RESENHA/RESENHA

 

 

Zulmira Maria de Araújo Hartz

Escola Nacional de Saúde Pública; Fundação Oswaldo Cruz

 

 

Ruptures - Revue Transdisciplinaire en Santé, volume 1, nº 1. Ron Levy (editor). Publicação do GRIS (Groupe de Recherche Interdiscipinaire en Santé), da Faculdade de Medicina da Universidade de Montreal: Montreal, Canadá, 1994. ISNN 1192-8808

Uma nova revista canadense, em língua francesa, vem favorecer o choque de idéias que provoquem "rupturas", com o sentido de descontinuidade, de maneira a explorar o campo da Saúde vinculado às transformações paradigmáticas da Ciência e Tecnologia. O editor esclarece que não se quer refletir uma "escola de pensamento", mas abrir um espaço ao diálogo de diferentes ideologias vigentes que motivem a reflexão crítica.

A revista está estruturada em três seções e o primeiro número é aberto com o "ponto de vista" de André-Pierre Contandriopoulos, defendendo a necessidade de se construir uma utopia para a reforma dos sistemas de saúde ("Réformer le système de santé: Une utopie pour sortir d'un statu quo impossible"). A utopia apresentada, inspirando-se em uma concepção de Musil, é conceituada como uma possibilidade de as circunstâncias provisórias impedirem a realização, a qual permitiria enfrentar as crises do financiamento, da regulação, dos conhecimentos e dos valores que afetam o sistema de saúde canadense. Vale salientar que, respeitadas as especificidades sócio-econômicas e políticas do país, é fácil perceber que estas crises se evidenciam também em nossa realidade.

A seção dos artigos originais reúne três estudos ligados à análise dos serviços e programas de saúde. No primeiro — "Introduire la durée dans la conception et la mesure de l'utilisation des services médicaux" —, François Béland testa um modelo matemático que supõe uma concepção dinâmica para a medida da utilização dos serviços médicos, inovando seu desenho ao adotar o conceito "propensão a utilizar" como o objetivo que redefine estas investigações. Tomando como base de dados um inquérito epidemiológico (morbidade e uso de serviços) realizado no Quebéc em 1987, o autor constata alguns avanços do novo enfoque e critica os pressupostos da regressão linear para predizer os comportamentos de pacientes nos estudos de utilização.

Os autores Ndjeru e Blais apresentam os resultados de uma intervenção destinada a facilitar o acesso de um segmento populacional pobre de Montréal aos serviços de saúde ("Le Projet Milieu: Une stratégie d'intervention alternative pour rejoindre les clientèles sousdesservies"). São analisados os fatores que favoreceram e dificultaram a implantação do programa, bem como a utilidade percebida por profissionais e usuários. A validade externa do estudo se amplia, considerando-se que o projeto traduz dimensões comuns das teorias de intervenção comunitária (globalidade da atenção aos indivíduos e suas famílias, multidisciplinaridade e colaboração intersetorial de organismos locais).

O artigo de Potvin et al. — "Le paradoxe de l'évalution des programmes communautaires multiples de promotion de la santé" — é particularmente recomendado para os que se interessam pela avaliação dos programas de saúde, cobrindo diferentes localidades ou regiões e tendo como pressuposto "a participação da população em todas as etapas, da planificação à avaliação do projeto". Descartando a possibilidade de restringir tais avaliações ao "credo epidemiológico ou quase-experimental" que tradicionalmente orienta a pesquisa avaliativa, os autores sugerem uma modelagem alternativa que não compromete a validade da pesquisa e integra as propostas locais de avaliação. O programa canadense para a redução da prevalência dos fatores de risco das doenças cardiovasculares foi utilizado como exemplo da aplicação do novo modelo.

A terceira seção (artigos já publicados) inicia-se com a descrição de três expressões da ética tecnocientífica, de base antropológica, no trabalho de Gilbert Hottois, intitulado "Verité objective, puissance et système, solidarité (D'une éthique pour l'âge technoscientifique)".

Em seguida, Guy Durand nos apresenta a emergência e os desafios da bioética ("De la deontologie médicale à la bioéthique"), que recoloca a questão dos limites da pesquisa, em termos de moratória e interdição, para assegurar o respeito aos seres humanos e a sobrevivência da humanidade.

O artigo final — "Croyance et doute: Une vision paradigmatique des méthodes qualitatives" , escrito pelo editor da revista, questiona o "realismo científico" dos que pretendem que a experimentação seja a única forma de conhecimento ("paradigma positivista"). Discutindo os fundamentos do positivismo e do construtivismo (abordagem interpretativa da realidade), o autor resume sua argumentação dizendo: "para o realismo, a certeza é a rotina; para o construtivismo, a dúvida é a rotina".

Para tantas provocações seguramente não faltarão debatedores em nosso convívio acadêmico e no próximo número da revista. Vale a pena conferir... Aliás, esqueci de comentar que Ruptures tem uma textura de pesquisa e ensaio que torna a leitura agradável, mesmo depois de uma jornada de trabalho ou na pausa dos jornais de domingo.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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