PESQUISA/RESEARCH

 

A baixa qualidade do soro caseiro em Salvador, Brasil

 

 

Fernando Martins CarvalhoI; Paulo Márcio Soares Pereira; Maria Cruz; Maria Rita Widmer; Victor PalomoII; Hugo Ribeiro JuniorIII

IDepto. Medicina Preventiva, Universidade Federal da Bahia, rua Padre Feijó, 29/4o andar, 40140 - Salvador, BA
IIBolsistas do CNPq
IIIDepto. de Saúde Materno-Infantil Universidade Federal da Bahia

 

 


RESUMO

Durante o ano de 1988 foi realizada uma campanha de âmbito nacional com o objetivo de informar a população brasileira sobre o preparo e utilização do soro caseiro (solução sal/açúcar para reidratação oral). A campanha foi intensivamente divulgada pelos meios de comunicação de massa. Este estudo preliminar avaliou a qualidade do soro caseiro preparado por 23 mães de crianças internadas num hospital pediátrico de Salvador, Bahia. Catorze (60,9%) dentre as 23 mães prepararam soluções, contendo concentrações de Na na faixa de 30-80mmol/L, recomendada pela Organização Mundial da Saúde. Onze (47,8%) soluções continham glicose dentro da faixa recomendada, de 30-112 mmol/L. Apenas seis (26%) das 23 mães prepararam soluções com concentrações adequadas de Na e glicose simultaneamente e, destas, somente três (13%) apresentavam, também, balanço adequado das concentrações dos eletrólitos. Características potencialmente iatrogênicas devido a elevadas concentrações de Na e glicose foram encontradas em 30,4% e em 43,5% das soluções, respectivamente. Os resultados revelam grande dificuldade das mães em preparar o soro caseiro com características adequadas para sua utilização numa campanha de controle da diarréia.


ABSTRACT

In 1988 a nation-wide campaign aiming to inform the Brazilian population about preparation and use of simple sugar/salt oral rehydration solution (ORS) was carried out. The campaign was massively shown by the media. This preliminary study assessed the quality of ORS prepared by 23 mothers of in-patient children from a pediatric hospital in Salvador, State of Bahia. Fourteen (60.9%) among the 23 mothers prepared solutions containing Na concentrations ranging from 30 to 80 mmol/L which is recommended by the World Health Organization. Eleven (47.8%) solutions contained glucose within the recommended range of 30 to 112 mmoI/L Only 6 (26%) out of the 23 mothers prepared ORS with simultaneously adequate Na and glucose concentrations. However, just 3 (13%) out of these 6 ORS also presented balanced electrolyte concentrations. Potential iatrogenicity due to high concentrations of Na and glucose was found in 30.4% and 43.5% of the solutions, respectively. These data raise serious concerns about the quality of home-made sugar/salt ORS, and therefore about its use as a safe agent in a campaign of diarrhoeal diseases control.


 

 

INTRODUÇÃO

A diarréia é a principal causa de óbito em menores de cinco anos nos países não-desenvolvidos1. Em Salvador, Bahia, no ano de 1983, a diarréia foi responsável por 34% das mortes em menores de um ano de idade2. Estima-se que 60 a 70% das mortes por diarréia devam-se à desidratação que atinge, principalmente, as camadas sócio-econômicas mais baixas3. A Terapia da Reidratação Oral (TRO) tem sido proposta como uma maneira de se corrigir e evitar a desidratação4. A partir de 1988, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Unicef, SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) e Ministério da Saúde elaboraram unia campanha que foi veiculada, intensivamente, nos meios de comunicação de massa, com o objetivo de orientar a população quanto ao manejo da criança com diarréia5. Esta campanha contou com a colaboração de artistas, médicos e da comunidade em geral, explicando às mães a técnica de preparo do "soro caseiro" (solução de sal e açúcar). As propagandas enfatizavam detalhes da preparação do soro com a colher-medida fabricada pela TAPS ou usando-se uma pitada de três dedos de sal e um punhado de açúcar em um copo de água. A solução obtida deveria ter "gosto de lágrima". A Igreja, através de 50 mil líderes comunitários da Pastoral da Saúde, divulgou o Programa Nacional do Soro Caseiro por todo o país.

O presente estudo tem como objetivo avaliar a qualidade do "soro caseiro", preparado por mães de crianças internadas num hospital de reidratação.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Foram selecionadas 23 mães de crianças menores de quatro anos de idade, internadas no Hospital Pediátrico do Inamps, Salvador, Bahia, em janeiro de 1989. O tamanho desta amostra foi determinado arbitrariamente, dependendo da capacidade de três entrevistadores, trabalhando durante as duas horas disponíveis no horário de visitas, em três ocasiões.

As mães foram convidadas a reproduzirem a técnica de preparo do "soro caseiro", numa cozinha improvisada para tal fim nas dependências do hospital. Foram-lhe apresentados 20 tipos de copos, quatro tipos de sal e quatro tipos de açúcar, disponíveis no comércio. Foi deixada às mães a livre opção para utilizarem o método "punhado-pitada" ou o da colher-medida da TAPS5. As concentrações de sal e de açúcar foram determinadas gravimetricamente e daí derivadas as concentrações de Na e de glicose, expressas em mmol/L. O volume de água usado por cada mãe para preparar a solução era medido com uma proveta graduada. Antes de serem diluídas, as massas de sal e de açúcar eram determinadas com precisão de até centésimo de grama numa balança Mettler.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O volume de água preconizado pela Campanha5 era de 170 ml, mas, neste estudo, variou em decorrência do "conceito" de copo (entendido como vasilhame, ao invés de uma medida) atribuído pelas mães: 55 a 1.000 ml, com média aritmética e desvio padrão de 226 + 247 ml. Obviamente, a variação do volume influiu nas concentrações dos eletrólitos numa dada solução.

O preparo adequado da solução de reidratação oral é de fundamental importância para que o efeito terapêutico possa ser obtido. O transporte de Na, água e glicose acha-se acoplado a nível do intestino delgado, de tal maneira que a glicose acelera a absorção de sódio e água6. Entretanto, este mecanismo necessita que as concentrações de Na e de glicose obedeçam a uma razão de 1:1 a 1:1,48.

A Tabela I mostra que 14 (60,9%) dentre as 23 mães preparam soluções com concentrações, variando na faixa de 30 a 80 mmol/L, recomendada pela OMS 8. Entretanto, experimentalmente, concentrações menores que 60 mmol/L causam secreção, ao invés de absorção, de Na para a luz intestinal7. Estas baixas concentrações, freqüentemente, não corrigem a hiponatremia em crianças, durante a reidratação oral9,10. Revisões críticas do conhecimento científico sobre o tema indicam que a concentração de Na deve estar na faixa de 50-60 mmol/L9 ou de 60-90 mmol/L4 . Apenas seis (26%) dentre as 23 mães prepararam soluções dentro da faixa de 60-90 mmol/L. A Tabela I mostra que concentrações abaixo de 30 mmol/L foram encontradas em duas soluções (8,7%), sem algum efeito terapêutico e provável efeito iatrogênico.

 

 

A Tabela II mostra que 11 (47,8%) soluções continham glicose numa concentração, variando de 30 a 112 mmol/L, conforme recomendado pela OMS8 . Dez (43,5%) soluções excederam o limite máximo de 112 mmol/L. Sete (30,4%) das 23 soluções apresentaram concentrações maiores que 150 mmol/L que, segundo os experimentos de Lifshitz e Wapnir 7, causam diarréia osmótica.

 

 

A OMS8 estabeleceu alguns critérios para que uma solução caseira de reidratação oral seja considerada não-iatrogênica. Pelo menos 90% das mães deve preparar soluções do soro caseiro que não excedam os limites superiores de Na (80 mmol/L) e de glicose (112 mmol/L). Não mais que 2% das soluções devem ter concentração de Na superior a 120 mmol/L. No presente estudo, 30,4% das soluções tinham excesso de Na e 43,5%, excesso de glicose. Concentrações de Na acima de 120 mmol/L foram encontradas em 17,4% das soluções.

Os dados apresentados na Tabela III permitem concluir que as mães tenderam a preparar soluções com mais açúcar e com mais sal do que o recomendado pela OMS8. Seis (26%) das soluções tinham concentrações de Na e de glicose simultaneamente dentro destas faixas recomendadas e apenas três (13%) estavam, ainda, adequadamente balanceadas, na razão de 1:1 a 1:1,4. Entretanto, a evidência disponível numa revisão da literatura científica9 e num estudo experimental7 sugere que a razão ideal das concentrações de Na e glicose deve ser de aproximadamente 1:2. Todas as 23 mães referiram ter conhecimento da Campanha do Soro Caseiro, veiculada principalmente pela televisão.

 

 

Os possíveis sucessos obtidos pelas campanhas de controle da diarréia no Brasil não devem ser creditados aos efeitos terapêuticos do soro caseiro, mas também a outros aspectos como educação sanitária, demanda precoce aos serviços de reidratação, etc.

Características das soluções, recomendadas pela OMS9 :

- Sódio: 30 a 80 mmol/L.

- Glicose: 30 a 112 mmol/L.

- Balanço sódio: glicose na razão de 1:1 a 1:1,4.

Os resultados obtidos revelam grande dificuldade na elaboração do soro caseiro dentro das concentrações recomendadas pela OMS8, conforme já observado em estudo prévio11. Este fato contraria as expectativas otimistas do Programa Nacional do Soro Caseiro no Brasil, fundamentadas num Documento Técnico5. É inaceitável que uma campanha de tal porte e custo fundamente-se em bases científicas tão frágeis e questionáveis. Uma análise preliminar deste Documento já revela sérias deficiências:

a) Os estudos de validação do método punhado-pitada basearam-se numa amostra de apenas oito mães.

b) Os volumes de água, sal e açúcar propostos pelo método foram obtidos através de meros cálculos estequiométricos, sem que fossem efetivamente realizadas medidas laboratoriais das concentrações nas soluções (nem todo sal de cozinha é puro cloreto de sódio; nem todo açúcar é sacarose pura).

c) Aceitação acrílica das recomendações da OMS para o balanço (proporcionalidade) entre as concentrações de Na e glicose.

d) Extrapolação inadequada dos conceitos de segurança e eficácia das soluções caseiras.

A forma como a campanha foi veiculada pelos meios de comunicação de massa polarizou sua mensagem em torno de aspectos místicos e simbólicos do soro caseiro. A elevada morbi-mortalidade por diarréia na infância tem etiologia multifatorial e esta dívida social não poderá ser resgatada com medidas simplistas e de baixo impacto social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - PUFFER, R.R. e SERRANO, C.V. - Características de la mortalidad en la niñez. OPS Publ.Cient. No 262 (1973).        

2 - MS/SNABS/DNE, Brasil - Estatísticas de mortalidade. Brasil, 1983. MS, Brasília (1987).        

3 - OMS/UNICEF - El tratamiento de la diarrea y uso de la terapia de reidratación oral. OMS, Genebra, 2a ed. (1985).        

4 - Organización Panamericana de la Salud - Manual de tratamiento de la diarrea. Serie Paltex No 13 (1987).        

5 - MS/CNBB/SBP/UNICEF, Brasil - Programa Nacional do Soro Caseiro. Documento Técnico. MS, Brasília (1988).        

6 - Editorial - Water with sugar and salt. Lancet ii: 300-301 (1978).        

7 - WAPNIR, R.A. e LIFSHTZ, F. - Oral hydration solutions: experimental optimization of water and sodium absorption. J. Pediatr. 106: 383-389 (1985).        

8 - World Health Organization - A decision process for establishing policy on fluids for home therapy of diarrhoea. WHO/CDD/SER/87. 10 (1987).        

9 - FARTHING, M.J.G. - History and rationale of oral rehydration and recent developments in formulating an optimal solution. Drugs 36 (Suppl. 4): 80-90 (1988).        

10 - NALIN, D.R.;HARLAND, E.; RAMLAL, A.; SWABY,D.; MCDONALD, J.; GANGAROSA, R.; LEVINE, M.; AKIERMAN, A.; ANTOINE, M.; MACKENZIE, K.; JOHNSON, B. - Comparison of low and high sodium and potassium content in oral rehydration solutions. J.Pediatr. 97: 848-853 (1981).        

11 - BARROS, F.C. e VICTORA, C.G. - Avaliação do manejo da diarréia em menores de cinco anos no Nordeste do Brasil. J. Pediatria 65: 420-459 (1989).        

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br