ARTIGO ARTICLE

 

Determinantes da desnutrição infantil em uma população de baixa renda: um modelo de análise hierarquizado

 

Determinants of malnutrition in a low-income population: hierarchical analytical model

 

 

Maria Teresa A. Olinto; Cesar G. Victora; Fernando C. Barros; Elaine Tomasi

Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. C.P. 464, Pelotas, RS, 96010-900, Brasil

 

 


RESUMO

Para investigar os determinantes da desnutrição infantil em populações de baixa renda, foram estudados os efeitos de variáveis sócioeconômicas, ambientais, reprodutivas, de morbidade, de cuidados maternos, de peso ao nascer e de amamentação sobre dois indicadores nutricionais: altura/idade e peso/altura. Todas as 354 crianças menores de 2 anos vivendo em duas áreas pobres da periferia urbana de Pelotas, no sul do Brasil, foram incluídas no estudo. Realizou-se uma análise multivariada, levando-se em consideração um modelo hierárquico dos fatores de risco na determinação destes déficits nutricionais. As variáveis selecionadas em um determinado nível do modelo permaneciam e eram consideradas fatores de risco para a desnutrição, mesmo que, com a inclusão de variáveis hierarquicamente inferiores, estas houvessem perdido sua significância estatística. O modelo final para o déficit de altura/idade foi composto pelas variáveis educação e presença do pai, educação da mãe, trabalho materno, peso ao nascer e idade da criança. O modelo final para peso/altura constituiu-se das variáveis número de utilidades domésticas, intervalo interpartal, condições de moradia, bairro, peso ao nascer, idade e sexo da criança, e hospitalizações prévias.

Palavras-Chave: Déficit Estatural; Desnutrição Protéico-Energética; Déficit Ponderal; Modelos Estatísticos; Epidemiologia


ABSTRACT

To investigate the determinants of malnutrition among low-income children, the effects of socioeconomic, environmental, reproductive, morbidity, child care, birthweight and breastfeeding variables on stunting and wasting were studied. All 354 children below two years of age living in two urban slum areas of Pelotas, southern Brazil, were included. The multivariate analyses took into account the hierarchical structure of the risk factors for each type of deficit. Variables selected as significant on a given level of the model were considered as risk factors, even if their statistical significance was subsequently lost when hierarchically inferior variables were included. The final model for stunting included the variables education and presence of the father, maternal education and employment, birthweight and age. For wasting, the variables selected were the number of household appliances, birth interval, housing conditions, borough, birthweight, age, gender and previous hospitalizations.

Key words: Protein Energy Malnutrition; Stunting; Wasting; Statistical Models; Epidemiology


 

 

INTRODUÇÃO

Existem importantes diferenças nas prevalências de desnutrição infantil entre os países. Fatores como nível de desenvolvimento econômico, distribuição de riquezas, estabilidade política, prioridades nos gastos públicos e padrão sociocultural de um país podem influenciar estes diferenciais (Granthan-MacGregor, 1984). Além das variações internacionais, existem diferenças entre regiões, entre populações urbanas e rurais, entre famílias vivendo em uma mesma comunidade e entre crianças da mesma família.

O presente trabalho tem como objetivo contribuir para o entendimento dos fatores que determinam os déficits nutricionais entre crianças aparentemente expostas às mesmas condições sócioeconômicas e ambientais, em uma comunidade delimitada. Este conhecimento poderá ser útil para identificar, dentro de um grupo de crianças vivendo em condições de pobreza, aquelas com maior risco de desnutrição, levando a intervenções específicas ou a monitorização intensiva. Além da informação geral produzida por este tipo de estudo, os achados possuirão relevância local para a comunidade investigada, sendo de utilidade para as equipes locais de saúde.

Para tal entendimento, é necessário dispor-se de um modelo conceitual que explicite as relações entre os fatores de risco a serem estudados (Beghin et al. 1989; Valente, 1986) (Figura 1). Partiu-se do pressuposto de que, mesmo dentro de comunidades pobres, existem diferenciais sócioeconômicos (Reichenheim & Harpham, 1990) que são hierarquicamente superiores a outros fatores de risco e que podem agir direta ou indiretamente sobre o estado nutricional. De acordo com o nível hierárquico de determinação, a seguir viriam os fatores reprodutivos e ambientais, que, por sua vez, podem influenciar o peso ao nascer. Todos os fatores acima podem afetar a amamentação e os cuidados maternos (inclusive a utilização de serviços de saúde, aspecto que não foi abordado diretamente no presente estudo). Finalmente, todas estas variáveis poderiam interferir no estado de saúde da criança e, conseqüentemente, determinar seu estado nutricional. Fatores biológicos, tais como sexo e idade, podem afetar direta ou indiretamente a amamentacão, os cuidados, a morbidade e o estado nutricional. O estudo foi realizado com crianças menores de 2 anos de idade, por ser esta a faixa etária mais crítica para o crescimento pré-puberal (Tanner, 1979).

 

 

METODOLOGIA

Foram estudados dois bairros (Getúlio Vargas e Dunas) da periferia urbana de Pelotas, RS, escolhidos por apresentarem, segundo a administração local, as piores condições sócioeconômicas da cidade.

O tamanho da amostra foi calculado para detectar uma razão de prevalências de desnutrição de cerca de 3, dada uma prevalência de 7% entre os não-expostos. O poder utilizado foi de 80%, erro alfa de 5% e uma razão de 3 não-expostos para cada exposto. Para compensar possíveis perdas, a amostra foi acrescida em 10%, atingindo 350 crianças a serem visitadas.

Todas as casas dos dois bairros foram visitadas consecutivamente e todas as crianças menores de 2 anos foram incluídas no estudo. Conforme as estimativas populacionais, nestes dois bairros atingir-se-ia a amostra desejada.

As crianças foram pesadas e medidas utilizando-se com uma balança portátil Salter com precisão de 100 gramas e um antropômetro modelo Ahrtag, conforme metodologia padronizada (Barros & Victora, 1991).

Para a avaliação do estado nutricional utilizou-se os indicadores peso/altura e altura/idade, recomendados pela Organização Mundial da Saúde - OMS (WHO, 1986) resultantes da comparação das medidas de cada criança com o padrão National Center for Health Statistics -NCHS (NCHS, 1978). Foram consideradas desnutridas crianças com dois ou mais desvios padrão (DP) abaixo da mediana da população de referência para altura/idade e abaixo de -1,5 DP para peso/altura. Este último ponto de corte foi utilizado devido à impossibilidade de se realizar uma análise multivariada com o limitado número de crianças classificadas como desnutridas pelo critério de -2 DP.

As mães foram entrevistadas utilizando-se um questionário pré-codificado que continha as seguintes variáveis:

  • Variáveis biológicas: sexo e idade da criança.

  • Variáveis sócioeconômicas: renda familiar em salários mínimos per capita; número de utilidades domésticas (rádio,televisão, geladeira e fogão); escolaridades materna e paterna; presença do pai na casa; trabalho materno.

  • Variáveis ambientais (quando possível, obtidas através da observação do entrevistador): condições de moradia; número de pessoas por dormitório; número de crianças menores de 5 anos morando na casa (incluindo a criança em estudo); disponibilidade de água encanada dentro de casa; tipo de sanitário (com descarga ou casinha); bairro.

  • Variáveis reprodutivas: idade materna; ordem de nascimento; intervalo interpartal (entre o parto da criança em estudo e o filho anterior).

  • Variáveis de morbidade: presença de diarréia e de tosse com febre nos 7 dias anteriores à visita; número de hospitalizações no período dos 12 meses anteriores à visita.

  • Peso ao nascer (obtido por recordatório).

  • Cuidados maternos: amamentação (sim ou não) e pessoa que cuidava da criança a maior parte do tempo.

O trabalho de campo foi realizado entre os meses de janeiro e fevereiro de 1992, por três entrevistadores especialmente treinados.

As tabulações bivariadas foram realizadas através do programa SPSS/PC+ (Norusis, 1986). Para o cálculo das medidas de efeito (razões de odds) e seus intervalos de confiança utilizou-se a regressão logística não condicional (Egret, 1988). A significância estatística referente à introdução de cada variável no modelo foi avaliada através do teste de razão de verossimilhanças, e o ajuste do modelo como um todo através da estatística "deviance", ou seja -2 vezes o logaritmo da verossimilhança.

A análise multivariada foi realizada conforme o modelo hierárquico definido a priori (Figura 1). No primeiro bloco (nível hierárquico 1) foram incluídas todas as variáveis sócioeconômicas, mesmo aquelas não significativas na análise bivariada. As variáveis significantes nesta análise foram conservadas no modelo e entraram no ajuste do próximo bloco, no caso as reprodutivas e ambientais (nível hierárquico 2). Aquelas com mais de duas categorias permaneciam no modelo de forma linear ou categórica, dependendo do melhor ajuste no teste de razão de verossimilhanças. Para os blocos seguintes do modelo, o mesmo procedimento foi empregado. Ao final do procedimento acima, foram criados dois modelos finais de fatores de risco: um para o déficit de altura/idade e outro para o déficit de peso/altura.

As variáveis selecionadas em um determinado nível permaneceram nos modelos subseqüentes e foram consideradas como fatores de risco para a desnutrição, mesmo que, com a inclusão de variáveis hierarquicamente inferiores, estas houvessem perdido sua significância.

Neste processo de seleção de possíveis fatores de confusão utilizou-se o nível de significância de 0,10 para evitar a exclusão de variáveis potencialmente importantes. Isto significa que alguns dos intervalos de confiança de 95% das razões de odds poderão incluir a unidade.

Foram excluídas do modelo de análise de altura/idade as variáveis de morbidade referentes à semana anterior à entrevista (diarréia e tosse com febre), por não ser biologicamente plausível que uma infecção recente cause este tipo de déficit.

Nenhuma variável apresentou mais de 4% de respostas ignoradas. Estas foram recodificadas para a categoria modal para evitar excluir completamente das análises multivariadas crianças com valor ignorado de qualquer variável em estudo.

O procedimento estatístico utilizado — regressão logística — expressa os resultados em termos de razões de odds, as quais são ligeiramente maiores (para fatores de risco) que as razões de prevalência, particularmente porque os desfechos estudados são comuns. Para fatores protetores, a razão de odds é menor que a razão de prevalências. No entanto, se não há associação entre a duração da desnutrição e o fator de risco, a razão de odds de prevalências constitui a melhor estimativa da razão de densidades de incidência de desnutrição (Kleinbaum et al. 1982).

 

RESULTADOS

Foram estudadas 354 crianças menores de 2 anos, sendo 185 meninos e 169 meninas. Destas crianças, 181 eram menores de 1 ano e 173 tinham 1 ano completo. Não houve perdas nem recusas.

Utilizando-se como ponto de corte dois desvios padrão abaixo da referência, as prevalências de desnutrição foram de 16%, 15% e 4% para peso/idade, altura/idade e peso/altura, respectivamente. Com o ponto de corte de -1,5 DP para peso/altura, encontrou-se uma prevalência de 13%.

A Tabela 1 mostra os efeitos do sexo e da idade. Os meninos apresentaram uma maior prevalência de déficit de peso/altura que as meninas, enquanto para a altura/idade não houve diferenças. A faixa etária com maior freqüência de desnutrição foi a de 12 a 17 meses, tanto para altura/idade (21%), com um risco cerca de 5 vezes maior que os menores de 6 meses, como para peso/altura (24%), com um risco em torno de 3 vezes superior. Podemos observar a prevalência elevada de desnutrição segundo a altura/idade já a partir dos 6 meses de idade.

 

 

As variáveis sócioeconômicas são mostradas na Tabela 2. A renda familiar esteve inversamente associada às prevalências de desnutrição, tanto para altura/idade quanto para peso/altura. Para as famílias com renda inferior a meio salário mínimo per capita, os riscos foram aproximadamente 2 vezes maiores que para as de maior renda.

 

 

Uma relação linear inversa foi também observada com o número de utilidades domésticas.

Os déficits de peso/altura foram 5 vezes mais comuns em famílias com até uma utilidade, comparadas àquelas que possuíam as quatro utilidades investigadas.

A educação da mãe e do pai esteve fortemente associada com os déficits de altura/idade, atingindo riscos de 4 a 6 vezes maiores, se comparando o nível educacional mais baixo com o mais alto. Não houve associação entre as variáveis educacionais e peso/altura.

As crianças de famílias cujas mães não trabalhavam fora apresentaram um aumento de 70% no risco de déficit de altura/idade.

Analisando-se o efeito conjunto de todas as variáveis sócioeconômicas sobre o déficit de altura/idade, permaneceram significativos os efeitos da educação materna, da presença e educação paternas e do trabalho materno. Já para o déficit de peso/altura, só permaneceu significativo o efeito do número de utilidades domésticas.

A Tabela 3 mostra as variáveis ambientais. Crianças vivendo em moradias inadequadas e/ou com outros menores de 5 anos apresentaram maiores prevalências de desnutrição. O número total de pessoas por dormitório, por outro lado, esteve associado apenas com a altura/idade.

 

 

Ambos os déficits nutricionais estiveram associados com a ausência de água encanada na casa. Quanto ao tipo de sanitário, houve uma clara associação com peso/altura, mas para altura/idade a associação foi limítrofe (p=0,08).

Embora ambos os bairros estudados fossem considerados áreas de péssimas condições sócioeconômicas, os resultados indicam um maior risco para os moradores do bairro Getúlio Vargas.

As variáveis ambientais foram ajustadas umas para as outras, assim como para as variáveis sócioeconômicas selecionadas na etapa anterior e para as variáveis reprodutivas (idade materna, ordem de nascimento e intervalo interpartal). Para o déficit de altura/idade, após o ajuste, nenhuma das variáveis ambientais continuou significativa. Para o déficit peso/altura, permaneceram as variáveis bairro e condições de moradia.

As variáveis reprodutivas são apresentadas na Tabela 4. Filhos de adolescentes (mães com menos de 20 anos) apresentaram 2 vezes mais risco de déficit de peso/altura, embora com o intervalo de confiança incluindo a unidade. A ordem de nascimento não esteve associada com nenhuma das duas variáveis dependentes. Intervalos interpartais de 36 meses ou mais foram protetores em relação à desnutrição, enquanto intervalos inferiores a 24 meses representaram os maiores riscos.

 

 

De acordo com o modelo teórico, as variáveis reprodutivas foram ajustadas para as sócioeconômicas e ambientais, bem como para as demais características reprodutivas. O efeito do intervalo interpartal sobre o déficit de peso/altura foi o único a permanecer significativo.

Quanto ao peso ao nascer (Tabela 5), crianças nascidas com menos de 2.500 gramas apresentaram déficit de altura/idade cerca de 9 vezes superior ao da categoria de maior peso. Para peso/altura, este diferencial foi de 4 vezes. Mesmo após controlar os possíveis fatores de confusão — ou seja, as variáveis incluídas nas etapas anteriores —, o efeito do peso ao nascer permaneceu significativo para ambos os tipos de desnutrição.

 

 

Em relação às variáveis amamentação e cuidados com a criança (Tabela 5), pode ser observado um possível efeito do leite materno apenas sobre peso/altura, com um risco de 1,7 para crianças desmamadas, embora o intervalo de confiança inclua a unidade.

Nesta etapa da análise multivariada, as variáveis sexo e idade foram incorporadas àquelas selecionadas nas etapas anteriores, pois poderiam representar fatores de confusão em relação à amamentação e aos cuidados com a criança. Como já descrito na Tabela 1, o sexo esteve associado apenas com peso/altura, enquanto a idade da criança associou-se com ambos os déficits. Amamentação e cuidados com a criança não atingiram significância no modelo multivariado, sendo excluídas do mesmo.

A Tabela 6 mostra o efeito das variáveis de morbidade. As crianças hospitalizadas nos últimos 12 meses apresentaram prevalências de desnutrição 2 a 3 vezes maiores que as demais.

 

 

Os efeitos da morbidade recente foram analisados apenas em relação ao peso/altura. O o relato de tosse com febre na semana anterior duplicou o risco deste déficit, mas não houve efeito da diarréia.

Nesta etapa da análise multivariada, as variáveis de morbidade foram incorporadas aos modelos contendo as variáveis selecionadas anteriormente. No modelo para peso/altura, permaneceu apenas a variável relativa ao número de hospitalizações. Para a altura/idade, esta variável deixou de ser significativa, sendo excluída do modelo.

As Figuras 2 e 3 mostram, respectivamente, os modelos finais para os déficits de peso/altura e de altura/idade. Conforme descrito, só foram consideradas apenas as variáveis que, na etapa em que foram incluídas na análise multivariada, apresentaram efeitos significativos (p<0,10). As variáveis com mais de duas categorias entraram no modelo final de forma linear ou categórica, dependendo do melhor ajuste no teste de razão de verossimilhanças.

 

 

 

 

Para o déficit de altura/idade foram selecionadas as seguintes variáveis: educação da mãe (linear), presença e educação do pai (linear), trabalho da mãe, peso ao nascer (categórica) e idade (linear). Para o déficit de peso/altura foram incluídas as variveis número de utilidades domésticas (linear), intervalo interpartal (categórica), bairro, condições de moradia, peso ao nascer (linear), idade (categórica), sexo e hospitalizações. No entanto, para fins de apresentação nas Figuras 2 e 3, optou-se por mostrar as razões de odds obtidas com as variáveis categorizadas.

Como o nível de significância utilizado para selecionar possíveis fatores de confusão foi inferior a 10%, alguns dos intervalos de confiança nas Figuras 2 e 3 incluem a unidade. Este foi o caso das variáveis bairro, para o déficit de peso/altura, e hospitalizações, para altura/idade.

A Tabela 7 mostra o ajuste dos diferentes modelos. Note-se que os modelos explicaram melhor a variabilidade de peso/altura do que para altura/idade, o que se pode observar pelo redução mais marcada no valor das estatísticas "deviance". Deve-se notar ainda que os modelos deixam de explicar uma parcela importante da variabilidade total no estado nutricional da amostra.

 

 

DISCUSSÃO

Estudos transversais apresentam algumas limitações que podem afetar a interpretação dos resultados. Por exemplo, não foi possível identificar se fatores de risco como morbidade, amamentação e cuidados maternos foram antecedentes ou conseqüências da desnutrição (Kleinbaum et al., 1982).

O estudo restrigiu-se à população de baixa renda, o que poderia limitar sua validade externa. No entanto, os déficits nutricionais são problemas de saúde pública quase que exclusivamente restritos ao tipo de população estudada (Monteiro, 1988; Victora et al., 1989).

Foram observadas elevadas prevalências de déficits nutricionais tanto para altura/idade como para peso/altura, refletindo as péssimas condições soóio-econômicas das áreas estudadas. Essas prevalências foram ainda mais altas do que as observadas para famílias de renda de um salário mínimo ou menos, obtidas em estudo anterior realizado no mesmo município (Victora et al., 1989). A prevalência de déficit de peso/altura de 4% (considerando o ponto de corte de -2 DP) é um valor bastante alto tanto para a América Latina como um todo (Victora, 1992) como a nível local (Victora et al., 1989).

Embora a ingesta alimentar das crianças não tenha sido contemplada no modelo de análise (Figura 1), a mesma foi investigada em outro estudo, realizado com uma subamostra de 50 das 354 crianças (Olinto et al., s/d). Os resultados mostraram uma associação inversa, estatisticamente significativa, entre as ingestas calórica, protéica e lipídica com a desnutrição.

Foram detectadas maiores prevalências de déficits nutricionais durante o segundo ano de vida. Isto já havia sido observado por Monteiro (1988), entre outros. Quanto ao sexo, o déficit de peso/altura foi mais comum entre os meninos.

Déficits de peso/altura e de altura/idade não são apenas diferentes apresentações do mesmo fenômeno (Victora, 1992). Embora apresentem algumas causas em comum (Martorell, 1985), eles possuem determinantes distintos. Desta maneira, assim como na análise, seus determinantes serão discutidos separadamente.

O ajuste global dos modelos (Tabela 7) foi ligeiramente melhor para o peso/altura do que para a altura/idade. Este achado se opõe ao de estudos que abrangeram diferentes níveis sociais na mesma região, os quais tipicamente mostram maior poder explicativo em termos de altura/idade do que de peso/altura (Huttly et al., 1991; Victora et al., 1986).

O déficit de altura/idade é considerado um retardo de crescimento linear. Em menores de 2 anos, este déficit pode refletir o estado nutricional atual, isto é, a criança pode estar enfrentando uma atraso no crescimento, potencialmente reversível. Já em crianças maiores, a baixa estatura passa a ser um reflexo de déficit de crescimento no passado (Beaton et al., 1990), de difícil reversão. O presente estudo detectou como fatores associados a déficits de altura/idade as variáveis: presença e educação do pai, educação e trabalho maternos, peso ao nascer e idade da criança.

O papel da educação dos pais como determinante dos déficits de altura/idade tem sido reconhecido por diversos autores (Huttly et al., 1991; Monteiro, 1988; Sousa, 1992; Victora et al., 1986). A escolaridade paterna, além de refletir a classe social, é um dos determinantes da renda familiar, influindo diretamente no consumo familiar. Já a escolaridade materna atuaria principalmente a nível de cuidados preventivos (alimentação, higiene, imunizações, etc.) e curativos (manejo doméstico das doenças e busca precoce de atendimento). Os presentes resultados, coerentes com outras pesquisas realizadas na mesma região (Victora et al., 1986), mostram ser mais intenso o efeito da escolaridade paterna do que da escolaridade materna, sugerindo que o fator sócioeconômico predomina sobre os cuidados.

O fato de a mãe trabalhar fora de casa teve um efeito protetor para déficits de altura/idade. Este resultado confirma um recente estudo realizado em duas outras áreas da periferia de Pelotas (Facchini et al., 1992), evidenciando novamente o papel do acesso a bens e serviços na determinação do estado nutricional, mais do que a presença da mãe junto à criança, a qual poderia reverter-se em maiores cuidados. Isto parece ser confirmado pelo fato de, no presente estudo, não ter havido associação entre cuidados maternos e o estado nutricional.

A proporção de 13% de baixo peso ao nascer, embora superior àquela descrita para a cidade (Victora et al., 1989), é compatível com as condições em que viviam as mães estudadas. Um estudo realizado em São Paulo (Monteiro, 1980) evidenciou valores similares — de 12% de prevalência — para crianças nascidas em maternidades públicas e filantrópicas. O peso ao nascer esteve diretamente associado à altura/idade, mantendo-se inalterado após o ajuste para variáveis sócioeconômicas selecionadas. Outros estudos têm encontrado resultados semelhantes (Azevedo, 1988; Giuliani et al., 1987; Huttly et al., 1991; Sousa, 1992; Victora et al., 1987). O estudo de Huttly et al. (1991), por exemplo, mostrou ser o peso ao nascer um importante fator na predição do estado nutricional aos 11 meses de idade.

O déficit de peso/altura, por outro lado, é um processo agudo, severo e potencialmente reversível, sendo conseqüência de uma dieta inadequada e de infecções importantes. O modelo final de sua determinação ficou constituído das variáveis número de utilidades domésticas, intervalo interpartal, condições de moradia, peso ao nascer, idade,sexo e hospitalizações.

A única variável sócioeconômica com efeito significativo sobre o déficit de peso/altura, no modelo em que foram também incluidas as variáveis renda e escolaridade dos pais, foi o número de utilidades domésticas. Considerando o grupo social estudado, provavelmente esta expresse condições concretas de utilização da renda, isto é, revertida em benefícios domésticos. Facchini et al. (1992) haviam também encontrado uma associação entre ganho de peso e disponibilidade de eletrodomésticos.

A proteção oferecida por um maior intervalo interpartal é compatível com os resultados de outros estudos (Huttly et al., 1992). Este efeito permaneceu após o ajuste para possíveis fatores de confusão. Como a grande maioria das crianças com déficit de peso/altura era maior de 1 ano de idade, e sendo este um processo de curta duração, seria pouco provável que o desgaste bioló ico de gestações consecutivas pudesse explicar este achado. Provavelmente, portanto, o tempo de atenção dedicada a cada criança é menor em famílias com mais de um filho pequeno.

Os resultados mostraram claramente o efeito das condições ambientais — moradia e bairro — sobre o déficit de peso/altura. Estas condições, aparentemente homogêneas na pobreza, poderiam influenciar os padrões de morbidade, principalmente através de infecções. Esses dois bairros são de povoação relativamente recente, não dispondo de serviço público local de saúde. Entretanto, o bairro Getúlio Vargas reunia condições piores que o bairro Dunas em termos de água encanada, rede de esgoto e escolaridade dos pais das crianças estudadas. Uma vez que estas variáveis foram ajustadas na análise multivariada, estas diferenças não podem explicar completamente o maior risco observado para as crianças do bairro Getúlio Vargas, o qual deve ser decorrente de fatores não mensurados.

O efeito do baixo peso ao nascer sobre o peso/altura, mesmo inferior ao observado para a altura/idade, foi acentuado (OR=3,3). É interessante salientar este efeito, mesmo estando o peso/altura relacionado a processos recentes e de curta duração. Outros estudos haviam encontrado resultados similares (Huttly et al., 1991; Victora et al., 1987; 1989).

Entre as variáveis de morbidade, a única significativamente associada ao estado nutricional foi o número de hospitalizações. Martorell & Ho (1984) haviam descrito que déficits de peso/altura pareciam estar mais fortemente associados com a severidade das infecções do que os déficits de altura/idade. Huttly et al. (1991) e Giugliani et al. (1987) encontraram uma associação entre hospitalizações por diarréia e déficit de peso/altura. Estes resultados apresentam plausibilidade biológica, uma vez que morbidades severas geralmente causam rápida perda de massa corporal.

Ao comparar-se os fatores de risco para cada tipo de déficit, observa-se que a altura/idade, um processo lento e de longa duração, reflete predominantemente as condições sócioeconômicas subjacentes, como a escolaridade dos pais e o trabalho materno, assim como o peso ao nascer. Já o peso/altura, um processo mais agudo, reflete predominantemente as condições ambientais sob as quais a criança vive no momento. Isso pode, inclusive, ser observado na proteção oferecida por um maior intervalo interpartal. Os resultados do presente estudo fornecem elementos para contribuir ao delineamento de intervenções específicas na prevenção e na reabilitação de déficits nutricionais, tanto a nível local quanto para comunidades similares em outros estados e países.

 

AGRADECIMENTOS

Estudo financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul, pelo Programa de Controle de Doenças Diarréicas, da Organização Mundial da Saúde, e pelo International Development Research Center, do Canadá.

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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