ARTIGO/ARTICLE

 

A confiabilidade dos dados nos formulários de Autorização de Internação Hospitalar (AIH), Rio de Janeiro, Brasil

 

Reliability of data from Authorization Forms for Hospital Admittance, Rio de Janeiro, Brazil

 

 

Claudia Maria T. Veras; Mônica S. Martins

Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões 1480, 7º andar, Rio de Janeiro, RJ, 21041-210, Brasil

 

 


RESUMO

Apresenta-se neste artigo um estudo sobre a qualidade das informações contidas no banco constituído por dados dos formulários de Autorização Hospitalar (AIH). O formulário AIH é um documento do Sistema Único de Saúde (SUS) preenchido pelos hospitais para reembolso da assistência prestada aos pacientes financiados com recursos públicos. O banco gerado por dados dos formulários AIH representa a maior fonte de informação do país sobre a produção hospitalar. Neste trabalho analisou-se uma amostra de formulários AIH preenchidos pelos hospitais privados contratados da cidade do Rio de Janeiro em 1986. O desenho do estudo baseou-se na confiabilidade entre entrevistadores e na análise de concordância utilizou-se o teste Kappa. A concordância entre os dados anotados nos formulários AIH pelos funcionários administrativos dos hospitais e as informações contidas nos prontuários médicos foi medida para variáveis demográficas, administrativas e clínicas. De forma geral, as duas primeiras classes de variáveis apresentaram melhor confiabilidade do que a terceira. A confiabilidade do diagnóstico principal foi pior do que a confiabilidade do procedimento realizado, apesar desta última ser a unidade de pagamento do mecanismo de reembolso adotado pelo SUS. Entretanto, nos casos de discordância, observou-se uma maior chance do hospital anotar um procedimento com valor de reembolso maior do que aquele identificado a partir dos dados anotados no prontuário médico. Medidas para o aprimoramento da qualidade dos dados foram sugeridas.

Palavras-Chave: Serviços de Saúde; Sistema Hospitalar; Avaliação em Saúde; Planejamento


ABSTRACT

This article presents data from a study on quality of information from the data bank on the form used in the Brazilian health care system to authorize hospital admittance (AIH). The form pertains to the Unified Health System (SUS) and is used by hospitals to be reimbursed for the health care provided to patients, with public funds. The AIH data bank is the largest source of information in Brazil on production by hospitals. This study analyzes a sample of forms filled out by private hospitals under contract with the city of Rio de Janeiro in 1986. Study design was based on reliability between interviewers, and agreement was analyzed utilizing the kappa test. Agreement was analyzed between data from AIH forms filled out by administrative personnel and information from medical files for patients, focusing on demographic, administrative, and clinical variables. The first two types of variables were generally more reliable than the third. Reliability for the principal diagnosis was worse than for the prescribed procedure, despite the latter being the reference for unit reimbursement by the Unified Health System. Furthermore, where there was disagreement, hospitals were more likely to adopt a procedure with higher reimbursement value as compared to the data derived from the clinical file. The article proposes measures to improve data quality.

Key words: Health Services; Hospital System; Health Evaluation; Planning


 

 

INTRODUÇÃO

Apresenta-se, neste artigo, um estudo da confiabilidade dos dados anotados no formulário de Autorização de Internação Hospitalar (AIH). À época deste estudo os formulários AIH eram documentos preenchidos apenas pelos hospitais privados contratados pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) com a finalidade de obterem reembolso pelos serviços prestados aos pacientes previdenciários. Atualmente, estes formulários constituem-se no documento exigido para o reembolso dos serviços hospitalares prestados pelos hospitais públicos e privados vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados contidos neste documento compõem o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) (ex-Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social - SAMHPS), de âmbito nacional. Este sistema contém informações sobre aproximadamente 15 milhões de internações/ano, sendo uma fonte de dados extremamente relevante para a programação, gerência e avaliação dos serviços hospitalares, além de ser de grande utilidade para a área de investigação em serviços de saúde, para estudos epidemiológicos e atividades de vigilância em saúde. Entretanto, sua utilidade depende da boa qualidade dos dados.

A Qualidade da Informação Médica

As informações hospitalares vêm assumindo crescente relevância para o planejamento, a gerência e a pesquisa, impulsionadas pelo crescente desenvolvimento da informática. Países como os Estados Unidos tornaram público o acesso às informações hospitalares, como meio de melhor informar o consumidor sobre a qualidade dos serviços.

A tendência de intensificação do uso de grandes bancos de dados sobre a produção de serviços de saúde tem sido acompanhada por maior preocupação com relação a qualidade destes dados. Em 1970, o Instituto de Medicina dos Estados Unidos (Demlo et al., 1978) realizou um estudo sobre a confiabilidade da informação originária dos prontuários médicos. Este trabalho destacou-se por ter sido de âmbito nacional e apontou para a existência de grandes variações na confiabilidade de diferentes itens dos resumos de alta hospitalares. Os dados clínicos (diagnósticos e procedimentos) apresentaram menor confiabilidade do que os dados demográficos e administrativos. A confiabilidade dos diagnósticos também variou bastante entre si, e de acordo com o refinamento da codificação, com os diagnósticos com quatro dígitos sendo menos confiáveis que os de três dígitos.

A confiabilidade de um experimento, teste ou medição pode ser definida como a capacidade de não variar os resultados, quando realizada por diferentes pessoas ou em diferentes momentos (Almeida-Filho, 1989). No caso da informação médica a confiabilidade foi definida (Roger, s/d) como a capacidade de reproduzir a mesma informação com relação à critérios predefinidos. No caso da informação médica obtida através dos prontuários médicos, a sua confiabilidade não informa quanto a veracidade desta informação. Aponta sim, para a qualidade da transcrição, da interpretação e da codificação desta informação.

A confiabilidade do diagnóstico principal observada em diferentes estudos apresentou grande variação, com o percentual de discordância, oscilando bastante com extremos entre 42,5% (Demlo et al., 1978) e 5,5% (O'Gorman, 1982). No entanto as diferentes abordagens metodológicas e abrangência de cada estudo limitam a comparação de seus resultados.

Lebrão (Lebrão, 1978) estudando as informações hospitalares no estado de São de Paulo observou cerca de 30% de discordâncias entre os dados registrados no Boletim CAH - 101 (Posteriormente, denominado de Boletim CH - 106) da Secretaria Estadual de Saúde e os dados anotados nos prontuários médicos. No que diz respeito a variável diagnóstico principal o estudo acima identificou discordância em 17,51% dos casos estudados.

Problemas na concordância do diagnóstico principal se explicam, em parte, pela característica dessa informação, algumas vezes extremamente subjetiva. Demlo (Demlo & Campbell, 1981) observou que em 6,5% dos prontuários analisados a equipe de pesquisa não conseguiu selecionar o diagnóstico principal. Este problema ocorreu, particularmente, naqueles casos com mais de um diagnóstico. De forma geral, a confiabilidade do diagnóstico principal tendeu a ser maior nos casos de pacientes com um único diagnóstico (73,5% de concordância) comparativamente aos casos de pacientes com múltiplos diagnósticos (54,7% de concordância). O diagnóstico principal é definido como o diagnóstico que após a alta do paciente é identificado como o que melhor justificou aquela internação.

A vinculação da informação clínica (diagnósticos e procedimentos) aos mecanismos de reembolso através do mecanismo de pagamento, como o utilizado pelo programa Medicare nos Estados Unidos que tem como unidade de pagamento o Diagnosis Related Groups (DRG) ou no Brasil com o reembolso pelo Mecanismo de Pagamento Fixo por Procedimento (Veras, 1992), pode influenciar a qualidade desta informação. DRG é um sistema de classificação de pacientes internados, que agrupa pacientes homogêneos, segundo o volume de recursos que consomem durante a sua estadia no hospital (Noronha, 1991). O Mecanismo de Pagamento Fixo por Procedimento foi implantado em 1983 como mecanismo de reembolso do Inamps para remunerar serviços prestados pelos hospitais privados contratados de todo o país. A partir de 1991 passou a ser adotado como mecanismo de financiamento para os hospitais públicos do país, permanecendo até o presente como o mecanismo de reembolso para todos os serviços hospitalares com financiamento público. Simborg (Simborg, 1981) chamou atenção para o que denominou de DRG creep, isto é, a alteração deliberada e sistemática no perfil nosológico e de procedimentos do hospital com o objetivo de aumentar o reembolso.

Estudos mais recentes (Hsia et al., 1988; Begui et al., 1989) buscaram analisar a magnitude e o tipo de alteração na qualidade da informação clínica gerada pela introdução de unidades de pagamento baseadas em dados clínicos. Hsia et al. (1988) realizaram um estudo dirigido para mensurar a ocorrência de erro na codificação dos diagnósticos que afetavam o reembolso, naqueles hospitais com mecanismos de reembolso baseados no DRG. Observaram, em média, 20,8% de chance do hospital codificar incorretamente a informação clínica. Observaram também, que aqueles hospitais que apresentaram erro de codificação nos diagnósticos tiveram uma maior proporção de erros que foram financeiramente favoráveis ao hospital.

Além da ocorrência de alteração intencional na codificação dos diagnósticos com o objetivo de maximizar o valor de reembolso, a baixa confiabilidade dos diagnósticos pode resultar de problemas inerentes à Classificação Internacional de Doenças (CID-9) e, particularmente, das dificuldades em interpretar-se as informações no prontuário médico. Estas dificuldades têm várias origens: ilegibilidade das anotações médicas; ausência de informação e ambigüidade de algumas notas médicas. Por fim, o grau de aderência às regras de codificação existentes também tem impacto na confiabilidade dos dados clínicos.

O objetivo deste estudo foi avaliar a confiabilidade dos dados no banco constituído pela coleção de formulários AIH preenchidos pelos hospitais privados contratados pelo Inamps na cidade do Rio de Janeiro em 1986.

A variável clínica anotada no formulário AIH diretamente ligada ao mecanismo de reembolso é o procedimento realizado. Esta variável constitui-se na unidade de pagamento do Mecanismo de Pagamento Fixo por Procedimento. Isto implica em dizer, que manipulação nesta informação pode maximizar os lucros dos hospitais. Nesse sentido, além de analisar-se a confiabilidade desta variável, buscou-se também avaliar em que medida as discordâncias observadas favoreceram financeiramente o hospital. Quer dizer, buscou-se analisar a ocorrência nas internações dos hospitais privados contratados da cidade do Rio de Janeiro, do fenômeno denominado nos Estados Unidos como DRG Creep, discutido acima.

O estudo objetivou, também, coletar dados anotados no formulário AIH, mas não digitados no banco de dados como: o Código de Endereçamento Postal (CEP) da residência dos pacientes internados. Buscou-se avaliar a freqüência de diagnósticos secundários nas internações, a partir dos prontuários médicos, dado a importância dessa informação para a discriminação da gravidade do doente — variável de confundimento para a análise da qualidade da assistência e do consumo de recursos hospitalares. Por fim, apesar de não dirigir-se para análise da validade da informação nos prontuários médicos, uma primeira aproximação a esta questão foi realizada, tendo como referência o diagnóstico principal.

 

METODOLOGIA

Amostra

O desenho do estudo foi dirigido para a análise da confiabilidade dos dados do banco constituído pelos dados dos formulários AIH emitidos pelos hospitais da cidade e não para analisar a qualidade da informação de cada hospital.

Partiu-se de uma amostra por conglomerado estratificada em duas etapas para selecionar hospitais representativos do universo de 29 hospitais privados classificados como hospitais de agudos e contratados pelo Inamps na cidade em 1986. A primeira etapa do processo amostral consistiu na seleção de uma amostra de hospitais, sendo a segunda etapa uma amostra aleatória dos formulários AIH (unidade amostral) dos hospitais amostrados na primeira etapa.

Inicialmente, os hospitais foram classificados com relação a um conjunto de características representadas por indicadores apresentados na Tabela 1. Para efetuar-se a classificação dos hospitais utilizou-se o procedimento estatístico de análise dos componentes principais (Norman et al., 1975) — um método de análise fatorial que permite a transformação de um conjunto de variáveis em um novo conjunto ou componentes principais que não correlacionam-se entre si. Este método tem a capacidade de simplificar dados originais, representando-os por meio de um número menor de variáveis do que o inicialmente considerado.

 

TABELA 1. Número de Formulários AIH Amostrados e Freqüência de Não-Respostas por Hospital

 

As características dos hospitais privados contratados de pacientes agudos variam consideravelmente. Variam, por exemplo, com relação à natureza jurídica: privados com fins lucrativos e filantrópicos/beneficentes. Contudo, esta variável não apareceu associada a outras características dos hospitais, analisadas neste estudo, sendo, dessa forma, excluída do processo de classificação. A distribuição geográfica dos hospitais pelas regiões administrativas da cidade mostrou uma concentração nas regiões próximas ao centro e na zona norte — áreas da cidade que concentram populações de média e baixa renda. As regiões com maior concentração de população de alta renda como: Copacabana, Ipanema ou Leblon não dispunham de nenhum hospital privado contratado em 1986. No entanto, não observou-se associação entre renda média familiar da população residente e as características do hospital. Isto é, considerando apenas aquelas regiões administrativas onde existia hospital privado contratado (agudo) não observou-se variação significativa entre o nível de renda e as características do hospital. Dessa forma, a localização geográfica do hospital também foi excluída da análise.

Foram identificados sete componentes principais que explicavam 83% da variância existente entre os hospitais. A análise demonstrou que os hospitais variavam entre si em relação a taxa de mortalidade, especialidades, disponibilidade de leitos de UTI e volume de formulários AIH preenchidos pelo hospital. Observou-se, também, que a disponibilidade de leitos de UTI era inversamente correlacionada com o número de formulários AIH preenchidos pelo hospital, indicando que os hospitais mais bem equipados tendiam a atender um menor número de pacientes financiados pelo Inamps.

No procedimento amostral adotado, os hospitais foram inicialmente classificados em quatro conglomerados: com relação a sua posição (alta ou baixa) em dois componentes principais (fatores) denominados: mortalidade e cuidado intensivo. Subseqüentemente, os hospitais em cada um dos quatro conglomerados foram classificados com relação a um terceiro fator: volume de formulários AIH preenchidos pelo hospital que representava o volume de internações do hospital financiadas pelo Inamps. Este processo resultou em oito conglomerados de hospitais. A amostra de hospitais foi obtida a partir da seleção aleatória de hospitais em cada conglomerado. Como apenas um terço dos 29 hospitais foram classificados com sinal positivo no fator volume de formulários AIH preenchidos pelo hospital, a mesma relação foi mantida na amostra. Esse processo resultou na seleção de dez hospitais dentre os quais seis tinham sinal negativo no fator acima e quatro sinal positivo (Tabela 1).

A segunda parte do processo amostral consistiu na seleção de uma amostra aleatória de formulários AIH nos dez hospitais selecionados no primeiro estágio. O tamanho da amostra foi fixado em 1.934 formulários AIH. Estes foram selecionados proporcionalmente ao volume de formulários AIH preenchidos por cada hospital da amostra.

O tamanho da amostra foi posteriormente julgado adequado para o estudo. O tamanho mínimo da amostra para avaliar a confiabilidade dos diagnósticos de alta freqüência, como por exemplo Parto Normal, foi calculado em 811 formulários. Esta estimativa usou a fórmula do erro padrão da estatística Kappa (k) com intervalo de confiança de 99 por cento com uma precisão de 0,05. Para diagnósticos de baixa freqüência como por exemplo: Hérnia Inguinal (2,3%) o tamanho mínimo da amostra foi calculado em 1.955 com um intervalo de confiança de 99% e uma precisão de 0,08.

Medindo a Confiabilidade

O desenho deste estudo foi baseado na concordância interavaliadores. Buscou-se testar a equivalência dos resultados de interpretações independentes — a informação anotada nos formulários AIH e aquelas anotadas nos prontuários médicos. Utilizou-se o teste Kappa (k) que é o procedimento estatístico adequado para avaliar a confiabilidade de variáveis categóricas e nominais (Cohen, 1960). Kappa é interpretado como a proporção de concordância entre duas ou mais medidas de n observações, após a exclusão das concordâncias ao acaso. Kappa é também considerado como um teste adequado para medir concordâncias, corrigidas pelas concordâncias ao acaso, pois não aumenta o percentual de discordância nos casos de populações homogêneas – aquelas com taxas próximas de 100 ou 0% (Shrout et al., 1987). Compara as diferenças entre as concordância observadas e esperadas até o valor máximo possível desta diferença. Kappa é igual a 1 quando existe perfeita concordância (entrevistadores concordam em todos os casos). É igual a 0 quando a concordância observada equivale aquela esperada ao acaso e é negativa quando a concordância observada é menor do que a esperada ao acaso.

 

(1)

onde po = proporção de concordância observada

 

pc = proporção de concordância esperada
O erro padrão do (k)

(2)

 

A estatística Kappa parte dos seguintes pressupostos:

• Os casos a serem analisados são independentes.

• Os entrevistadores atuam de forma independente um do outro.

• As categorias analisadas são mutuamente exclusivas e exaustivas.

Para atender ao critério de independência dos casos, teria-se que excluir do banco de dados as reinternações, o que não foi possível dado a estrutura do banco estudado. No entanto, como nos hospitais estudados cada admissão é anotada em um prontuário médico diferente, considerou-se que, no caso desta pesquisa, o critério acima não foi violado.

É preciso destacar-se que o procedimento amostral por conglomerados gera maior erro amostral do que as amostras aleatórias, implicando maior variância nos casos de amostras que se utilizem do primeiro procedimento (Blalock Jr., 1985). No entanto, é muito comum, na pesquisa social e epidemiológica, a não utilização de amostras aleatórias, principalmente, com objetivo de simplificar o trabalho de campo, reduzindo os custos da investigação. Como aconteceu neste estudo, a opção pela amostra por conglomerados possibilitou a diminuição do número de hospitais no estudo, minimizando as dificuldades de acesso e reduzindo o tempo de trabalho de campo e seus custos.

Entretanto, a fórmula utilizada para corrigir a variância da estatística Kappa assume que os dados se baseiam numa amostra aleatória simples. Portanto, deve-se interpretar com cautela os intervalos de confiança obtidos. Isto porque os intervalos reais são maiores do que aqueles observados nos dados. Como conseqüência, pode-se eventualmente rejeitar a hipótese nula Ho: k = 0 quando esta não deveria ser rejeitada. No entanto, não espera-se neste estudo grandes erros padrão dado o grande tamanho da amostra. Além disso, para obter-se maior rigor no teste de hipóteses, o intervalo de confiança utilizado nesta análise foi de 99%. Espera-se, assim, que eventuais erros nas conclusões da pesquisa, introduzidos pelo tipo de procedimento amostral utilizado, tenham sido bastante minimizados.

A análise de concordância foi realizada com a utilização do programa CONCORD desenvolvido por Klein & Coutinho (1988) para uso em microcomputadores. A concordância foi medida com uso da estatística Kappa com intervalo de confiança de 99% e testada a partir da hipótese nula H0 : k = 0.

Para a análise do impacto financeiro nas discordâncias observadas na variável procedimento realizado, comparou-se o valor da informação retirada do prontuário médico com o valor do procedimento realizado anotado pelo hospital no formulário AIH.

Com o objetivo de fazer uma abordagem inicial da questão da validade do diagnóstico principal nos formulários AIH, introduziu-se no questionário uma pergunta dirigida para a avaliação da entrevistadora (todas profissionais médicas) da adequação do diagnóstico anotado no prontuário. Esta avaliação baseou-se em critérios implícitos.

As entrevistadoras foram também solicitadas a pesquisarem no prontuário a existência, em cada internação, de múltiplos diagnósticos. Com esse objetivo, o formulário desenhado para a pesquisa conteve mais campos (quatro) para diagnósticos secundários (comorbidades e complicações), do que o formulário AIH (um campo).

Treinamento e Trabalho de Campo

O grupo de entrevistadoras da pesquisa foi constituído por três profissionais médicas que coletaram os dados a partir dos prontuários médicos anotando-os em um formulário desenvolvido pela pesquisa à semelhança do formulário AIH, com orientações para o seu preenchimento listadas em um instrutivo. O instrutivo foi desenvolvido com base no Módulo do Hospital (Inamps/Dataprev, 1993) publicado pelo Inamps para ser utilizado pelos hospitais privados contratados como guia para o preenchimento dos formulários AIH. Desta forma, buscou-se orientar o preenchimento dos formulários da pesquisa com os mesmos critérios usados para o preenchimento dos formulários AIH. Exceção foi introduzida, para os casos cujo diagnóstico principal anotado no prontuário era: Cicatriz Uterina, Sofrimento Fetal ou Distócia. Nestes casos, adotou-se critérios explícitos desenvolvidos com o objetivo de padronizar a identificação destes diagnósticos entre os entrevistadores.

O trabalho de campo foi acompanhado por uma supervisora. As entrevistadoras trabalharam como grupo e não como entrevistadoras individuais. Foram submetidas a 40 horas de treinamento que envolveu:

• Treinamento no uso do instrutivo.

• Treinamento no uso da Tabela de Procedimentos (Inamps, 1983) publicada pelo Inamps e utilizada para a codificação dos procedimentos.

• Treinamento na coleta de informações do prontuário médico e preenchimento do formulário.

Os dados foram coletados no próprio hospital, após a seleção dos prontuários relativos aos formulários AIH amostrados, seleção esta realizada pela supervisora de campo. Os diagnósticos eram transcritos diretamente para os formulários pelas entrevistadoras e, posteriormente, codificados por profissionais especializados em codificação de doenças.

Negociando Acesso aos Prontuários dos Hospitais

A pequena tradição no Brasil no campo da investigação em serviços de saúde, particularmente, na realização de investigações em estabelecimentos do setor privado, implicou um processo de negociação com os hospitais privados contratados bastante delicado e demorado. A resposta dos hospitais foi bastante variada: alguns hospitais colocaram seus arquivos à disposição da pesquisa logo no primeiro contato e explicitaram interesse pela pesquisa, enquanto outros mantiveram uma postura de desconfiança quanto aos nossos objetivos, com alguns terminando por não permitir acesso aos seus arquivos médicos.

O primeiro contato da equipe de pesquisa com os hospitais foi, na maioria dos casos, com o Diretor Administrativo, quando buscou-se agendar um encontro com o responsável pelo setor de arquivo médico do hospital. A entrevista com os responsáveis por este setor teve como objetivo conhecer a forma de organização da informação médica nos hospitais, o processo de codificação dos diagnósticos para sua anotação nos formulários AIH, além de programar a participação do hospital na pesquisa.

Com exceção de dois hospitais, os arquivos médicos eram organizados em ordem cronológica com base na data de alta dos pacientes. A maioria dos hospitais mantinham a sua via do formulário AIH anexado ao prontuário do paciente. Portanto, após a identificação do prontuário pela supervisora de campo o formulário AIH era separado do prontuário.

Apenas um dos hospitais analisados adotava um resumo de alta com as principais informações contidas no prontuário médico. Dessa forma, na grande parte dos casos, os dados para o preenchimento dos formulários AIH eram retirados diretamente dos prontuários médicos por pessoal administrativo sem treinamento específico. Isto é, a maioria do pessoal administrativo, envolvido com o preenchimento dos formulários AIH nos hospitais, não havia recebido um treinamento detalhado para o preenchimento deste formulário, nem para a codificação de diagnósticos. Observou-se na maioria dos hospitais que as funções de manuseio e guarda dos prontuários médicos confundiam-se com as funções dos setores responsáveis pelo faturamento destas unidades. Ou seja, o uso mais rotineiro dos prontuários estava voltado para o pagamento e eventual auditoria realizada por supervisores do Inamps. Outra característica comum aos hospitais estudados era a inexistência de um Prontuário Único isto é, prontuários onde a referência é o paciente e não a internação. Portanto, o paciente era registrado como um novo caso a cada internação.

O trabalho de campo durou aproximadamente um ano, principalmente, devido a dificuldades enfrentadas no acesso aos hospitais, que serão discutidas mais a frente.

Perdas

A taxa de resposta obtida foi de 69%. Portanto, 31% dos formulários AIH amostrados foram classificados como não-respostas — um total de 603 observações. Uma causa importante de perda foi a recusa de hospitais de participarem da pesquisa. No entanto, a tendência foi dos hospitais dissimularem esta recusa. Alguns hospitais adiaram, sistematicamente, a data do início da coleta de dados, com argumentos variados, fazendo com que um período limite tivesse que ser estabelecido, a partir do qual o adiamento passou a ser interpretado pela equipe de pesquisa como uma recusa indireta de acesso.

Dois hospitais negaram acesso. Em um terceiro hospital as perdas foram extremamente altas (83% da amostra naquele hospital) o que foi interpretado como uma forma indireta de recusa de acesso aos seus prontuários pela equipe de pesquisa. Um quarto hospital não foi, intencionalmente, visitado pela equipe da pesquisa, pois sua participação na amostra era de apenas três formulários. Estes quatro hospitais concentraram 38,5% das perdas.

Uma grande proporção de perdas (33%) foram de prontuários de um grande hospital filantrópico que concentrou um quarto dos prontuários da amostra. A explicação para o grande número de perdas neste hospital, como nos outros hospitais, são várias: impossibilidade de encontrar-se o prontuário — em alguns casos o próprio hospital informou que o prontuário havia extraviado ou que havia sido jogado fora — até a recusa de alguns chefes de enfermarias em dar acesso aos prontuários de seus pacientes.

A taxa de não-resposta foi menor nas maternidades e maior nos grandes hospitais. As perdas também foram proporcionalmente maiores naqueles hospitais com sinal negativo no fator — volume de formulários AIH preenchidos pelo hospital. Isto é, aqueles hospitais que atendem a um maior número de pacientes financiados pelo Inamps foram responsáveis por uma menor proporção de perdas (Tabela 1).

As características das respostas e das nãorespostas foram comparadas, usando-se as informações disponíveis no banco de dados de formulários AIH. Observou-se marcadas diferenças entre os dois grupos, apresentadas na Tabela 2. As observações classificadas como não-respostas concentraram um maior percentual de formulários AIH com procedimentos clínicos; a taxa de mortalidade hospitalar desses pacientes foi um pouco maior e o número de altas por parto nesse grupo foi bem menor. Dentre o grupo de não-respostas (perdas) houve também uma sobre-representação de formulários AIH de pacientes com diagnóstico principal Varizes das Extremidades Inferiores CID-9 454.9. Vale ressaltar, que em outro estudo com base neste mesmo banco de dados, observou-se freqüências pouco usuais de atendimentos com o diagnóstico acima, levantando-se a suspeita de fraude (Veras, 1992).

 

TABELA 2. Distribuição de Freqüência de Algumas Variáveis do Formulário AIH para Respostas e Não-Respostas

 

Pelo exposto acima, tem-se como hipótese que a confiabilidade nas perdas seria menor do que a confiabilidade verificada no grupo de formulários analisados. Como conseqüência, a confiabilidade verificada neste estudo seria maior do que a confiabilidade verdadeira.

 

RESULTADOS

Local de Moradia

Indicadores de uso de serviços de saúde só podem ser referidos a uma população quando o local de moradia dos usuários é conhecido. Além do mais, o local de moradia dos usuários dos serviços é um dado fundamental para a análise do fluxo de pacientes entre municípios e distritos sanitários, informação importante para o planejamento/programação da oferta de serviços de saúde e para a alocação de recursos financeiros.

Observou-se neste estudo que a grande maioria dos pacientes admitidos nos hospitais privados contratados — 81,5% — residiam na cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, a grande maioria dos pacientes não-residentes, residiam nos municípios que compõem a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em 10,6% dos prontuários médicos analisados não havia anotação do endereço do paciente.

A confiabilidade da variável local de moradia - Código de Endereçamento Postal (CEP) - não pode ser medida pois esta informação não estava presente no banco de dados por não estar sendo digitada.

Confiabilidade das Variáveis Idade e Sexo

A confiabilidade das variáveis idade e sexo foi julgada alta (Tabela 3). Estes resultados estão de acordo com aqueles obtidos por Lebrão (1978). Vale ressaltar, no entanto, que em 259 prontuários não havia informação sobre a data de nascimento, impedindo, assim, o cálculo da idade desses pacientes. A ausência desta informação de importância tanto para a avaliação clínica como epidemiológica é de per se um indicador da baixa qualidade do prontuário médico.

 

TABELA 3. Índices de Concordância (k) para Variáveis Demográficas e Administrativas no Formulário AIH

 

Confiabilidade das Variáveis de Processo

Confiabilidade da variável Tipo de Admissão foi julgada como insatisfatória (Tabela 3), limitando o seu uso tanto para a pesquisa como para o planejamento. Entretanto, a variável Tempo de Permanência apresentou boa confiabilidade. A confiabilidade desta variável foi melhor do que aquela obtida pelo estudo realizado em 1974 com base nas informações produzidas pelos hospitais da cidade de São Paulo (Lebrão, 1978). Uma melhoria na qualidade desta informação pode ter sido influenciada pelo novo mecanismo de pagamento introduzido no país em 1983. O tempo de permanência do doente no hospital é um elemento da produção de serviços influenciado diretamente por esta nova lógica de reembolso (Veras, 1992).

Serviços Profissionais

No Mecanismo de Pagamento Fixo por Procedimento é exigido, para fins de pagamento, a identificação, no formulário AIH, dos profissionais que compuseram a equipe cirúrgica nos casos de procedimentos cirúrgicos realizados por profissionais sem vínculo empregatício com o hospital. Existem, também, normas que estabelecem a composição mínima das equipes cirúrgicas para cada grupo de procedimentos. Entretanto, a confiabilidade observada para as variáveis relativas à composição da equipe cirúrgica tendeu a ser baixa (Tabela 3).

A confiabilidade da variável presença do cirurgião principal foi maior do que a confiabilidade das variáveis relativas à presença dos cirurgiões auxiliares. Observou-se uma maior freqüência de anotação da presença dos cirurgiões auxiliares nos formulários AIH do que nos prontuários médicos. Este resultado pode estar indicando que o Inamps estava reembolsando médicos por serviços que não foram prestados, apesar das normas de boa prática adotadas exigirem a prestação destes serviços, com objetivo de resguardar a qualidade da assistência prestada aos pacientes.

Tendência oposta foi observada com relação aos anestesistas que apresentaram maior freqüência de anotação de sua presença na equipe cirúrgica nos prontuários médicos comparativamente à freqüência observada nos formulários AIH. A explicação desse padrão não transparece de imediato, já que a anotação dessa informação no formulário AIH é condição necessária para o reembolso deste profissional. O que parece explicar esse fato, é a prática adotada por muitos anestesistas de cobrar os serviços prestados diretamente do paciente, com base na Tabela de Procedimentos da Associação Médica Brasileira (AMB) que remunera melhor do que a Tabela de Procedimentos do Inamps (Comunicação Pessoal). A ausência de anotação deste ato no prontuário seria intencional, de forma a evitar duplo faturamento. Apesar da ausência de anotação no formulário do profissional responsável pelo ato anestésico e a cobrança dos serviços profissionais diretamente do paciente ferirem as normas do Inamps, estas têm sido prática rotineira dentre os anestesistas.

A confiabilidade da variável número de consultas médicas durante a internação também foi bastante baixa (Tabela 3). Esta alta discordância explica-se basicamente pela tendência dos hospitais em não anotarem nos formulários essa informação, pois o reembolso das consultas médicas é realizado independentemente do anotado. Isto é, os hospitais são reembolsados uma consulta médica por dia, independentemente do que está escrito no formulário. Exceção a esta regra ocorre, somente, naqueles casos de consultas especializadas.

A confiabilidade da informação sobre os Serviços Auxiliares de Diagnóstico e Terapia (SADT) mostrou-se no geral baixa. Esta é uma informação bastante objetiva (realização ou não de determinados exames) e, portanto, passível de concordância entre as fontes analisadas. As exceções foram os seguintes exames: Patologia Clínica, Radiologia e Eletroencefalograma ou Eletrocardiograma que apresentaram melhor índice de concordância (Tabela 4). Esta análise considerou apenas se a informação estava escrita em cada uma das fontes analisadas, não levando em conta o número de vezes que cada tipo de exame foi realizado em cada internação. Isto sugere que, no conjunto, a qualidade da informação sobre os SADT é melhor para aqueles serviços que apresentaram alta confiabilidade neste estudo. A confiabilidade dos exames: Cardioversão e Medicina Nuclear não pode ser medida devido a ausência destes procedimentos na amostra.

 

TABELA 4. Índices de Concordância (k) para Serviços Auxiliares de Diagnósticos e Terapia (SADT) nos Formulários AIH

 

Confiabilidade das Variáveis Clínicas

Diagnóstico

Seguindo o padrão descrito por outros estudos, observou-se que a confiabilidade, para os diagnósticos com alta freqüência no banco de dados, tendeu a ser mais alta quando analisada com base em diagnósticos codificados com maior nível de agregação (três dígitos) do que com menor nível de agregação (quatro dígitos) — ver Tabela 5 e 6. Os diagnósticos, codificados com quatro dígitos, com base na Classificação Internacional de Doenças - CID 9 (OMS, 1975), apresentaram um k = 0,72 e diagnósticos codificados com três dígitos apresentaram um k = 0,82.

 

TABELA 5. Índices de Concordância (k) para as Variáveis Clínicas nos Formulários AIH

 

 

TABELA 6. Índices de Concordância (k) para Alguns Diagnósticos Selecionados

 

No estudo realizado por Maria Lúcia Lebrão (1978) o nível de concordância observado para os diagnósticos foi de 82,5% para codificação em três dígitos, o que pode ser considerado um resultado próximo ao obtido por esse estudo. Entretanto, os resultados dessas investigações não podem ser diretamente comparados, devido a diferenças metodológicas.

As medidas de confiabilidade variaram muito entre os diagnósticos com alta freqüência no banco de dados: a confiabilidade foi julgada alta para Parto Completamente Normal CID-9 650.9 e para Hérnia Inguinal sem Menção de Obstrução ou Gangrena CID-9 550.9 e foi julgada moderada para os diagnósticos — Insuficiência Cardíaca Congestiva CID-9 428.0 e Doenças Cerebrovasculares Aguda Mal Definida CID-9 436.9. Entretanto, para Obstrução Causada por Má Posição do Feto no início do Trabalho de Parto CID-9 660.1; Pneumonia Bacteriana Não-Especificada CID-9 482.9; Diabetes Mellitus com Complicações Não-Especificadas CID-9 250.9 e Fratura do Colo do Fêmur Parte Não-Especificada, Fechada CID-9 820.8 os índices de concordância observados não foram considerados diferentes daqueles que poderiam ter sido obtidos ao acaso (Tabela 6).

A ausência de concordância no caso de Pneumonia Bacteriana refletiu principalmente discrepâncias em nível da identificação do agente etiológico. Isto é, nos prontuários médicos com diagnóstico principal de Pneumonia a pesquisa tendeu a codificar este diagnóstico como Pneumonia Devido a Microorganismo não Especificado CID-9 486.9, enquanto nos formulários AIH a tendência foi de codificá-los como Pneumonia Bacteriana Não-Especificada CID-9 482.9.

Já, no caso do diagnóstico principal Diabetes Mellitus e Fratura do Colo de Fêmur, a confiabilidade foi maior para as categorias com três dígitos do que aquelas com quatro dígitos, indicando que as discordâncias se deram principalmente em nível da especificação da doença (Tabela 6).

Observou-se que os diagnósticos anotados nos formulários AIH são freqüentemente codificados nos dígitos 8 ou 9, considerados como classificações inespecíficas e residuais para a categoria diagnóstica, denotando a pouca precisão obtida no processo de codificação desta variável.

Por fim, a ausência de concordância para Obstrução Causada por Má Posição do Feto no início do Trabalho de Parto CID-9 660.1, uma categoria diagnóstica fortemente associada a realização de cesariana, questiona a adequação da indicação de parto cirúrgico para as pacientes classificadas nos formulários AIH no diagnóstico acima. Vale lembrar que nesta pesquisa, no caso do diagnóstico Obstrução do Trabalho de Parto, foi desenvolvido critério explícito para a sua identificação. O critério utilizado exigia, para o estabelecimento do diagnóstico de Trabalho de Parto Obstruído, a anotação no prontuário médico do resultado do exame (manual, RX ou ultrassonografia) que indicasse a existência de desproporção de origem materna ou fetal.

Na grande maioria (98,5%) dos prontuários médicos analisados havia um diagnóstico principal anotado, sendo que em 85,4% destes a equipe da pesquisa avaliou esse diagnóstico como sendo correto. Nos casos que não houve concordância com o diagnóstico escrito no prontuário, a razão principal apontada pelas entrevistadoras para justificar essa discordância foi a ausência de compatibilidade entre as informações clínicas e o diagnóstico principal anotados no prontuário.

A análise da freqüência de múltiplos diagnósticos (comorbidades e complicações) demonstrou que a anotação do diagnóstico secundário no formulário AIH é bastante incompleta. Observou-se a anotação de algum diagnóstico secundário em apenas 1,9% dos formulários AIH amostrados, enquanto nos prontuários relativos a essas internações, verificou-se a existência de pelo menos um diagnóstico secundário em 42,4% destes. Observou-se, também, em 11,7% dos prontuários, a ocorrência de pelo menos quatro diagnósticos secundários.

Procedimentos Realizados

A confiabilidade dos procedimentos realizados, dentre aqueles mais freqüentes no banco de dados, foi alta (k = 0,907), maior do que a confiabilidade verificada para os diagnósticos principais mais freqüentes, codificados com quatro dígitos. Observou-se, também, um maior k para os procedimentos cirúrgicos comparativamente aos procedimentos clínicos - o que reflete a menor subjetividade da informação cirúrgica (ver Tabela 5).

A análise do impacto das discordâncias (341 observações) no reembolso dos hospitais apontou para a ocorrência, com uma freqüência considerada alta, de discordâncias que resultam no aumento deste valor em favor do hospital (Figura 1). Isto é, em 31% das discordâncias o procedimento identificado pelo hospital tinha valor de pagamento superior ao procedimento identificado pela pesquisa. Já, em 29% das discordâncias, o hospital e a pesquisa identificaram diferentes códigos de procedimento para as altas hospitalares que tinham, no entanto, mesmo valor de pagamento. Essas últimas foram consideradas discordâncias menores. Em 20% das discordâncias, o procedimento identificado pelo hospital tinha valor de reembolso menor do que o procedimento identificado pela pesquisa e em 20%, não pode-se proceder a análise por razões diversas, como ausência de informação.

 

FIGURA 1. Nível de Concordância da Variável Procedimento Realizado e Impacto das Discordâncias no Valor do Reembolso

 

Confiabilidade das Variáveis de Resultado

Dentre as variáveis rotineiramente presentes nas estatísticas hospitalares, o óbito é a variável mais freqüentemente utilizada para avaliação do resultado (outcome) da assistência prestada. Tanto o óbito hospitalar como a ocorrência de transferência do paciente para outro hospital foram variáveis de resultado da assistência cuja confiabilidade foi considerada alta (Tabela 7). No entanto, é necessário destacar que 55 observações foram excluídas desta análise por falta de informação nos prontuários médicos sobre o desenlace da internação.

 

TABELA 7. Índices de Concordância (k) para Variáveis de Resultados Presentes no Formulário AIH

 

Já, a variável óbito no recém-nato apresentou baixa confiabilidade: os entrevistadores da pesquisa identificaram, com base nos prontuários médicos, maior freqüência de óbitos em recém-natos do que aquela medida com base nas informações anotadas nos formulários AIH. Este resultado vai implicar distorções no cálculo da mortalidade perinatal que vai variar entre as fontes, sendo menor quando baseada nos dados do formulário AIH. Já a confiabilidade da variável nascido vivo, outro componente para o cálculo da taxa de mortalidade perinatal foi alta (k = 0,99). No cálculo desta taxa, com base nos dados da AIH, os óbitos do recém-nato referem-se àqueles ocorridos no hospital no período entre o nascimento e o óbito.

 

DISCUSSÃO

Este estudo mostrou que a qualidade dos dados nos formulários AIH preenchidos pelos hospitais privados contratados de pacientes agudos da cidade do Rio de Janeiro no ano de 1986 variou bastante entre variáveis. Dentre as variáveis administrativas e demográficas: sexo, idade e tempo de permanência apresentaram alta confiabilidade. Os erros existentes foram, provavelmente, resultado de problemas menores ocorridos durante a transcrição dos dados. Entretanto, a confiabilidade da variável tipo de admissão foi baixa, restringindo a sua utilização como informação para avaliação da produção hospitalar.

A confiabilidade para as variáveis relacionadas com a composição da equipe cirúrgica também foi baixa. Estas são variáveis diretamente relacionadas com o pagamento dos serviços profissionais. Segundo a lógica do Mecanismo de Pagamento Fixo por Procedimento, na medida em que aumenta o número de profissionais médicos envolvidos em cada internação, particularmente no caso de internações classificadas em procedimentos cirúrgicos, maior é a chance de cada profissional receber um menor valor de reembolso pelos serviços prestados. Com o objetivo de prevenir reduções inaceitáveis na composição das equipes cirúrgicas, com impacto negativo sobre a qualidade da assistência, foram definidas normas que indicam a composição mínima das equipes cirúrgicas para cada grupo de procedimentos. No entanto, parece que o cumprimento dessa norma não estava sendo checado regularmente. Este estudo apontou para uma maior freqüência de cirurgiões nos dados anotados nos formulários AIH do que nos dados anotados nos prontuários médicos, sugerindo que alguns hospitais anotavam informação no formulário com objetivo de reembolso, sem ter prestado o serviço ao paciente. Situação inversa foi observada com os anestesistas, já que a anotação referente a participação destes profissionais na equipe cirúrgica apresentou maior freqüência nos prontuários do que nos formulários. Como já discutido anteriormente, esse padrão provavelmente resulta da prática adotada pelos anestesistas de cobrarem valores acima da tabela diretamente dos pacientes: para evitar duplo faturamento, seus nomes não aparecem nos formulários. Esse último fato, também, aponta para ausência de crítica de dados dirigida para o monitoramento de práticas ilegais, já que a cobrança direta ao paciente é proibida.

Com relação às variáveis clínicas, observou-se grande variabilidade na confiabilidade. De modo geral, os Serviços Auxiliares Diagnósticos e Terapêuticos (SADT) apresentaram baixa confiabilidade. Entretanto, a confiabilidade desta informação pode ser melhorada, tendo como parâmetro a melhor confiabilidade observada para alguns serviços diagnósticos tais como: Patologia Clínica e Radiologia. Por outro lado, observou-se uma maior freqüência de SADT nos formulários AIH do que nos prontuários, sugerindo que nem todos os serviços anotados nos formulários foram efetivamente realizados. Isto pode resultar da prática de anotar informações padronizadas nos formulários de pacientes classificados em um mesmo procedimento realizado, independentemente de verificação dos serviços efetivamente prestados. Tais desvios só poderão ser corrigidos com um sistema de crítica da informação prestada pelos hospitais, com posterior análise mais detalhada das distorções observadas.

A confiabilidade do diagnóstico principal observado nesse estudo foi similar àquela observada pelo estudo (Lebrão, 1978) realizado em São Paulo na década de 1970, apontando que pouco foi feito no país, no período entre estes dois estudos, que tenha tido impacto na melhoria da qualidade da informação diagnóstica. Os resultados indicam que os estudos de qualidade da assistência médica e de morbidade baseados nesses dados devem se concentrar em categorias diagnósticas mais agregadas: diagnósticos com três dígitos apresentaram maior confiabilidade do que os diagnósticos com quatro dígitos. Estes resultados se aplicam aos diagnósticos mais freqüentes nos hospitais privados contratados da cidade do Rio de Janeiro em 1986.

Por outro lado, a confiabilidade variou de forma importante entre diagnósticos, com alguns diagnósticos apresentando maiores problemas. Por exemplo, a concordância foi zero no caso de Trabalho de Parto Obstruído CID-9 660, levantando óbvias dúvidas quanto a adequação da indicação do procedimento mais associado a estes diagnósticos: a cesariana.

Considera-se que os maiores problemas associados com a qualidade da informação diagnóstica diz respeito aos processos de anotação, coleta e codificação desta informação. A maioria dos hospitais estudados não dispunham de um formulário do tipo sumário de alta para anotação das informações básicas sobre a internação. No caso dos hospitais analisados neste estudo, os dados para o preenchimento dos formulários AIH eram retirados diretamente dos prontuários por um profissional administrativo. Com grande freqüência, esses prontuários continham informação ilegível, incompleta e imprecisa, dificultando a correta transcrição da informação. O processo de codificação dos diagnósticos também era realizado, na maioria dos casos, por pessoal administrativo sem nenhum treinamento para esta atividade. Além do mais, a base de classificação adotada pelo Inamps é um resumo da Classificação Internacional de Doenças (CID-9) publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que omite os termos de inclusão e de exclusão para cada categoria diagnóstica, aumentando assim as chances de classificações erradas ou maldefinidas.

Observou-se que, em parte, as discordâncias podem resultar de erro médico na identificação do diagnóstico principal: os médicos entrevistadores da pesquisa tenderam a discordar com cerca de 14% dos diagnósticos anotados nos prontuários.

Um outro problema sério identificado na informação diagnóstica foi a baixíssima freqüência de anotação do diagnóstico secundário, limitando o uso desses dados para avaliação da ocorrência de múltiplos diagnósticos, dado a enorme freqüência de falsos negativos. Os sumários de alta e os sistemas de informações hospitalares deveriam não só ter alta taxa de preenchimento do diagnóstico secundário, como os campos destinados para as comorbidades e complicações deveriam ser ampliados para quatro ou cinco, de forma a permitir uma análise mais refinada dos tipos de pacientes que o hospital atende; discriminando doentes por níveis de gravidade e permitindo a classificação das internações em grupos de pacientes homogêneos — todas estas informações de absoluta relevância para programação e gerência dos serviços, avaliação de qualidade e análise de custos hospitalares.

A confiabilidade da variável procedimento realizado foi considerada alta, apesar desta constituir a unidade de pagamento do Mecanismo de Pagamento Fixo por Procedimento, isto é, de ser uma variável que define os valores de reembolso dos hospitais. Apesar deste resultado favorável, observou-se que nos casos de discordâncias que envolveram procedimentos com valores de reembolso diferentes, a probabilidade maior foi do hospital classificar a internação em procedimentos de maior valor comparativamente ao procedimento anotado pelo entrevistador da pesquisa. A possibilidade de manipulação da informação com objetivos de maximização do valor do reembolso aponta para necessidade de medidas mais efetivas de controle.

Por fim, dentre as variáveis de resultado, óbito e transferência apresentaram alta confiabilidade e morte perinatal apresentou baixa confiabilidade. A baixa confiabilidade das mortes perinatais resultarão em taxas de mortalidade perinatal hospitalar subestimadas.

No geral, considera-se que os resultados obtidos por este estudo indicam que a qualidade das informações disponíveis no banco de dados constituído pelos dados anotados nos formulários AIH era, de alguma forma, melhor do que a qualidade corriqueiramente imputada a esse banco de dados. Entretanto, problemas sérios de qualidade existem que inviabilizam o uso de algumas variáveis e restringem o uso de outras, indicando a necessidade de implementação de medidas dirigidas para o seu aprimoramento, tais como: melhoria da qualidade no preenchimento dos prontuários médicos; introdução de sumários de alta estruturados para alimentar os sistemas de informações dos hospitais; clara atribuição de responsabilidades pelas informações produzidas — o médico assistente deveria preencher o sumário de alta e assumir a responsabilidade pela informação anotada, como ocorre em outros países; treinamento de pessoal para codificação de diagnósticos; utilização da versão original da Classificação Internacional de Doenças da OMS em substituição à versão resumida publicada pelo Inamps e introdução de novos e efetivos mecanismos de monitoramento da qualidade dos dados fornecidos pelos hospitais. Sugere-se também a introdução de um Prontuário Único nos hospitais que poderá impactar positivamente no acompanhamento clínico do paciente como para a pesquisa. Possibilitaria, também, o controle de duplo faturamento, prática conhecida e destacada por alguns autores (Gay & Kronenfeld, 1990), utilizada pelos serviços para contornar a remuneração insuficiente ou, simplesmente, aumentar o valor de seu reembolso.

Por fim, vale ressaltar que em alguns problemas de saúde e/ou procedimentos não identificou-se código adequado na Tabela de Procedimentos, fato que por si só aponta para a importância de rever-se este documento. No caso da amostra de formulários AIH estudada observou-se os seguintes problemas e procedimentos para os quais não identificou-se um código na Tabela de Procedimentos: Retirada de Prótese, Curetagem Pós-Parto, Isquemia Cerebral Transitória, Curetagem, Glaucoma e Hanseníase Tuberculóide. Na realidade, as mudanças freqüentes na prática médica, como resultado de novos conhecimentos e inovações tecnológicas, indicam a necessidade de revisões periódicas nesta tabela.

As recomendações acima se fazem necessárias tanto para evitar-se gastos desnecessários no reembolso dos hospitais financiados por dinheiro público, como para permitir que usuários, gerentes, provedores de serviços e pesquisadores disponham de uma fonte de informações confiável como instrumento para a melhoria da eficiência e da qualidade dos serviços prestados à população.

 

AGRADECIMENTOS

Esta investigação recebeu apoio financeiro da Organização Panamericana da Saúde/Organização Mundial da Saúde. Os resultados apresentados e as opiniões apresentadas neste artigo são de responsabilidade unicamente das autoras. Gostaríamos, também, de agradecer à Profa. Célia Landman pelo apoio dado na análise estatística e às médicas Nair Navarro de Miranda, Carla Simone D. de Gouveia e Georgina Sarantakos pela importante contribuição dada durante o trabalho de campo e na interpretação de alguns resultados e ao pesquisador Iuri da Costa Leite pela colaboração no processamento dos dados.

 

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Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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