ARTIGO ARTICLE

 

Violência para todos

 

Violence for all

 

 

Maria Cecília de S. MinayoI; Edinilsa R. de Souza II

ICoordenação de Pós-Graduação da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 3º andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo trata a problemática da violência social através do quadro de mortalidade por causas externas no Brasil, com ênfase na situação do município do Rio de Janeiro. São utilizados dados de mortalidade do Ministério da Saúde, consolidados pelo Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública, no período de 1980 a 1988. São apresentadas a mortalidade proporcional e as taxas de mortalidade por causas externas segundo sexo, idade, grupos específicos de causas externas, tipos de homicídios e acidentes de trânsito. Apesar de se tratar, basicamente, de um trabalho descritivo, faz-se aqui também uma reflexão sobre os homicídios, considerando-os como o fenômeno gerador de morte mais significativo na configuração da violência brasileira hoje.

Palavras-chave: Violência; Mortalidade; Epidemiologia; Sociologia


ABSTRACT

This paper investigates the problem of social violence based on the situation for mortality from external causes in Brazil, particularly in the city of Rio de Janeiro. Mortality data from the Brazilian Ministry of Health (consolidated by the Department of Epidemiology of the National School of Public Health in the period 1980-1988) are used in this study. Proportional mortality and mortality rates from external causes are given according to sex, age, specific groups of external causes, types of homicides, and traffic accidents. Despite being basically a descriptive study, this paper also studies homicides as the most significant cause of death in the configuration of violence in Brazil today.

Keywords: Violence; Mortality; Epidemiology; Sociology


 

 

INTRODUÇÃO

Ao longo da década de 80, ocorreram mudanças importantes no perfil de mortalidade do país. As chamadas "doenças do desenvolvimento" assumiram o papel das principais causas de óbito. Realizou-se uma transição epidemiológica onde as doenças do aparelho circulatório, as neoplasias e as causas externas são, nesta ordem, responsáveis pela maioria dos óbitos da população brasileira (Szwarcwald, 1987).

Nesta década, por um lado, ressurgem epidemias de doenças anteriormente controladas. Por outro, observa-se o crescimento de outras tantas endemias, refletindo a deterioração das condições de vida e de saúde associada à precária atuação da combalida rede de serviços públicos de saúde.

A violência apresenta-se, nesta década, como fenômeno cujas facetas são objeto de apreensão no cotidiano, pelo desencadeamento de temor generalizado aos assaltos, seqüestros e assassinatos. Ela também passa a ser objeto de reflexão por parte de várias áreas do saber, entre elas a Saúde Pública, pelo papel que assume diante da morbi-mortalidade, vitimizando crianças, jovens, adultos e idosos indiscriminadamente (Minayo, 1990a).

Tendo como característica essencial o fato de ser fenômeno social, travado a nível das relações sociais, a violência é também responsável, em suas manifestações específicas, por uma série de agravos à saúde (como maus-tratos a crianças, espancamento de mulheres e outros) (Assis, 1991; Claves/Cepeba/ESS da UFRJ, 1990). Sua pior consequência vem a ser a morte, especialmente pelos crimes cometidos no trânsito e pelos assassinatos, estes últimos ceifando sobretudo jovens brasileiros.

As formas específicas de violência estão presentes, em maior ou menor intensidade, em todas as regiões do país e nos diversos grupos sociais (Dados, 1985; 1990). Perpassam as várias fases da vida e se instauram nas mais variadas relações humanas. Juntos, os diversos tipos de violência constituem uma rede intricada e complexa, na qual todos (cada um a seu modo) são vítimas e autores a um só tempo (Boulding, 1981; Domenach, 1981). Tal como numa epidemia, todos são afetados pela fonte comum de uma estrutura social desigual e injusta, que alimenta e mantém ativos os focos específicos de violência, os quais se expressam nas relações domésticas, de gênero, de classes e no interior das instituições.

Neste artigo, focalizam-se, particularmente, dados sobre a realidade urbana. A violência, que atinge a todos enquanto sujeitos e vítimas, atinge também a população do campo, sobretudo os trabalhadores, seja nas suas formas fatais, seja em manifestações tais como lesões físicas, psíquicas e simbólicas (Almeida, 1988). Mas o fenômeno assume maiores proporções nas relações sociais das grandes regiões metropolitanas e urbanas, onde se concentra, hoje, a maioria da população (75%, segundo dados recentes do IBGE) (FIBGE, 1991).

Por outro lado, do ponto de vista explicativo, não se pode separar o que ocorre nas cidades sem referenciá-lo à política industrial e agrícola que, a partir da década de 50 (e configurando-se de formas diferenciadas até o presente momento), tem sido responsável pela expulsão de populações rurais para os centros urbanos, seja como forma de se criar mão-de-obra industrial, em um primeiro momento, ou como forma de racionalizar a produção agrícola. Portanto, a violência social urbana resulta de relações que não se dissociam em termos de urbano-rural, mais que se completam, embora haja diferenciações profundas na configuração de ambas, tendo em vista as estruturas, os sujeitos e os interesses envolvidos nas suas formas particulares de expressão.

 

METODOLOGIA

O objeto deste estudo é a violência social, a partir dos dados de mortalidade por causas externas (acidentes e violências), cuja codificação na Classificação Internacional de Doenças (CID), nona revisão, compreende as categorias E800 e E999.

Objetiva-se efetuar uma análise descritiva desta mortalidade nas capitais das principais regiões metropolitanas do país, com destaque para o município do Rio de Janeiro.

São utilizados dados de mortalidade do Ministério da Saúde, consolidados pelo Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública, no período de 1980 a 1988.

São apresentadas a mortalidade proporcional e as taxas de mortalidade por causas externas, segundo sexo, idade, grupos específicos de causas externas, tipos de homicídios e acidentes de trânsito. Busca-se aprofundar uma reflexão analítica sobre a problemática dos homicídios.

 

APRESENTAÇÃO DOS DADOS

Mortalidade nas Capitais das Regiões Metropolitanas

Nas capitais das principais Regiões Metropolitanas do país, a mortalidade por causas externas (acidentes, suicídios e homicídios) representa, entre 1980 e 1988, mais de 10% de todos os óbitos ocorridos. Este percentual tende a crescer lentamente no período: em 1980 corresponde a 10,5% e em 1988, a 12,3%.

Entre algumas capitais, o crescimento da importância das causas externas no obituário geral foi mais intenso, como pode-se ver na Tabela 1.

 

 

Em 1988, as causas externas situam-se pelo menos entre as quatro principais causas de óbito nas capitais brasileiras. No período estudado, Curitiba e Goiânia aparecem com os maiores percentuais. Em Recife e Salvador observam-se os maiores crescimentos (4,1%), passando de 6a causa, em 1980, para 2a e 3a, respectivamente, no final da série histórica. Em seguida vem Goiânia, com os maiores percentuais no período, e São Paulo, com 2,7 pontos percentuais de crescimento da proporção de mortes por causas externas, passando da quarta para a terceira posição.

Dados ainda não publicados da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro informam que, em 1989, as causas externas assumem a segunda posição no obituário geral da capital, com a proporção 13,8% de óbitos, equivalente a um crescimento de 1,4% em relação a 1988.

O sexo masculino responde por 81,8% dos óbitos por causas externas, sendo que cerca de 65% deles compreendidos entre 15 e 39 anos. Entre as mulheres, estas proporções diminuem bastante: são, respectivamente, de 18,2% e 36,3% (Tabela 2).

 

 

Entre os homens existe uma mortalidade proporcionalmente maior entre 15 e 39 anos de idade.

Por outro lado, os percentuais de óbito entre as mulheres nas faixas mais extremas da vida são maiores que os observados no sexo masculino.

Estes diferenciais na distribuição dos óbitos por sexo e faixas de idade também aparecem nas causas específicas que compõem o grupo das externas.

De acordo com a Tabela 3, mais da metade dos óbitos por causas externas nas capitais brasileiras, em 1985, são devidos aos acidentes de trânsito (27,9%) e aos homicídios (25,7%).

 

 

Enquanto a maior parte dos acidentes, em geral, concentra-se nas faixas etárias mais jovens ou mais velhas, os suicídios e, especialmente, os homicídios incidem mais entre os 15 e os 49 anos.

Os acidentes de trânsito conseguem ter elevados percentuais ao longo de toda a vida, mas chama a atenção sua contribuição em 43,8% dos óbitos ocorridos entre crianças dos 5 aos 14 anos.

A seguir, serão analisados os dados da Tabela 4, porém, antes de fazê-lo, é necessário esclarecer que as taxas nela apresentadas foram calculadas utilizando-se como denominador as informações populacionais do Censo de 1991. Estas populações, de acordo com este censo, tiveram uma taxa de crescimento inferior àquela que vinha sendo empregada anteriormente para estimá-las. É por isso que as taxas mostradas nesta tabela são superiores às encontradas em outros estudos, como, por exemplo, na revista Dados (Dados/Radis, 1990). Por este motivo, as taxas observadas posteriormente para o Rio de Janeiro serão diferentes das encontradas nesta tabela.

 

 

As taxas de mortalidades por causas externas nas principais capitais brasileiras oscilam ao longo do período, embora em algumas delas sejam observadas certas tendências. É crescente a mortalidade no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Goiânia e Recife, esta última apresentando o maior crescimento no período. Decrescem as taxas de Belém e Fortaleza, enquanto permanecem estáveis as de Salvador, Belo Horizonte e Curitiba.

O Rio de Janeiro e Goiânia são as capitais que detêm, respectivamente, as primeiras e segundas maiores taxas ao longo de todo o período.

Destaca-se, ainda, o incremento significativo das taxas, nos últimos três anos, em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, passando para patamares bem mais elevados que os observados no início do período.

A partir dos dados já colocados e a despeito do que é reiteradamente anunciado, o Brasil não é o campeão de atos fatais de violência, como pode-se observar na Tabela 5. Por outro lado, não temos uma série histórica suficientemente abrangente e consistente para fazermos um prognóstico sobre a situação futura do país, nem do presente em relação ao passado.

 

 

Comparativamente a outros países da América e da Europa, ele ocupa uma posição intermediária, porém preocupante, devido à forma como se constitui no país este grupo de mortes (Souza & Assis, 1989). Enquanto em alguns países europeus os fenômenos violentos se expressam, terminalmente, em primeiro lugar nos suicídios e em segundo, nos acidentes de trânsito, nos Estados Unidos e no Canadá, as estatísticas revelam que os acidentes de trânsito e os suicídios constituem as principais explicações para as mortes violentas. No Brasil, este perfil é diferenciado. Ocupando hoje o terceiro lugar na mortalidade geral, a violência se apresenta configurada pela primazia dos acidentes de trânsito, seguida pelos homicídios e, com índices pouco expressivos, pelos os suicídios.

Na década de 80, a tendência de crescimento das taxas de mortalidade por causas externas é dada, sobretudo, pelo aumento proporcional dos homicídios no conjunto destas causas, já pareando-se com os acidentes de trânsito ou, por vezes, ultrapassando-os nas regiões metropolitanas. É importante ressaltar que as maiores freqüência e gravidade dos homicídios ocorrem nas faixas etárias de 15 a 39 anos, isto é em idade produtiva. Portanto, é a nível dos homicídios que reside o sentido da gravidade da situação da violência no Brasil.

Mortalidade no Município do Rio de Janeiro

Para se aprofundar o fenômeno da violência geradora de morte, toma-se aqui o conjunto de dados sobre o município do Rio de Janeiro como um "caso" não para ser extrapolado, mas capaz de trazer maior complexidade para o debate sobre o tema em questão.

As principais causas de óbito no Rio de Janeiro, na década de 80, são as mesmas observadas no conjunto das capitais das regiões metropolitanas do país. As doenças cardiovasculares, as neoplasias e as causas externas são os três primeiros grandes grupos de morte (Tabela 6).

 

 

Em 1988, cada uma destas causas corresponde, respectivamente, a 40,2%, 13,1% e 12,4% dos óbitos gerais do município, como se pode ver na Figura 1.

 

 

No sexo masculino, a mortalidade por causas externas é a segunda causa de morte, correspondendo a 18,2%. No sexo feminino, este percentual cai para 4,7% e as externas passam a ser a sexta causa de óbito. As diferenças desta mortalidade em relação aos sexos são mais claramente vistas na Figura 2.

 

 

A partir dos 15 até os 49 anos de vida, a mortalidade masculina é significativamente mais elevada do que a feminina, sobretudo entre os 20 e os 29 anos.

Em relação aos grupos específicos de causas externas, observa-se na Figura 3 que 71,3% das mortes devem-se aos homicídios (45,3%) e aos acidentes de trânsito (26%).

 

 

Faz-se aqui um parêntese para assinalar que a categoria homicídios considerada nesta análise inclui os homicídios propriamente ditos ( E 960 — E 966) e agressões por arma de fogo as quais se ignora se acidental ou intencionalmente infligidas, classificadas na lista BR na categoria outras violências (E 970 — E 999). Esta estratégia certamente introduz um erro no número de homicídios, uma vez que nem todas as agressões por arma de fogo caracterizam-se como assassinato.

Da mesma forma, outro tipo de lesões ignoradas — praticadas por arma branca, envenenamento, enforcamento — podem ser homicídios e, no entanto, não foram consideradas aqui como tal.

Apesar disso, considera-se que o erro cometido ao se ssumir esta estratégia é mínimo em relação ao que a classificação oficial está produzindo. Tal afirmação fundamenta-se, primeiro, no fato de que, a partir de 1984, mais de 60% da categoria "outras violências" é constituída por agressões com arma de fogo. Segundo, o desconhecimento quanto à intencionalidade da morte e a sua conseqüente classificação entre as outras violências são dados que não se sustentam diante das informações das delegacias de polícia. Nos registros de ocorrência policial, observa-se que a quase totalidade das agressões com arma de fogo são, indiscutivelmente, homicídios.

Estudos feitos por Souza (1991a, 1992) em Duque de Caxias e na Baixada Fluminense mostram que, em geral, os homicídios informados oficialmente na declaração de óbito estão subestimados quando comparados à informação policial. Mello Jorge (1988, 1990) e Swarcwald (1986) também discutem esta inadequação quanto à classificação da causa básica de óbitos por acidentes e violências, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vicente (s.d.) analisa a dificuldade na classificação dos óbitos por homicídios em Campinas, São Paulo.

Apenas a título de exemplificação, no município do Rio de Janeiro, em 1988, dos 3.139 óbitos classificados como outras violências (categoria constituída por lesões as quais ignorase a intencionalidade e lesões atribuídas à intervenção policial), 2.133 (68%) eram agressões por arma de fogo. Este grupo "outras violências" correspondia a 52,7% dos óbitos por causas externas. Enquanto isso, os homicídios somavam apenas 560 óbitos. Quando adicionados às agressões com arma de fogo do tipo ignoradas quando à intencionalidade, passaram a ser 2.693 óbitos. Este último dado parece mais confiável que os 560 óbitos informados anteriormente. Daí a opção de se trabalhar com a soma deles.

As tendências das taxas de homicídios com e sem a categoria agressão com arma de fogo, que se ignora se acidental ou intencionalmente infligida, podem ser bem visualizadas na Figura 4.

 

 

A tendência da curva que exclui as agressões com arma de fogo cuja intencionalidade se ignora é claramente descendente. Já a outra curva, que soma este grupo aos homicídios, cresce a partir de 1984, quando o primeiro, sozinho, representava mais de 60% dos óbitos por outras violências.

Na Tabela 7 encontram-se as taxas de mortalidade por grupos de causas externas específicas, no período investigado, para o município do Rio de Janeiro.

 

 

Os homicídios e os acidentes, sobretudo os de trânsito, destacam-se como as principais causas de óbito. As outras violências também aparecem com expressivas taxas.

Os acidentes de trânsito representam, em média, 75% dos acidentes em geral no período.

As taxas dos acidentes oscilam, sendo menores em 1982 (17,19) e maiores em 1983 (31,21 óbitos em 100.000 habitantes).

No ano de 1982 os homicídios detêm a menor taxa (21,63). Em 1988, estas elevam-se consideravelmente, passando de 33,73 (em 1986) para 45,19 óbitos em 100.000 habitantes.

Os suicídios apresentam baixas taxas, com tendência estável. No início do período têm a maior taxa (2,61) e em 1982, a menor (0,87).

Em relação às faixas etárias, os homicídios concentram-se, de 73% a 80%, entre os 15 e os 39 anos de idade durante os anos investigados (Tabela 8).

 

 

Na década em estudo, aproximadamente 94% destes óbitos ocorrem no sexo masculino, sendo que em ambos os sexos prepondera o uso da arma de fogo (em média 92,3%) como meio empregado para impetrar o crime. Segue-se a este meio o estrangulamento e o uso de arma branca (Figura 5).

 

 

Os acidentes de trânsito distribuem-se mais dispersamente que os homicídios nas diversas faixas etárias (Tabela 9).

 

 

É na faixa de 20 a 29 anos de idade que se encontram as maiores proporções de óbitos, sem, contudo, se destacarem significativamente das demais idades.

Para o sexo masculino, a mortalidade por acidentes de trânsito também é proporcionalmente maior que no feminino: cerca de 75% no primeiro e 25% no último, (Figura 6). Estes percentuais permanecem estáveis ao longo dos anos investigados.

 

 

Dentre os tipos de acidentes de trânsito (Figura 7), observa-se que o grande componente são os atropelamentos. Seus percentuais passam de 59,8%, em 1980, para 70,2%, em 1988. Enquanto isso, os outros acidentes caem de 40,1% para 15,8% no mesmo período. As colisões apresentam os menores percentuais, porém atingem patamares mais elevados (em torno de 14%) a partir de 1984.

 

 

Os dados da Tabela 10 mostram que a mortalidade por causas externas é um fenômeno preponderantemente urbano.

 

 

Segundo Pinto (s.d.), na Capital ocorre quase metade das mortes por causas externas (48,6%). Nela concentram-se cerca de 60% dos acidentes de trânsito fatais, 47% dos suicídios e quase 50% das outras causas externas. Curiosamente, na Capital, onde se esperaria melhores preenchimento e classificação da declaração de óbito, é onde mais de 50% deles não têm esclarecida a natureza da causa básica, sendo incluídos entre as lesões as quais ignora-se se foram acidental ou intencionalmente inflingidas (lesões ignoradas).

Chama-se a atenção para a maior proporção de homicídios na Região Metropolitana, demonstrando que este tipo de violência é mais intenso em áreas periféricas da Capital, como a Baixada Fluminense, por exemplo, onde a segurança é mais precária e onde atuam os grupos de extermínio (Assis, Souza & Cruz Neto, 1991).

 

RESUMO DOS DADOS

As taxas de mortalidade por causas externas no país, durante a década passada, situam-se em níveis intermediários quando comparadas às de outros países.

As principais causas específicas dentre as externas são os acidentes de trânsito e os homicídios. Contudo, diferentemente de outros países onde as colisões são o tipo de acidente de trânsito mais freqüente, no Brasil, os pedestres são as maiores vítimas dos atropelamentos. Os homicídios, com baixas taxas em países europeus e na América do Norte, representam a causa que mais cresceu nos últimos anos, dentre as externas, em nossa realidade.

No Brasil, o fenômeno da mortalidade por causas externas também segue a tendência mundial em termos de maior incidência sobre o sexo masculino e em faixas etárias jovens.

Em relação às capitais de regiões metropolitanas do país, observa-se que o maior crescimento proporcional da mortalidade por causas externas ocorreu em Recife e Salvador, capitais situadas no Nordeste. A análise destaca o município do Rio de Janeiro, com suas elevadas taxas em relação à região Sudeste e às demais regiões metropolitanas brasileiras.

As maiores vítimas das causas externas são as pessoas do sexo masculino, cujas taxas encontram-se bastante elevadas (em torno de 140 óbitos em 100.000 habitantes), ao passo que nas mulheres as taxas situam-se próximas a 30.

As faixas etárias mais atingidas são as de 20 a 29 e 30 a 39 anos, com taxas crescentes no período. As idades de 15 a 19 anos, em 1988, ultrapassam os 100 óbitos em cada 100.000 habitantes, e, surpreendentemente, a faixa dos 65 ou mais anos apresenta taxas elevadas, merecendo ser objeto de reflexão mais detalhada.

Dentre as causas específicas, os homicídios correspondem a 45,3%, os acidentes de trânsito, a 26% e a outras violências, a 16,7% dos óbitos por causas externas. No período investigado, os homicídios foram a causa de maior crescimento (12,15%).

Os principais tipos de homicídios foram aqueles com o uso da arma de fogo (mais de 80%), e os de acidentes de trânsito, os atropelamentos (70% em 1988).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, falar sobre violência no Brasil é um exercício de reflexão que requer alguns questionamentos. O primeiro deles é indagar sobre o que aconteceu com a sociedade brasileira, que, no início dos anos 60, mobilizava-se pela maior participação e integração social dos seus jovens (e para os quais acenava com a construção de um projeto político nacional) e, na década de 80, adota como prática social a eliminação de crianças e adolescentes. Ou seja, o que terá levado as elites econômicas, sociais, políticas e culturais do país, a partir do golpe militar de 1964, a abandonar seu projeto de construção de identidade e integração e a se encastelar no pragmatismo individualista do "salve-se quem puder"? De onde terá brotado esta "razão cínica", cada vez mais explícita na década de 80, que leva os privilegiados a proteger ferrenhamente seus patrimônios (inclusive as universidades), seus privilégios e sua vida, atrás das grades e sob armas de seguranças, como se fosse possível esconder a complexa cumplicidade entre a fonte dos eternos privilégios e a situação dos excluídos que parece não ter fim?

Não se pode responder simplistamente a estas questões fundamentais, mas é importante reconhecer que elas estão na raiz da guerra surda cujos reflexos se projetam no quadro de mortalidade por violência, com destaque para os homicídios.

Pelos dados aqui analisados, observa-se que, ao longo da década de 80, cresceu a mortalidade por homicídios, sendo estes uma expressão particular de violência interpessoal.

Este fenômeno parece refletir o aprofundamento ou a intensificação da violência estrutural. Concretamente, esta forma de violência no país tem como determinantes o crescimento da desigualdade sócio-econômica e os baixos salários e renda familiar para a maioria da população associados à inflação e, conseqüentemente, à perda do poder aquisitivo (Sabóia, 1991). Esta forma de violência se faz acompanhar da descrença e do afastamento da população em relação às instituições sociais, que não realizam as funções às quais se destinam e, quando o fazem, atuam de modo violento, discriminatório; da ausência de políticas públicas integradas e condizentes com as necessidades da população, na conjuntura atual, em relação às áreas de assistência, educação, saúde, moradia e segurança; da priorização do desenvolvimento econômico (frustrado na década) e endividamento externo, em detrimento do desenvolvimento social e às custas do sacrifício da população em geral, mas, sobretudo, com maior ônus para os pobres; do intenso apelo ao consumo, conflitando com o empobrecimento do país.

Em termos de conjuntura social na década de 80, três fatos podem ser relacionados ao aumento das taxas de homicídio nas grandes regiões metropolitanas:

(a) a consolidação do crime organizado em torno do tráfico de drogas, criando uma economia e um poder paralelos, assumindo o papel do estado na assistência e na segurança, e se confrontando, no imaginário social e na realidade das classes populares, com a segurança pública;

(b) a consolidação dos grupos de extermínio;

(c) o aumento da população que vive e trabalha nas ruas, sobretudo uma população infantil e juvenil, compelida ao trabalho pelo aumento da pobreza absoluta em todas as regiões metropolitanas do país na década (Sabóia, 1991) e pela falência das instituições "totais" de assistência e recuperação de "menores".

Estes três fatores se inter-relacionam siner-geticamente com a violência estrutural das extremas desigualdades e com as mudanças de valores e visão das novas gerações em relação às elites, à pobreza, à riqueza, aos bens de consumo e à própria felicidade.

O mais problemático em relação à organização do crime é que ela se constitui em uma rede cuja trama principal se articula com as instituições mais "respeitáveis" da sociedade, conforme tem sido estudado por autores como Pinheiro et al. (1983), Zaluar (1986) e Batista (1990) e também divulgado pela imprensa (Motta, 1992; O Globo, 1992). Na medida em que nela estão envolvidos juízes, policiais, empresários e membros do governo, este tipo de criminalidade apresenta-se difícil de ser combatido na sociedade. Ou seja, há profundos interesses econômicos e de poder que tornam instituições legítimas cúmplices da organização da ilegalidade.

A vítima mais expressiva do crime organizado é a juventude, enquanto consumidora e força de trabalho neste mercado paralelo, mas também como alvo do extermínio. Esta vitimização, entretanto, não se distribui de forma homogênea. Estudos mais aprofundados dos dados de mortalidade por violência entre os jovens evidenciam um perfil em que predominam a baixa escolaridade, a baixa renda, a pouca qualificação profissional, o sexo masculino e a cor negra, (Souza, 1991b; Mello Jorge, 1988; Minayo, 1990b).

Estes achados demonstram que são os jovens pobres as malhas frágeis desta rede de violência. São eles que, na ânsia de viverem numa sociedade que muito pouco tem para lhes oferecer, buscam na alternativa do crime o prazer imediato e efêmero (na forma de aquisição de bens através de roubos e no porte de armas como forma de ostentar poder).

Embora exista, entre eles, a consciência do risco que tais atividades envolvem, assim mesmo, na falta de um modelo legítimo, adotam como herói o bandido. Este último simboliza a encarnação do protetor e do assistencialista, mas, sobretudo, a do rebelde social, que vai de encontro e despreza os valores estabelecidos, mas que, contraditoriamente, obtém certo sucesso. É este o modelo e a via mais próximos com os quais estes jovens procuram se identificar e assumir como possibilidades de participação e sobrevivência social.

Por outro lado, criam-se, na década, os grupos organizados e, muitas vezes, profissionalizados de extermínio para servir a interesses diversos ligados ao tráfico e a comerciantes ou para outros fins. Estes grupos, remanescentes dos esquadrões da morte e dos extermínios políticos das décadas de 60 e 70, possuem uma lógica implícita: a de eliminar hoje o provável bandido de amanhã.

No acirramento dos conflitos, legitima-se, e até se justifica, um modo de matar que, antes de ocorrer concretamente no ato do extermínio, já havia sido decretado social e politicamente, (Minayo, 1992).

Muitos jovens cujas mortes estão representadas nos dados aqui mostrados, quando não são assassinados por briga entre as gangs, como queima de arquivo ou mesmo como uma medida "preventiva", acabam caindo nas malhas do sistema carcerário e superlotando os presídios do país. Para eles, as alternativas são a anomia, a criminalidade, a reclusão ou a morte.

No Brasil, hoje, os alarmantes índices de homicídios são superiores aos de alguns conflitos bélicos travados em outras áreas e épocas. Esta "guerra civil" não-declarada tem, entretanto, um alvo bem preciso, e os dados mostram onde ela está fazendo baixas. Seus princípios parecem se fundamentar numa ética perversa em que a sociedade, para se preservar, necessita promover a morte do novo (na figura de seus jovens). De um novo cujas relações real e simbólica com a propriedade, com as instituições, com a religião, com o consumo, enfim com os valores tradicionais, não repetem padrões anteriores. Pelo contrário, constituem-se em ameaça efetiva para a sociedade dominante, que não possui, por seu turno, nenhuma resposta, modelo ou projeto capaz de satisfazer a esses jovens. Neste sentido, a exclusão social que gera, em algum momento, a escolha pela ilegalidade produz, em primeiro lugar, a morte política, para depois eliminar fisicamente o "novo" que se teme e que se quer banir à custa do extermínio, em sentido amplo.

Somente nesses termos é o que se consegue compreender a ocorrência e a impunidade de tantos assassinatos. É preciso também denunciar a hipocrisia da pseudodiscussão sobre a legalização da pena de morte no país. Na verdade, ela já vem sendo decretada socialmente e executada na ilegalidade em relação aos jovens ceifados tão precocemente. Por fim, é preciso articular essa segunda seleção social, que é o extermínio de crianças e adolescentes por violência física, ao momento em que a primeira seleção social se realiza e que é traduzida pelos índices de mortalidade infantil, cujas causas são, principalmente, a desnutrição, a diarréia e as doenças imunopreveníveis. Em ambas seleções, o grupo condenado à morte é exatamente o mesmo, sobretudo nas regiões metropolitanas.

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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