que pode ser controlado diretamente pela população que lhe tem acesso garantido e que com ele se identifica; é o mais eficiente em realizar obras e serviços que constituem demanda real da comunidade a historia do Brasil e de outros países demonstra sobejamente estas afirmativas.

É preciso estarmos atentos, todavia, para urna questão de fundamental importância: quando defendemos a municipalização da saúde e outros setores primordiais, devemos estar alertas para que isto não se transforme em poderosa arma contra o Município. Já se disse a respeito e repetimos agora: os problemas, as dificuldades já estão, ou melhor, sempre estiveram, municipalizados. Portanto, a questão que se coloca agora é a de municipalizarmos também os recursos. E que estes sejam em quantidade necessária e suficiente para o atendimento aos encargos que sobrecarregam todos os municípios hoje. A luta pela municipalização não é, como alguns menos avisados poderiam supor, a busca de novas atribuições mas sim a reivindicação legítima que os recursos realmente cheguem até o município. É aqui que se insere a grande bandeira do movimento municipalista brasileiro, qual seja a luta por uma REFORMA TRIBUTÁRIA que realmente liberte do jugo centralizador os mais de 4.000 municípios do país.

 

COMO VEMOS AS "AIS" - AÇÕES INTEGRADAS DE SAÚDE

Ainda com relação ao tema da municipalização da saúde, gostaríamos de analisar as chamadas " Ações Integradas de Saúde", que hoje constituem a estratégia básica de aprimoramento qualitativo e quantitativo da oferta de serviços de saúde à população de todo o país, e que trazem em seu bojo o comprometimento da esfera municipal de governo. Não podemos nos esquecer que as AIS resultam de propostas geradas ao nível dos organismos centrais do sistema de saúde, às quais os municípios aderem por força de convênios. Ora, a palavra "convênio" tem raízes latinas que significam aproximadamente "vir junto" ou "caminhar junto". A nosso ver, só caminham juntos indivíduos que estejam em condições de igualdade, no mínimo quem tenha as "pernas do mesmo tamanho". Infelizmente, dos inúmeros convênios a que o município se vê obrigado a recorrer para não morrer à míngua, muitos realmente não estabelecem uma relação de sociedade e de compartilhamento de responsabilidades, mas sim de dominação. As Ações Integradas de Saúde ainda foram geradas no contexto antidemocrático e antimuni-cipalista. É preciso precavermo-nos contra algumas distorções e armadilhas que as mesmas possam apresentar.

Não há dúvida de que as AIS continuem uma das medidas racionalizadoras e redutoras de custos postas em prática pelo CONASP. Por outro lado, é uma reivindicação antiga dos municípios a participação da Previdência Social no custeio das ações de saúde, freqüentemente prestadas pelas municipalidades a uma clientela basicamente previdenciária, sem nenhum reembolso por parte do INAMPS.

Não encaramos as Ações Integradas de Saúde como uma concessão, nem mesmo como uma possível "salvação" das Secretarias ou Departamentos Municipais de Saúde, no sentido de torná-los auto-suficientes. As AIS constituem uma maneira realista e politicamente aceitável de aliviar a chamada crise da Previdência, na medida em que verbas destinadas ao setor privado são transferidas para o setor público, sabidamente mais eficiente em transformá-las em benefícios sociais. Não vemos as AIS como um fim em si mesmas. O objetivo final deve ser a unificação do Sistema Nacional de Saúde, e convênios como o presente devem ser encarados como etapas e estratégias que nos levarão a esta unificação.

Vemos nas AIS também uma possibilidade de descentralizar e democratizar a Saúde no país, o que só será obtido mediante instrumentos que garantam a participação comunitária nos serviços, não só a nível de execução de tarefas, como historicamente se verifica, mas também nas ações de planejamento e avaliação das mesmas. As CLIS Comissões Locais Interinstitucionais de Saúde, a nosso ver, constituem uma instância apropriada de viabilização destas propostas.

 

ASPECTOS OPERACIONAIS

A prática da Prefeitura Municipal de Uberlândia com as AIS, embora recente, já permite algumas considerações preliminares, levando-se em conta os aspectos altamente dinâmicos relacionados à gestão da atenção à saúde. Assim, poderíamos apontar o seguinte:

1 — As CLIS Comissões Locais de Integração em Saúde, instrumentalizadas pelo convênio que oficializa as AIS, devem representar a oportunidade real de as Prefeituras Municipais "sentarem-se à mesa das negociações" com relação aos Sistemas de Saúde locais. Isto significa participarem das definições de prioridades, localização de serviços, definição de critérios para contratação e locação de pessoal.

2 — Ao nível da Comissão Estadual (CIS), não há representação das municipalidades, funcionando como interlocutora das mesmas junto à Previdência Social a SÉS. Cremos que seria interessante rever esta questão, procurando-se uma abertura para a participação de representantes municipais nesta instância de decisão.

3 — Seria importante que as CLIS, e por extensão, que a própria definição das Ações Integradas de Saúde, influíssem não estritamente nas questões ligadas à assistência médica, mas também no sistema de saúde como um todo, como por exemplo em relação a programas de Odontologia, Vigilância Sanitária, Zoonoses etc.

4 — As AIS devem prever as imensas diferenças existentes entre os municípios brasileiros, dentro das estratégias de sua implantação. Com efeito, não se pode exigir do pequeno município organização administrativa, disponibilidade financeira ou mesmo competência técnica para arcar com os custos e dificuldades naturais da implantação de um Sistema Local de Saúde, muitas vezes inexistentes ou desestruturado por anos e anos de abandono por parte do poder central. O que vale, enfim, para um município de porte médio ou grande, como é o caso de nossa cidade e das capitais, não pode ser simplesmente estendido aos pequenos municípios, sob o risco de se causar um agravamento de seus problemas.

5 — Uma questão que requer mecanismos fundamentais políticos de intervenção e que constitui uma urgente prioridade para a rede de Serviços Básicos, é a de um Programa de Medicamentos compatível, mesmo em termos mínimos, com a nosologia prevalente. No nosso entendimento, é preciso articular uma ampla campanha de pressão política junto ao governo federal para que seja reativada a CEME e um Programa Nacional de Medicamentos.

6 — A experiência de Uberlândia tem demonstrado que deve ser buscado a todo custo o maior nível possível de integração interinstitucional local. Entretanto, devido à diversidade das características funcionais das instituições que atuam no setor saúde, é natural que inúmeras dificuldades e limitações surjam. Em linhas gerais, o que temos observado é que uma integração programática é mais facilmente obtida do que a integração administrativa. Por exemplo, temos procurado atuar de maneira uniforme em termos de programas de saúde (vacinação, prevenção do câncer, doenças transmissíveis etc) deixando que questões administrativas se mantenham de conformidade com as normas das instituições envolvidas, desde que isto não interfira com os objetivos dos serviços de saúde a serem prestados à população. A este respeito, uma verdadeira prioridade operacional é uma definição precisa, tanto quanto possível, dos níveis de competência de cada instituição no sistema local. Isto é importante no sentido de contribuir para que se inverta a tendência de que as Prefeituras sejam a "caixa de pancadas" de um sistema que não depende só delas. É dentro deste prisma que deve ser vista a questão da referência laboratorial e hospitalar, itens para os quais a maioria das Prefeituras não tem condições de fornecer respostas. Quanto a hospitalizações, cremos que o INAMPS deve estudar mecanismos que tornem mais flexíveis as metas de internamento dos hospitais contratados, particularmente onde o sistema hospitalar é unicamente privado.

Em conclusão, gostaríamos de ressaltar que as AIS representam, acima de tudo, uma abertura importante para que os Estados e as Prefeituras continuem a investir em programas de saúde. Não queremos, estaticamente, considerar este Programa apenas como algo "melhor do que nada", mas não nos isentaremos de continuar buscando soluções que atendam mais condignamente as necessidades de nossos munícipes.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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