REGISTRO

 

Lauro Travassos (1890 - 1970)

 

 

Luiz Fernando Ferreira

Vice-Presidente de Ensino da Fundação Osvaldo Cruz

 

 

Navita de ventis, de tauris
narrat arator,/Enumerat
miles vulnera, pastor oves.
Nós, falamos de Lauro Travassos

Lauro Pereira Travassos, nasceu em Angra dos Reis a 2 de julho de 1890. É um lugar bom. E porto seguro. Estreita faixa de terra, entre o mar e a serra do Ariró, no litoral sul do Estado do Rio.

Gabriel Soares escreveu: "Defronte desta ilha, na ponta dela, da banda de oeste, está a angra dos Reis; e corre-se esta ilha leste-oeste, e quem navegar entre ela e a Ierra firme não tem que recear, porque ludo é limpo e sem baixo nenhum".

E Pirajá da Silva acrescenta: "Aí os navios são abrigados de todos os ventos".

Um núcleo inicial de colonização já está estabelecido em meado do século XVII. Em 1556 chegam os primeiros colonos, e em 1608 já é a vila dos Reis Magos da Ilha Grande. Monsenhor Pizarro escreveu: "em 15 engenhos existentes no ano de 1749 se trabalhavam a cana para fabricar açucar e 91 engenhocas reduziam a mesma planta às aguas ardentes tão boas e perfeitas como as de Parati, que, comumente, se reputam por mais superiores". Em 1864 é o segundo porto do Brasil meridional. No catálogo dos municípios do Brasil lemos: "Muitos de seus filhos destacaram-se no cenário nacional; D. Luiz Antonio dos Santos, Marques de Monte Pascoal, arcebispo da Bahia; o padre Julio Maria, notável orador sacro; Lopes Trovão o republicano; Raul Pompéia; Dr. Joaquim Carlos Travassos, autor o "Dicionário dos Peixes"; Dr. Estevam José Pereira, autor do projeto de estrada de ferro entre Belo Horizonte e Belém do Pará; o almirante João Cândido Brasil, o general Silvestre Travassos e o brigadeiro Nóbrega, 1º ministro da Guerra do Brasil independente".

Nasceu na fazenda Japuíba. Em casa grande, colonial, cheia de quartos. Foi desapropriada, em parte, para a construção da estrada Rio—Santos.

Me contou Sebastião de Oliveira, que conheceu a fazenda, já então usada principalmente para excursões científicas e estudos de flora e fauna, mas que ainda produzia a cachaça Lourinho de excelente qualidade.

Pela lista de filhos ilustres, podemos constatar que os Travassos já estão radicados a longo tempo na região. De origem portuguesa, teriam ido seus bisavós inicialmente para a Iha Grande. Já em Angra, nasceram seus pais João de Matos Travassos e Laura Pereira Travassos.

Travassos nasceu em 1890. A república tinha apenas 1 ano. Saudades do velho Imperador estavam presentes em quase todos os corações. Assim me contava minha avó.

Alfredo Bosi escreveu na História Geral da Civilização Brasleira vol. III Tomo 2: "Matéria de pura memoria, retratos pendentes da parede de quartéis e salas ministeriais, parecem ser aqueles seus fundadores (da república) varões cenhudos saidos da Escola Militar, meio contianos, meio spencerianos, implacavelmente leigos e patrióticos. E em contraponto forçando a voz, para dominar o coro, outros varões barões, do direito e do café, que mais que os afoitos marechais Deodoro e Floriano, regeriam a política brasileira de Prudente de Morais e Washington Luis".

Eram os primeiros tempos da velha República. Insegura ainda, que tremeu medrosa quando os jagunços de Antonio Conselheiro, espetaram na ponta de um chuco, a cabeça decepada do coronel Moreira Cezar.

A falta de quadros, gente do império nos altos cargos. O onipresente Barão do Rio Brando. E até mesmo em Manguinhos, a grande figura do Barão de Pedro Afonso. Só depois é que Oswaldo reinaria sozinho.

Lauro Travassos se formou pela Faculdade de Medicina em 1913. Antes o colégio Alfredo Gomes. Temos poucas informações sobre seus tempos de estudante no Rio.

Mas não é difícil de imaginar. Era o Rio capital da República. Do início do século. Do comércio de porta em porta. Quitandeiro, peixeiro, amolador de faca, que sabia fazer cantar a lâmina na pedra de amolar. Do piriquito que tirava a sorte. Surgia o teatro Municipal, mas o lírico ainda estava de pé. Das "francesas" das companhias de teatro, que a sua maneira contribuíram muito para civilizar o Rio. Da revista Kosmos, Renascença, Floreal e Fon-Fon. De Bilac, João do Rio, Luis Edmundo, Carlos Maul e também de Lima Barreto. Das ruas imundas que Oswaldo e Pereira Passos iriam transformar. O Rio dos quartos de alcova, sem janelas. Quem tinha filha moça ou mulher bonita se cuidava. Do Contestado, Joazeiro e Canudos. Das primeiras greves operárias, dos imigrantes e dos anarquistas. A civilização vinha chegando aos poucos. Só muito tempo depois, em 1922, é que teríamos, a semana de arte moderna, a fundação do Partido Comunista, os tenentes do forte de Copacabana, e Jackson de Figueiredo fundava o Centro D. Vital.

A Faculdade de Medicina, ficava na Rua Santa Luzia. Ao lado da Santa Casa. Meu pai estudou lá. Ainda foi lá o meu curso de Anatomia Patológica. No Instituto Anatômico. Caindo aos pedaços, é verdade. Mas com um mestre inesquecível — Amadeu Fialho.

Na Faculdade pontificavam os homens da clínica: Aloisio de Castro, Antonio Austregésilo, Oswaldo de Oliveira. E, sobretudo, acima de tudo, Miguel Couto. Médicos, na devoção ao que sofre; na cabeceira do doente. Rico ou pobre. Medicina é ciência e sacerdócio. Esse o discurso da época.

E já havia Oswaldo em Manguinhos. A medicina experimental começava entre nós.

Em 1913 apresenta tese de doutorado intitulada: "Sobre as espécies brasileiras da sub-família Heterakinoe". Pura zoologia.

Em 1913 ainda publica seus primeiros trabalhos nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.

Coura escreveu: "a estreia de Lauro Travassos como autor nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, o primeiro em colaboração com Gomes de Paiva, e dois outros como autor único, inclusive iniciando a longa série "Contribuição para o conhecimento da fauna helmintolójica brasileira", abre uma linha a que se dedicou o resto de sua visa. De fato Travassos é o mais conhecido pesquisador brasileiro no exterior, pelas centenas de espécies novas que descreveu".

Centenas de espécies novas, e centenas de discípulos que formou. Era um mestre, formou escola.

Estudou na Faculdade de Medicina e trabalhou num Instituto de Medicina Experimental, mas sua contribuição fundamental foi a zoologia.

Essas coisas sempre aconteceram aqui. Só tivemos Universidade em 1920. Aprendia-se em lugares errados. Mas dava certo. O que vinha da Europa ganhava cor local. Era o sol do trópico. O lado de baixo do Equador.

Sérgio Buarque de Holanda escreveu em Raízes do Brasil: "a tentativa de implantação da cultura européia, em extenso território, dotado de condições naturais se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar é nas origens da sociedade brasileira o fato dominante e mais rico em conseqüências".

É um pouco também de autodidatismo, de iniciativa individual, de criatividade. Assim surgiu o método da "guerra brasilica" que tanto trabalho deu aos experimentados cabos de guerra do príncipe João Mauricio de Nassau.

Saíram dos colégios dos Jesuítas (dispensados do recrutamento militar) os soldados competentes que defenderam Olinda (1630) e Bahia (1638) contra os holandeses e o Rio de Janeiro (1710—1711) contra os franceses.

A Fisiologia surgiu como empreendimento familiar no porão da casa dos Osório de Almeida.

Um centro de Medicina experimental surgiu, do que estava destinado a ser uma fábrica de soros e vacinas.

Também a Escola Militar, oferecendo ensino gratuito, casa, comida e roupa lavada, oferecia oportunidade de estudos aos mais pobres.

Me vem à memória a figura inesquecível de meu tio Ari Quintela. Morreu general, depois de uma vida inteira dedicada ao estudo e ensino da matemática. De Maurilio Cunha, também meu parente, oficial do exército e grande professor de História. De Pedro Pinto Peixoto, pai de um grande amigo, Fernando, que expulso da Escola Militar, tornou-se zoólogo do Museu Nacional. Especialista em aves, e dos bons.

E havia espaço, e assim se abriam os caminhos. Ainda Sérgio Buarque: "o prestígio pessoal independente do nome herdado manteve-se continuamente, nas épocas mais gloriosas das nações ibéricas. Nesse ponto ao menos, elas podem considerar-se legítimas pioneiras da mentalidade moderna".

"Toda gente sabe que nunca chegou a ser rigorosa e impermeável a nobreza lusitana".

Afinal de contas, um Pedro I criado nas estrebarias, amigo de cavalariços, semi-analfabeto, independente, audaciosa , freqüentador de bordéis de 3ª, não era exceção. Era a regra.

Exceção foi Pedro II.

Em 1913, com seus primeiros trabalhos Lauro Travassos cria a Escola Brasileira de Helmintologia.

Mas corno não podia deixar de ser, vamos encontrar os antecessores. Os anteriores. Alguns fascinantes. Não podemos passar sem uma breve referência. Se dou largas à fantasia, e se não são rigorosos demais em metodologia, os companheiros aqui presentes, citarei em primeiro lugar essa figura extraordinária que foi Gabriel Soares de Souza, senhor de engenho em Jaguaripe e Jaquiriçá. Morreu mato adentro, em busca das minas de prata. Foi bandeirante, mas foi também botânico, zoólogo, geógrafo, antropólogo e helmintologista.

Do Tratado descritivo do Brasil de 1587 transcrevo:

"E também serve esta carimá para os meninos que tem lombrigas, aos quais se da a beber, desfeita na agua, como fica dito e mata-lhes as lombrigas todas" .

E ainda:

"Tem esse gentio outra barbaria muito grande, que se tomam qualquer desgosto, se arrojam de maneiro que determinam de morrer, e poem-se a comer terra, cada dia um pouco, até que vem a definhar e inchar do rosto e olhos e a morrer disso, sem lhe ninguem poder valer, nem desviar de se quererem matar; o que afirmam que lhes ensinou o diabo e que lhes aparece como se determinam a comer terra".

Clara alusão a geofagia do ancilostomótico.

E houve também a Escola Tropicalista Bahiana: em 1866 Wucherer confirmava os estudos de Dubini sobre ancilostomose. Em 1876 Silva Araújo publicava seus estudos sobre filariose.

E houve também Pedro Severino de Magalhães, cirurgião dos melhores, catedrático de cirurgia na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e helmintologista nas horas vagas. Em 1898 descrevia o Hymenolepis carioca de ave doméstica. Descreveu uma filaria no coração de uma criança que, em sua homenagem, foi denominada por Blanchard, Dirofilaria magalhensi.

Os estudos de Lutz sobre ancilostomose e esquistossomose. E Pirajá da Silva. E Gomes de Faria, com quem Travassos publicaria o seu primeiro trabalho, tratando do encontro de Linguatula serrata no intestino do homem.

Em Manguinhos trabalhou durante toda a sua vida. Oswaldo abria espaço para qualquer tipo de ciência. Desde que fosse de qualidade. Era assim naquele tempo. E incorporou no seu trabalho, uma tradição que vinha do Museu Nacional. Do tempo do império, a zoologia. A sistemática. Ao longo de sua vida publicou 440 trabalhos sobre Helmintologia e Entomologia. Todos em português.

Conta Hugo Souza Lopes, em depoimento à Casa de Oswaldo Cruz:

"Quando John Lane em sua juventude realizou um curso em Harvard, o professor declarou, que os alunos que podiam ler português estavam em vantagem. Tinham condições de estudar no livro do Prof. Costa Lima".

Eram outros tempos. De ciência lúdica gostosa, feita por paixão, com fé. Eu diria religiosa. A dedicação de Anchieta, mas com um pouco também de João Ramalho ou Caramuru. Afinal de contas as índias eram muito bonitas e viviam peladas.

Aprendi um pouco dessa época com Eduardo Marques, com Oliveira Castro, Lobato Paraense, Herman Lent, Hugo Souza Lopes.

Descobertas originais eram publicadas em "O campo", em "Chacaras e Quintais", ou nos jornais da época.

Ainda Hugo Souza Lopes: "Quero chamar a atenção sobre a importância dessas despretenciosas publicações de divulgação científica, como Chácaras e Quintais e O campo, que tiveram uma função muito importante durante certa época".

Pedro Severiano de Magalhães publicou no Jornal do Commercio seus estudos sobre o berne, a traça e o caruncho dos livros.

Isso me lembra a seriedade e o empenho com que meu pai editava Vida Médica. Como sozinho fazia a correção das provas, a seleção dos artigos, a diagramação. E como se demitiu, quando o laboratório que financiava quis lhe impor determinadas regras.

Em 1926 Travassos assume a cátedra de Parasitología da Faculdade de Medicina de São Paulo. Com a colaboração de Cezar Pinto renova o ensino, com o desenvolvimento dos trabalhos práticos, dando mais objetividade e estimulando vocações. Formar escola — isso ele vai fazer durante toda a sua vida.

Como aliás outra figura inesquecível, que mais tarde assumiria a mesma cátedra — Samuel Bansley Pessoa.

Em 1929 a convite de Fülleborn, o grande helmintologista alemão, vai para o Tropeninstitut, em Hamburgo. Lá pontifica. Embora só falasse português. Me relatou Frederico Simões Barbosa, que tendo ido a Congresso Internacional de Zoologia em Londres, lá encontrou Travassos. Todos queriam conhecer o grande mestre, que timidamente pede a Frederico:

— Fica perto de mim. Me serve de intérprete.

Em Hamburgo se torna amigo de José Oiticica. Outra figura inesquecível. Professor de Português do Colégio Pedro II. Anarquista no velho estilo. Daqueles que tinham sempre em casa, pronta, uma maleta com pijama e camisas e cuecas, porque nunca sabiam quando a polícia vinha prendê-los.

Viajar à Europa nesse tempo, quando não se tinha bens de família era difícil. Não havia CNPq, nem CAPES, nem FINEP. Contava meu pai, que um dos recursos para estudar na Europa, era se empregar como médico de bordo em navio do Lloyd, que ia para o estaleiro na Europa. Enquanto o navio era consertado se aproveitava para freqüentar os centros médicos e estudar.

Foi ainda professor da Escola de Veterinária. Pela lei da desacumulação optou por Manguinhos, tendo sido substituído por seu discípulo Hugo Souza Lopes, após renhido e elegante concurso disputado com Jaime Lins e Silva.

Uma das experiências educacionais mais importantes no Brasil, a Universidade do Distrito Federal, liderada por Anisio Teixeira, criava entre nós os cursos de Ciência. Foi de curta duração, porém marcou. Travassos era o professor de zoologia, tendo Herman Lent como assistente.

Foi ainda membro da Academia Brasileira de Ciências, e entre sua numerosa obra deixou um livro até hoje consultado pelos que desejam se iniciar na especialidade: Introdução ao Estudo da Helmintologia. Está pedindo uma edição atualizada, aos discípulos em atividade.

Mas foi em Manguinhos que desenvolveu durante sua longa vida e trabalhou até o fim, os estudos que o notabilizaram.

Era um laboratório modesto. De poucos recursos. Um microscópio servia a vários pesquisadores. Mas havia entusiasmo, havia paixão. Por isso deu certo.

"Fé eterna na ciencia" escreveu Oswaldo no seu ex-libris. E assim, religiosamente, seus discípulos se dividiam em dois grupos: os aristocratas, de temo bem cortado, gravata bem-posta, gestos elegantes. Eram bem nascidos, ou gostariam de ter sido, os cardeais da ciência.

Os plebeus, mal ajambrados, terno de brim amassado, calça sem vinco, colarinho torto. Eram mal nascidos. Ou gostariam de ter sido. Os franciscanos da ciência.

Travassos pertencia ao segundo grupo. A camisa muitas vezes queimada pelo cigarro, que distraidamente nela encostava. Cigarros Distintos. Um senhor mata-ratos. Ninguém filava.

Conta Sebastião Oliveira que durante certa época usavam Fermento Fleishman nos trabalhos do laboratório.

Travassos passa pela padaria e resolve comprar uma certa quantidade.

— O senhor tem Fermento Fleishman? Pergunta ao dono da padaria. Ao que o outro responde:

— Como o senhor sabe está em falta, mas para um colega, sempre se pode arranjar um pouco.

Era um laboratório pobre. Mas onde se trabalhava muito. Se sabia improvisar.

Hobsbown escreveu: "Ele (Napoleão) jamais construiu um sistema efetivo de suprimento, pois se apoiava nos campos. Jamais foi amparado por uma indústria de armamentos minimamente adequada a suas necessidades triviais. Mas ele venceu suas batalhas tão rapidamente, que necessitava de poucas armas. Em 1806 a grande máquina do exército Prussiano ruiu perante um exército em que uma unidade militar inteira disparou somente 1.400 tiros de canhão. Os generais podiam confiar um uma coragem ofensiva ilimitada e em uma quantidade razoável de iniciativa local".

Travassos simbolizou uma época. Pelo conteúdo de seus trabalhos, foi distinguido ao nível internacional com admiração de seus pares. Dese disse Sorjabin, o senhor todo-poderoso, na Academia de Ciências de Moscou — irmão de Molotov:

— "É o maior helmintologista do mundo".

A escola brasileira de Helmintologia, se projetou no cenário internacional. Travassos no Brasil, como Skrjabin da União Soviética, Szidat da Alemanha, Dolffus da França, Stiles e Hassal, Stumkard dos E. U. A, Cabalero do México, Yamaguti do Japão, entre outros.

Lembra uma história mais antiga. Huxley de Londres, Hoeckel de Berlim e Fritz Müller, de Desterro, Santa Catarina, Brasil.

Travassos simbolizou uma época. A nível nacional, as grandes dificuldades em fazer ciência, num país como o nosso. Sem dívida muito mais difícil do que hoje.

Mas dava-se um jeito. A casa era pobre. Mas como em toda casa pobre, havia sempre lugar para mais um. Era só chegar, pedir estágio e ia ficando. Aprendia e ficava contente. Ninguém ia depois à justiça do trabalho dizer que tinha sido explorado. Se trabalhava por amor. Quem se aposentava continuava a trabalhar. Tudo igualzinho como antes. Só mudava o local de receber dinheiro no fim do mês. Ninguém se aposenta do que é bom. Vivia-se com pouco. O consumismo náo tinha as proporções dos dias de hoje.

Conta Hugo Souza Lopes: "Quando Travassos se casou Oswaldo o chamou e disse:

— "Você se casou não é, então precisa ganhar um pouco mais".

Quando comecei a trabalhar, com José Rodrigues da Silva, na então Cadeira de Doenças Tropicais, da Faculdade Nacional de Medicina, Universidade do Brasil, os salários variavam de acordo com a condição de solteiro ou casado, de família pobre, remediada ou rica.

Já era arcaico é verdade. Mas o ambiente era bom. Aprendia-se. Ninguém reclamava.

Afinal de contas já houve alguém que disse qualquer coisa do tipo: "a todos de acordo com suas necessidades; de todos segundo suas possibilidades".

Travassos chegava cedo ao laboratório. Gostava de ser o primeiro a chegar. Gozador, perguntava aos que chegavam depois:

— Veio para o almoço?

Com expressões próprias era um gozador carinhoso. Querendo que estudassem mais dizia a seus alunos:

— "Acho que vocês estão com Gutembergofobia" ou quando não sabiam responder a uma pergunta:

— "Oh! Oceano Pacífico" — nessa época fundo era sinônimo de incompetente. Para arrematar em seguida:

— "Ô gaita, presta atenção, vou te explicar".

Sedutor, formou escola, fez discípulos. Não os enumero, são muitos, certamente esquecerei alguns, não quero cometer injustiças. Deixo a tarefa aos historiadores profissionais, que hoje na Casa de Oswaldo, se dedicam a recuperar a memória da Ciência e da Saúde no Brasil.

E não só na Helmintologia, mas na Entomologia, especialidade a que também dedicou grande parte dos seus esforços. Abriu caminho no meio científico para quem tinha mérito, competência. Lembra-me a Delir, a história de Romualdo Ferreira D'Almeida. Entomologista competente, especialista em borboletas. Por falta de títulos universitários, trabalhava como carteiro para garantir o seu sustento. Travassos o trouxe para Man-guinhos. Um dia conseguiu transferência para a carreira de biologista.

Lembra Fabre, professor de meninos, no interior da França.

Embora suas publicações se refiram especialmente a sistemática, tinha conhecimentos vastos em Biologia e História Natural. Influenciou direta ou indiretamente novos caminhos.

Em 1966 Moussatché, Lent e Ubatuba publicam o primeiro trabalho, entre nós, sobre hormônio juvenil em insetos. É a integração de duas escolas de Manguitos. Miguel Osório e Lauro Travassos.

E tinham as excursões. Ficaram famosas. São muitos os retratos documentando. Relações pessoais de amizade permitiam conseguir um vagão da estrada de ferro no qual instalava-se o laboratório. E foram muitas as viagens a Salobra no Mato Grosso, e muitos os trabalhos científicos que delas resultaram.

E aí está a coleção helmintológica do Instituto, mostrando o que se pode fazer com parcos recursos.

Os animais capturados, para autópsia, eram freqüentemente servidos no almoço ou no jantar.

Travassos era um homem simples. Não queria cargos. Não acrescentariam nada a sua vaidade. O seu prestígio era de chefe de escola. Ele era, não estava.

Teve uma mulher dedicada. D. Odete, que sabia fazer render o seu curto salário. E filhos três dos quais naturalistas como ele. Lauro, Haroldo, Heraldo e Odete.

Faleceu a 20 de novembro de 1970. Tinha oitenta anos. Trabalhou até o fim. Uma vida dedicada à ciência. Morreu em Manguinhos. No Hospital de Manguinhos, tratado por outro inesquecível companheiro o Dr. Genard Nóbrega.

Críticas também foram feitas à obra de Lauro Travassos. Mas já falamos demais. É hora de terminar. E em resposta sucinta a esses críticos, terminamos em latim, já que em latim começamos:

Feci quod potui, fasciant meliora potentes.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br