ARTIGO ARTICLE

 

A Violência enquanto agravo à saúde de meninas que vivem nas ruas

 

Violence against the health of street girls

 

 

Romeu Gomes

Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4.036, sala 702, Rio de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo consiste num recorte de uma pesquisa que aborda a relação entre prostituição infantil, processo saúde-doença ligado à sexualidade e violência, configurada no ambiente de meninas que vivem nas ruas. Neste trabalho são apresentados apenas os resultados sobre violência revelados na fala das meninas. Para uma compreensão destes dados, inicialmente são tecidas considerações básicas sobre a .violência e sobre a pesquisa em geral. Após esta discussão procura-se caracterizar, de forma sintética, o cenário dos atores sociais estudados. Dentro deste cenário analisam-se aspectos da história de vida das meninas, bem como a fala delas sobre a violência, dentro de uma dimensão social. A partir desta análise conclui-se que as situações de violência vividas pelas meninas comprometem a saúde, deixando marcas profundas em seus corpos e em suas mentes.

Palavras-Chave: Violência Sexual; Prostituição; Saúde Pública


ABSTRACT

This article is a part of a study focusing on the relationship between child prostitution and the health/disease process as related to sexuality and violence, considering the three categories in the context of street girls. The paper analyzes the violence revealed by the girls themselves. Considerations on violence in general and the research as a whole are introduced first to facilitate an understanding of the purposes of the study. The social actors under study are then characterized. Within that scenario, aspects of the girls' life histories and their views on violence are analyzed in the social context. The conclusion is that such violent situations damages their health directly, leaving deep scars on their bodies and minds.

Key words: Sexual Violence; Prostitution; Public Health


 

 

INTRODUÇÃO

Em nossa sociedade atual, a violência é fato visto e sentido. Apesar dos inúmeros estudos sobre o assunto, alguns equívocos ainda estão presentes no cotidiano social. Em geral, estes equívocos surgem a partir de uma atitude reducionista frente à questão da violência. Um dos exemplos que limitam a compreensão desta questão se refere ao fato de muitos situarem-na apenas no campo do crime. Sabemos que os crimes, enquanto delitos cometidos contra a lei, concretamente revelam a existência da violência, uma vez que podem comprometer a vida de pessoas e de grupos, mas também sabemos que por detrás dos crimes estão presentes outros níveis de violência que necessariamente não se articulam diretamente com os crimes e que nem sempre são percebidos como violência.

Outro equívoco comum diz respeito ao fato de se reduzir a violência ao plano do indivíduo. Esta ótica de pensamento ocorre, em primeiro lugar, por um problema conceitual que, segundo Costa (1986), faz com que se confunda violência com agressão. Para este autor, o que existe, a nível do indivíduo, é o instinto agressivo, que tanto pode se associar ao emprego da violência como pode coexistir com a possibilidade de se desejar a paz. Na opinião do autor em questão, a violência é vista como emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos. Fica implícita, nesta concepção, uma instância exterior ao indivíduo que determina o início da violência e decreta o seu fim.

Com base em Vithencourt (1990), podemos assinalar um segundo aspecto que contribui para a "individualização" da violência. Este aspecto se relaciona à forma de conceber as instâncias individual e social dicotomicamente separadas. Se não compreendemos as relações dialéticas entre essas instâncias, dificilmente conseguiremos perceber o emolduramento social da violência. Neste sentido, segundo o autor, para se compreender a violência não se pode diluir a sociogênese na psicogênese, e vice-versa. Com esta advertência, ele pretende, de um lado, indicar que a violência coletiva deve ser referencial, para melhor entendermos as ações violentas manifestadas pelas pessoas, e, de outro, ele quer mostrar que a realidade social, entre outros aspectos, abrange a consciência pessoal.

Para avançarmos na compreensão da violência, é necessário levarmos em conta que esta denominação abrange diferentes níveis e prismas conceituais. Agudelo (1989) observa que a violência não se reduz a um dano ou a um momento. Ela é um processo orientado para fins determinados a partir de diferentes causas, com formas variadas, produzindo determinados danos, alterações e conseqüências imediatas ou tardias. Dentro deste universo faz-se necessário assinalarmos, como Mertens (1981) tão bem o faz, que atualmente existe uma das mais mortíferas violências: a "violência silenciosa". Esta violência, presente de forma bastante velada, é produto de certos tipos de relações que se configuram entre Estado e sociedade, na exploração e na injusta concentração do capital por parte de pequenos segmentos, em detrimento da miserabilidade de muitos "quase-cidadãos".

O Brasil, conforme observa Saboia (1993), com base nos dados da década 80 do IBGE, se encontra entre os países com piores níveis de distribuição de renda. Na análise deste autor, destacamos que, em 1989, 1% das pessoas mais ricas do país possuía rendimentos médios 230 vezes maiores que os 10% mais pobres.

Esta forma de violência, segundo Minayo & Souza (1993), se faz acompanhar:

da descrença e do afastamento da população em relação às instituições sociais (...) da ausência de políticas públicas integradas e condizentes com as necessidades da população (...) da priorização do desenvolvimento econômico (frustrado na década) e individamento externo, em detrimento do desenvolvimento social e às custas do sacrifício da população em geral, mas, sobretudo, com maior ônus para os pobres; do intenso apelo ao consumo, conflitando com o empobrecimento do país. (p. 75)

Para entender a extensão e a complexidade da violência, podemos recorrer às idéias sistematizadas por Souza (1993). Nesta análise, a violência é vista como uma expressão essencialmente humana de caráter histórico. Nas variadas formas de organização social, ela assume as condições universal e específica, com características simultaneamente quantitativas e qualitativas, internas e externas, configurando-se em relações assimétricas.

A partir dessas considerações, gostaríamos de assinalar que somos partidários da posição que vê a violência "nas relações institucionais, interpessoais e simbólicas, dentro de um processo histórico sócio-econômico, político e cultural, que a contextualizam, a reproduzem e também possibilitam a sua superação" (Claves, 1993: 25).

Com base nesses pressupostos, empregamos em nossa pesquisa a classificação de Minayo (1990), que, considerando a violência em rede, a situa a partir dos seguintes níveis: violência estrutural (referente às desigualdades sociais engendradas pelo sistema social, aí se incluindo as discriminações de classe, raça, sexo e idade); violência revolucionária ou de resistência (relacionada ao protesto, de forma organizada, dos que são discriminados); e delinqüência (caracterizada pelas transgressões sociais). Dentro desta classificação, em síntese, a pesquisa se volta principalmente para a violência estrutural.

O objeto da pesquisa basicamente consiste na análise da configuração, em programas voltados para o atendimento de meninas que vivem nas ruas, da prostituição infantil feminina e do processo saúde-doença vinculado à sexualidade. Enquanto categorias, procuramos estudar a articulação entre prostituição infantil feminina, processo saúde-doença ligado à sexualidade e violência estrutural, perpassada pela questão da pobreza.

No que diz respeito ao ambiente de pobreza, que perpassa as três categorias de análise, estamos utilizando a linha de pobreza empregada em Minayo (1993), que é de 1/2 do salário mínimo per capita. Sabe-se, através de inúmeros estudos, que a situação de pobreza é basicamente o principal determinante da existência de crianças trabalhando e/ou morando nas ruas. Entre esses estudos podem ser destacados os de Lusk (1989), Rizzini & Rizzini (1991) e Minayo (1993). Com base nestes dados e pelo fato de o presente estudo se voltar para o gênero feminino, situamos como ambiente de pobreza aquele relativo à vida de meninas que fazem da rua seu espaço de sobrevivência e/ou de moradia.

Esta investigação foi desenvolvida pelo Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves), da Escola Nacional de Saúde Pública, unidade da Fundação Oswaldo Cruz. Sua realização, sob nossa coordenação, contou com o financiamento da Organização Pan-Americana da Saúde e com a participação técnica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Em termos de objetivo, num plano geral, analisamos a configuração da prostituição entre meninas que vivem nas ruas, articulando aspectos micro e macrossociais. Dentro desta análise especificamente, a investigação visa: (a) identificar o significado de prostituição e do processo saúde-doença para as instituições que atuam especificamente com meninas que vivem nas ruas; (b) analisar formas de encaminhamento desta problemática por parte das instituições; (c) comparar os discursos de meninas atendidas e de meninas não-atendidas institucionalmente em relação às concepções de prostituição e do processo saúde-doença ligado à sexualidade, bem como à intervenção institucional sobre o problema e às vivências desses sujeitos sociais; e (d) estabelecer relações entre violência estrutural e prostituição infantil feminina, via violência sexual, a partir do confronto de dados empíricos com a literatura específica.

Com os objetivos, buscamos alcançar os seguintes resultados: (a) levantamento sobre o significado da prostituição infantil feminina e do processo de saúde-doença ligado à sexualidade para meninas que vivem nas ruas; (b) caracterização do enfoque e do encaminhamento da prostituição infantil presentes em programas que atuam especificamente com meninas que vivem nas ruas; e (c) proposta com subsídios para políticas no campo da Saúde Pública, no que tange à abordagem da prostituição infantil feminina e do processo saúde-doença ligado à sexualidade.

A investigação em questão é de natureza qualitativa, voltada para a análise institucional sobre a concepção e a atuação frente à prostituição infantil feminina. O fato de propormos uma pesquisa qualitativa não significa que não consideramos aspectos quantitativos. Na análise, os dados desta natureza que se configuram como tal são levados em conta no sentido de melhor iluminar a qualidade do problema por nós estudado.

A partir da classificação de Bulmer, apresentada por Minayo (1992), o presente estudo se caracteriza como uma pesquisa estratégica, uma vez que tem por finalidade lançar luz sobre determinados aspectos da realidade para subsidiar políticas públicas.

Tecnicamente, investigamos três categorias de significado sobre a problemática da pesquisa. A primeira se refere ao conhecimento e formas de encaminhamento do problema por parte daqueles que definem diretrizes de ação voltadas para meninas que vivem nas ruas. No que diz respeito à segunda categoria, pesquisamos aquela relacionada às pessoas que, decodificando essas diretrizes. atuam diretamente com as meninas em questão. Por último, em termos de terceira categoria de significado, buscamos o entendimento, por parte das próprias meninas — atendidas ou não por programas com recorte de gênero —, em relação à prostituição infantil, ao processo saúde-doença ligado à sexualidade e às formas de intervenção das instituições sobre elas. Esta categoria é de importância central para a presente pesquisa, porque essas meninas, em suas histórias de vida, fazem a síntese da problemática e da intervenção institucional.

No que diz respeito a técnicas, prevemos dois conjuntos de procedimentos: análise institucional e promoção de história de vida. No primeiro conjunto analisamos organizações com ações específicas voltadas para meninas que vivem nas ruas. Em termos de técnicas, a análise institucional consta de entrevista semi-estruturada, estudo de documentos ligados às organizações e observação participante.

No segundo conjunto de procedimentos prevemos a promoção da história de vida e a observação participante. Este recorte metodológico é fundamental para a pesquisa, uma vez que através dele é possível caminhar para a síntese de concepções e formas de intervenção frente ao nosso objeto de estudo. Tanto no primeiro como no segundo conjunto de técnicas, nos apoiamos na obra de Minayo, (1992).

Especificamente sobre a fase de análise ou tratamento do material, adotamos a proposta de Minayo (1992), que leva em consideração dois níveis de interpretação inter-relacionados: um referente ao campo das determinações fundamentais (contexto sócio-histórico) e outro relacionado ao encontro com os fatos empíricos. O primeiro nível, para a autora, deve estar estabelecido na fase exploratória da pesquisa. No segundo nível há o entrecruzamento de comunicações individuais, observações de condutas a análises institucionais, entre outros aspectos. Neste artigo apresentamos apenas os dados sobre violência revelados na fala das meninas.

 

OS ATORES E O SEU CENÁRIO SOCIAL

Com vistas a melhor definir o campo, inicialmente realizamos, no município do Rio de Janeiro, um levantamento de instituições ou grupos com programas específicos voltados para as chamadas "meninas de rua". Em termos de instituições do Rio de Janeiro que se voltam para o atendimento de meninos e meninas que vivem nas ruas, o estudo de Valladares & Impelizieri (1991) caracterizou 36 organizações não-governamentais.

Neste conjunto identificamos uma instituição e um programa com atendimento específico para meninas, fazendo um recorte de gênero em suas programações. Junto a essas programações específicas localizamos uma instituição do Governo do Estado do Rio de Janeiro também com atividades voltadas para meninas que vivem nas ruas. Assim, integraram o nosso estudo a Casa das Meninas do Estácio, a Residência Feminina da Associação Beneficente São Martinho e o Programa Sempre Viva. Em cada uma dessas organizações levamos em conta três categorias de discurso, como já mencionamos: o discurso dos coordenadores, o dos educadores de rua e o das meninas que vivem ou viviam nas ruas.

Em geral, em cada uma dessas categorias procuramos ouvir dois depoimentos. Na terceira categoria de discurso, além das falas de meninas que se vinculavam a estes programas, procuramos ouvir mais 13 meninas que não eram atendidas por organizações que fazem recorte de gênero. Assim, em termos de conjunto de atores sociais, tivemos a oportunidade de registrar o depoimento de 4 coordenadores de organizações, 6 educadores de rua, 7 meninas vinculadas a programas específicos e 13 meninas que estavam fora dessas organizações, perfazendo um total de 30 depoimentos.

A Casa de Meninas do Estácio integrava o Projeto Casa das Meninas do Governo do Estado do Rio de Janeiro, criado em 1991. Originalmente, o projeto previa três núcleos de atendimento para meninas até 18 anos de idade.

No primeiro — núcleo central —, instalado no Estácio, que funcionava em regime de plantão aberto todos os dias, as meninas recebiam alimentação e podiam dormir. Na prática, este núcleo passou a funcionar como moradia para meninas. O segundo — núcleo de gestantes e atendimento — seria instalado no Catete, no sentido de proporcionar, no período de segunda a sexta-feira, atendimento às gestantes e às demais usuárias dos dois outros núcleos, com acompanhamento psicossocial e jurídico. Este núcleo não foi instalado no Catete, devido às pressões locais, e sua construção ocorreu na Praça XI. No entanto, não chegou a ser inaugurado. Já o terceiro — núcleo de recreação, lazer e atividades diversificadas — funcionava no Flamengo, das 8 às 18 horas.

Quando iniciamos o trabalho de campo na Casa das Meninas do Estácio, em dezembro de 1993, o atendimento estava em decadência. No dia 21 de janeiro de 1994, o Jornal do Brasil noticiava o fechamento da Casa, pela Fundação Estadual de Educação do Menor (FEEM).

A Residência Feminina da Associação São Martinho, uma organização não-governamental, foi fundada em agosto de 1993, no sentido de desenvolver ações especificamente voltadas para meninas que já eram atendidas pelo Centro Educativo da Rua Riachuelo, da referida Associação. A criação desta casa foi motivada pelo fato de a Associação São Martinho, de natureza católica, entender que há especificidades na vida de menina de rua.

Situada em um imóvel doado pelo Governo Britânico, a instituição se localiza na Rua Francisco Moratório, número 36, em Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro. Dois pavimentos compõem a casa. No andar superior há dormitórios que servem de residência para 15 meninas. Já no andar térreo funciona o Centro Profissionalizante, com oficinas destinadas à formação profissional. Para o funcionamento deste centro, a instituição teve o suporte financeiro do Instituto C & A de Desenvolvimento Social, do Centro Brasileiro da Infância e Adolescência (CBIA) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O Programa Sempre Viva, criado em junho de 1989, recebe apoio institucional do Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social (IBISS), organização não-governamental sediada na Avenida Beira Mar, 406/710, no Centro do Rio. A relação do Sempre Viva com o IBISS se desenvolve a partir de princípios de autonomia.

Este programa, voltado para a especificidade das meninas, objetiva desenvolver uma proposta pedagógica, estabelecendo como eixo básico a questão da saúde, e realizar trabalhos que ajudem a fortalecer a solidariedade na luta pela sobrevivência e pelo direito à cidadania. Sua atuação básica se realiza através de contatos estabelecidos na rua com meninas.

No sentido de situar as meninas enquanto atores sociais estudados, recorremos à pesquisa realizada pelo Claves (1991) no Rio de Janeiro. Segundo esta pesquisa, os meninos e meninas que vivem e/ou trabalham nas ruas do Rio integram um segmento da população que vive em condições de pobreza, chegando, em muitos casos, à miséria. No Estado do Rio de Janeiro, com base nos dados da década de 80 do IBGE, a investigação citada observa que 43,7% de crianças e adolescentes do estado vivem em famílias com renda per capita de até 1/2 salário mínimo.

A maioria das 20 famílias entrevistadas neste estudo é chefiada por mulheres com rendimentos mensais de até um salário mínimo, trabalhando como domésticas ou faxineiras, ou fazendo biscates nas ruas (vendedoras de doces e catadoras de papelão). Essas famílias, em geral, têm 4,5 filhos e, em sua maioria, são compostas por pessoas de cor negra ou por descendentes de negros. Algumas delas têm história de migração antiga, enquanto outras são do interior ou da própria capital do estado.

Neste estudo, as famílias se configuraram em três categorias: aquelas que moram nas ruas; as de crianças que trabalham nas ruas e mantêm os laços familiares; e as que têm crianças nas ruas que romperam ou estavam em rompimento com os laços familiares.

A partir do confronto com outras pesquisas, o Claves verificou que existia uma ressonância de seus dados em outras investigações. A conclusão da pesquisa em questão, com base em seus dados e na literatura especializada, em termos de características de crianças e adolescentes de rua do Rio de Janeiro, destaca que: "são em sua maioria negros, predominantemente do sexo masculino, com baixa ou nenhuma escolaridade, e utilizam a rua como local de trabalho. Suas famílias, em geral, são numerosas e freqüentemente chefiadas por mulheres. Vivem em condições de extrema pobreza e são atingidas pela violência" (Claves, 1991: 33).

Neste cenário sabemos que há bem menos meninas do que meninos. No Rio, segundo o Claves (1991), com base em vários estudos, o predomínio do sexo masculino fica em torno de 85%. Do ponto de vista apenas quantitativo, talvez o estudo com meninas não assumisse um grau significativo de relevância. No entanto, em termos qualitativos, sabemos que a vida nas ruas apresenta diferenças, se for levada em consideração a ótica de gênero. Com base neste pressuposto, defendemos a análise da especificidade da menina que vive nas ruas.

As meninas que integram o presente estudo, quando foram entrevistadas, tinham, em média, 15,8 anos de idade. Em geral são negras e a maioria nasceu na cidade do Rio de Janeiro, não havendo nenhuma menina oriunda de outro estado, o que confirma o estudo do Claves (1991).

Mais da metade das meninas, à época do trabalho de campo, tinha um filho pequeno ou estava grávida. Muitas delas criavam seus filhos sozinhas. A primeira experiência de relacionamento sexual dessas meninas foi por volta dos 15 anos de idade.

Em geral, o nível de escolaridade delas era baixo, sendo que algumas mal sabiam ler. Entre elas havia uma incidência de casos de internamento em diferentes instituições. Quase todas participavam de algum tipo de atendimento institucional, realizado principalmente por organizações não-governamentais, sendo que, de um total de 20, apenas 7 participavam de programas específicos para meninas.

 

A HISTÓRIA DE VIDA NAS RUAS

Em primeiro lugar, ressaltamos que a idéia de tempo presente na fala das meninas em geral não se configura de forma precisa. Os depoimentos não apresentam fatos perfilados numa cronologia linear. Os marcos de construção da história do período em que a menina vive ou viveu nas ruas não aparecem dispostos em sucessão. Há fatos contemporâneos que iniciam a história e introduzem fatos do passado. Há lacunas na história contada. Assim, o marco da história de cada uma se volta mais para fatos significativos do que para a cronologia.

No sentido de melhor exemplificar nossas observações sobre o tempo impreciso, podemos mencionar os seguintes trechos de falas:

— "Fiz 14 ano que vem, este ano vou fazer 15". (L.)

— "Minha mãe morreu (...) Acho que eu nem era nascida...". (M., 13 anos)

— "Olha só, incrível! No dia em que eu fui estuprada eu fiquei menstruada e peguei um filho. Minha menstruação veio de manhã (...) Mas eu não tinha ficado, não. Era a primeira vez. Aí, de noite eles me agarraram e peguei logo um filho". (Cl.)

Será que na primeira fala ocorreu apenas um engano ou será que fazer 14 anos é um fato mais presente do que fazer 15? Esta dúvida pode surgir na leitura desses trechos. Já na segunda fala, o sentido que pode estar sendo dado é que foi um fato que ocorreu há muito tempo. A terceira fala parece seguir outra lógica, uma vez que os fatos mencionados certamente não ocorreram de forma simultânea. O agrupamento desses eventos ocorre devido à relação que a menina faz entre eles. Os exemplos mostram que a imprecisão na idéia de tempo não pode ser vista apenas através de uma leitura baseada no pressuposto de que há uma deficiência por parte das meninas em construir a linha de tempo de suas vidas. A leitura deve contemplar, entre outros aspectos, a ótica do uso pessoal do marco da história, com significados próprios.

Outro aspecto observado por nós diz respeito à ligação entre tempo e espaço. Há depoimentos que apontam para o fato de a trajetória do tempo só ser completa na medida em que se muda de espaço. Há meninas que andam muito de um espaço para outro. Para elas, o marco da história é muito mais a mudança de espaço do que a mudança de fatos. Mudar de espaço, em si, se constitui na mudança de fato. Na história de M. e seu irmão, por exemplo, há menções sobre constantes idas e vindas que cobrem vários lugares (Petrópolis, Duque de Caxias, diferentes pontos do Rio de Janeiro e Três Rios). Em cada um dos lugares, M. mapeia seu tempo e o acontecer se configura a partir do deslocamento de um espaço para outro ("nós só andava, andava, não parava nem pra ver nada ... Ia direto").

Na trajetória de vida nas ruas de algumas meninas, a solidão é um aspecto fortemente presente. Ao contrário do que comumente se pensa, isto é, que as crianças de rua vivem em "bandos", há casos que se menciona, quando muito, um parceiro de rua. Assim dizem as meninas:

— "Eu nunca conheci ninguém. Eu e meu irmão não conhecia ninguém. Andava na rua só eu e ele". (M.)

— "Eu não andava com ninguém, não, o que é melhor a gente andar sozinha do que acompanhada. Acompanhada na rua é muito ruim". (Fe.)

Associado à solidão, em algumas histórias, aparece o sentimento de abandono:

— "Minha mãe me deixou. Não conheço ninguém da minha família". (J.)

— "E lá mesmo me deixaram (no Hospital Souza Aguiar). Minha mãe me deixou. Não conheço ninguém da minha família. Sou sozinha no mundo até hoje. Não conheço ninguém. Nunca conheci". (R.)

A reprodução do modelo familiar no cotidiano da rua é outro aspecto que podemos ressaltar. Sobre isso afirma R.: "Na rua, a gente formava uma família (...) Que nem família assim normal. Aí tem uma que até me chama de vó, tenho filha pra caramba, neto".

Nas histórias de vida das meninas há constantes referências a instituições em que elas estiveram internadas. Em geral, elas fugiam para rua e eram encaminhadas para outra instituição. A exemplo, destacamos na fala de Re. a recorrência do comportamento de fuga. Diz ela: "Aí eu voltava pro colégio interno. Mas sempre fugindo. Voltando e fugindo, voltando e fugindo, voltando e fugindo".

Há depoimentos positivos sobre algumas instituições. Neste sentido destacamos os seguintes:

— "Eu gostava muito desse colégio (interno), um colégio ótimo". (R.)

— "Alguns colégios internos era bom." (Re.)

Porém, as narrativas das meninas, de modo geral, sobre essas instituições revelam fatos com sofrimentos físicos e psicológico. Relatam elas:

— "Aí eles me bateram, me arrastaram para dentro do quarto, eu desmaiei, eles me bateram." (F.)

— "Não tinha carinho de ninguém, apanhava no colégio interno". (C.)

— "Ficava lá dentro no sol quente, presa lá dentro daquele cubiculozinho pequenininho mesmo, vendo o sol quadrado". (Re.)

— "Antigamente existia colégio e não era tanto assim como é agora. Agora nego vai num colégio e o que mais acontece é a pessoa espancando, é fazendo ruindade". (Lu.)

A escola é uma das principais instituições citadas pelas meninas que não estão vinculadas a instituições com programas específicos. Já as meninas que participam de uma instituição, talvez por já terem uma referência de grupo formal, não citam tanto instituições como referência de suas histórias.

Apesar de algumas vezes ser percebida como espaço de liberdade, a rua é vista como um lugar perigoso por muitas meninas. Assim afirmam elas:

— "A vida de todo mundo de rua é triste". (C.)

— "A gente está dormindo no calçadão, eles chegam, os exterminadores. Exterminadores são os PMs, não são os bandidos, entendeu?" (F.)

— "Parei de dormir na rua depois que morreu um irmão nosso de rua. Morreu de tiro, dormindo, ali na Constante (na rua Benjamim Constant). A gente parou de dormir na rua." (R.)

— "O maior perigo na rua é a polícia". (C.)

— "Eu acho que na rua é muito ruim. Acontece um monte de coisa, gente roubando, gente matando, outras sendo estupradas". (M.)

A história de vida nas ruas, em termos de idade, tem diferentes começos. Há meninas que estão na rua desde pequenas e há outras que foram para a rua aos 9, 11 e 14 anos de idade.

A ida para a rua tem, em suas falas, diferentes causas. Há situações em que as meninas fogem da violência e há casos de meninas que buscam aventuras. Por detrás dessas causas, em geral, se encontram presentes as condições de pobreza.

Ainda sobre a violência, percebemos a sua presença como uma marca comum nas histórias de vida nas ruas. As meninas ficam expostas a diferentes tipos de violência, sendo a de natureza sexual uma delas. Esta temática se encontra mais trabalhada na parte que se segue.

 

A VIOLÊNCIA NA FALA DAS MENINAS

A divisão das meninas em dois grupos, realizada por nós, teve como referência duas situações: participação ou não-participação em programas específicos para meninas. Este critério não pode ser visto como excludente, ou seja, não-significa que as meninas que atualmente não estão envolvidas em programas com recorte de gênero não tenham nenhum envolvimento com instituições em geral. Assim, melhor clarificando a proposta de análise deste trabalho, o que balizou o critério de divisão e escolha de grupos foi o viés de gênero.

Nos dois grupos de meninas observamos relatos de violência relacionados a diferentes espaços: no âmbito familiar, nas instituições em que foram internadas e na própria rua. Em relação ao primeiro grupo de meninas, ressaltamos o relato de violência doméstica como causa da ida para as ruas: "(o padrasto) ele queria me bater, minha mãe não deixava (...) Nessas brigas todas eu saí de casa". Já outra menina, muito resistente à aproximação das entrevistadoras, relata sua experiência de violência familiar quando não conseguia vender chiclete na rua: "Ela (sua mãe) botava de castigo, às vezes dava uma surra".

Quanto à violência familiar referida na fala das meninas do segundo grupo, transcrevemos as que consideramos mais relevantes no estudo:

— "Eu levei um soco na cara, meu marido me deu um soco na cara (...) Minha mãe me bateu também, quando eu estava de barriga (...) Eu estava com 5 meses." (Ca.)

— "(Quis sair de casa porque) minha mãe queria me bater às vezes. Quando eu tinha mãe, né? Aí eu ia embora pra rua." (Sh.)

— "Com 7 anos, eu fui morar com meu pai. Meu pai tinha uma mulher que me batia muito. (...) Meu pai tinha tudo pra me dar (...) Meu pai tinha tudo mesmo. Eu só não fiquei com ele porque a minha madrasta me batia muito." (M.)

— "Meu pai me batia. Aí eu e meu irmão fugimos." (Mi.)

O depoimento das violências que sofreram quando institucionalizadas aparece nas falas das meninas do primeiro grupo. Destacamos um relato deste tipo de violência sofrido e revidado, embora a autora sofresse punições com este comportamento. Diz ela: "Eu apanhava, mas eu agredia eles. (...) Avançava em cima deles também. Eles me botavam presa no cubículo, eu ficava presa lá por tempo indeterminado, sem ter dia nem hora certa pra sair. Ficava lá um tempão, mofando". Ela parece reviver este comportamento em sua estadia nas ruas, presenciando brigas corporais violentas. Relata: "Algumas são (violentas) tia. A briga delas é só querer cortar a cara dos outros. Algumas já brigam na moral com as outras, a outra já pega gargalo, faca, querendo cortar a cara".

Há um fato que merece ser ressaltado pelo que achamos que seja uma contradição: várias meninas relatam violências sofridas em instituições que teriam o objetivo de protegê-las, entre outras coisas, da violência. Outra situação que evidencia o desrespeito aos direitos das meninas são os constantes depoimentos de agressão física contra meninas grávidas.

Os relatos de violências ocorridas no espaço da rua são inúmeros, e entre eles destacamos os seguintes:

— "Alguns (policiais) gostam de pegar dinheiro da gente. Pede dinheiro, bate, para poder liberar a gente". (Sh.)

— "Muitas pessoas maldosas queimam os pés das pessoas, outros tacam pedra (...) Muitas pessoas maldosas que tem na rua. Uns cortam a cara das mulheres dormindo (...) A gente dá mole, corta mesmo". (Al.)

— "A gente está dormindo no calçadão, eles chegam, os exterminadores. Exterminador são os PMs, não são os bandidos, entendeu?".

— "Quando eu estava de barriga da minha filha, fui espancada na Saenz Pena, de madrugada. Fiquei escondida, porque os policiais queriam me matar... Fui fazer denúncia na UERJ (...) Não adiantou nada."

Com base nesses depoimentos, observamos a existência de situações em que os responsáveis pelos atos violentos são os transeuntes, que as vêem com indiferença ou, até, que as agridem verbal e fisicamente. Algumas delas referem-se a momentos onde suas denúncias de maus-tratos sofridos não mereceram credibilidade por parte das autoridades competentes. Esses depoimentos revelam também situações violentas em que os responsáveis pelos atos violentos são os próprios agentes sociais, destacando-se entre eles a figura do policial. Assim, as falas apontam para o fato de o espaço da rua ser um local onde ocorrem inúmeros perigos à vida.

Na fala das meninas, observamos também depoimentos de violência que ultrapassam os espaços, ocorrendo em diferentes lugares e em diferentes níveis. Os conteúdos destes depoimentos se referem principalmente à violência sexual e à violência estrutural. No que se refere à violência sexual, os relatos mais comuns apontam para a existência de abuso sexual no âmbito familiar, tendo como agressor o pai, o padrasto ou, ainda, uma pessoa conhecida qualquer; no espaço da rua, os agressores são os policiais e companheiros de vida nas ruas. Podemos melhor observar este tipo de violência no relato das meninas quando uma delas conta o estupro de que foi vítima a sua mãe e quando outra afirma precisar ter sono leve para se proteger dos "garotos rasgando a blusa das garotas com gilete para poder comer as garotas à força".

Ainda dentro da violência sexual destacamos os seguintes depoimentos:

— "Conheço. Filha de cachaceiro. O próprio padrasto estuprou. Na rua mesmo". Ressaltando sua força ao lutar contra esta forma de abuso sexual, ela diz: "(eu) não vou deixar um homem me pegar à força pra eu sair com ele. Não vou deixar um homem abusar de mim."

— "Com 15 anos, fui estuprada à força, fui agarrada." (Cl.)

— "Eu conheço uma menina que foi quatro homens fazer barbaridade com ela. Foi o Meinho, o falecido Dandinho, e foi o Claudinho, foi um monte de garoto, tudo comendo uma garota só. Fizeram tudo com ela. Botaram na boca dela, fizeram ela fazer um monte de coisa." (An.)

— "Na rua só encontra essas coisas assim. A gente, quando não tem lugar para dormir, um homem oferece pra ela, se for dormir na casa dele, tem de fazer sexo. Se não fazer sexo, eles te botam pra fora." (An.)

Uma dimensão mais ampla da violência denominada estrutural pode também ser encontrada na fala de uma menina, através de uma leitura mais atenta, quando diz: "Todo mundo fica dizendo para gente trabalhar (...) Vai trabalhar vagabunda (...) Mas, cadê? Serviço ninguém dá" (L.). Outra menina fala: "A gente brinca, mas na hora que põe a cabeça pra raciocinar um pouco, pensar na vida, do que a gente queria ter (...) A gente vê uma pessoa dormindo num prédio (...) Pô, eu podia ser rico. Porque eles têm, a gente não tem?".

Exemplificando mais este nível de violência, destacamos ainda a seguinte fala: "Ganha um, ganha outro, governador ou prefeito, ou quem for. Mas o que acontece? O país não muda, está sempre a mesma coisa, esta sempre a mesma droga" (Lu.).

Assim, a percepção da violência estrutural, decorrente de um sistema social desigual e injusto, encontra-se presente na fala dos dois grupos de meninas. Os relatos remetem, em geral, às desigualdades de oportunidades presentes em nossa sociedade, fazendo com que poucos tenham muito e muitos tenham pouco para sobreviver. A desigualdade entre gêneros e etnia — dimensão da violência estrutural — também está presente em alguns depoimentos, principalmente nos do segundo grupo de meninas.

Dentro deste quadro de opressões observamos características específicas do processo saúdedoença ligado à sexualidade. Os relatos dos dois grupos de meninas apresentam, neste campo, mais semelhanças do que diferenças entre si.

Apesar de sentirem na pele adversidades, produzidas por um sistema social desigual e injusto, as meninas, em geral, aceitam a gravidez, precoce ou não, como algo natural. Associada a esta questão, a maternidade aparece, às vezes, como sinônimo de cuidar de alguém e proporcionar a este alguém algo que não tiveram.

A questão do aborto é polêmica nos dois grupos de meninas. Há meninas que rejeitam tal prática, afirmando:

— "(...) Eu acho que ninguém tem o direito de tirar a vida de ninguém." (M.)

— "(...) Tirar a vida de uma criança que não tem nada a ver não acho legal". (Al.)

Já outras meninas aceitam a prática do aborto, com os seguintes argumentos:

— "É melhor tirar do que botar no mundo, não ter condição de criar." (Si.)

— "Ninguém pode recriminar (...) Quando uma mãe escolhe tirar um filho é porque ela sabe das condições de criar". (Sh.)

Encontramos, nos dois grupos de meninas, casos de gestação e maternidade precoces, e bem como relatos de aborto.

No que tange a conhecimentos sobre DST/ AIDS, parece estar mais evidente nas falas do primeiro grupo de meninas o acúmulo de informações básicas a respeito do assunto. No entanto, mesmo neste grupo parece que as informações não são suficientemente elaboradas para nortear condutas de sexo seguro. No segundo grupo, as meninas afirmam que sabem sobre o assunto, dando mais ênfase à questão da AIDS do que à DST. Embora elas afirmem ter esta noção, ao descreverem suas práticas aparecem desencontros e contradições de informações. Nos dois grupos, as informações sobre DST/AIDS aparentemente não garantem a prevenção.

As falas das meninas dos dois grupos, ao mencionarem situações do seu cotidiano relacionadas a formas de encaminhar questões sobre o processo saúde-doença relacionado à sexualidade, revelam a presença do que denominamos crenças populares. Entendemos por crenças populares expressões que se referem, segundo o nosso ponto de vista, a noções típicas do senso comum. Em outras palavras, as vemos como "soluções" apresentadas pelas meninas para situações relacionadas ao aborto, anticoncepção, menstruação e DST.

Em relação ao aborto, por exemplo, encontramos referências ao uso de chá de maconha, chá de buchinha do Norte, chá de AAS com coca-cola, chá de jornal e engolir feijão cru como abortivos eficazes. Há outras menções relacionadas à transmissão de doenças ligadas à sexualidade que se reportam a uma explicação exterior à relação sexual em si. Assim, há um depoimento que atribui o pegar uma doença ao fato de ter ficado com o pé no chão após a relação sexual. Outro depoimento se refere à possibilidade de contagiar o homem caso mantenha relações sexuais durante a menstruação, conotando esta como a saída de coisas ruins de dentro do corpo.

Face a estes aspectos do processo saúde-doença, sabemos que o atendimento por parte do serviço público, no mínimo, não consegue dar conta da demanda. As meninas que vivem nas ruas fazem parte de um grande segmento da sociedade que se encontra praticamente no estado de exclusão social, em conseqüência da violência estrutural. Neste contexto, o acesso ao atendimento, no campo da saúde em geral, fica inviabilizado.

Apesar desta realidade, nos dois grupos de meninas, em alguns depoimentos, há falas sobre a facilidade de acesso ao serviço de saúde, consideradas por nós de certa forma ingênuas. Dentro dessas falas há menções das meninas, tanto para si mesmas como para um parceiro eventualmente doente, de facilidades de atendimentos para exames preventivos freqüentes e abertura da possibilidade de levar o parceiro a ser examinado, na rede pública de atendimento, até antes de manter uma relação sexual com ele.

Neste artigo, na medida em que recortamos a fala das meninas sobre a violência, não registramos os depoimentos dos coordenadores e dos educadores dos programas sobre a temática em questão. Entretanto, julgamos oportuno tecer considerações relevantes sobre o confronto entre as falas dos diferentes atores sociais estudados na investigação.

Neste confronto observamos que, nas três categorias de discurso, encontra-se presente a história da violência vivida pela população de rua. Apesar de não constarem, nos roteiros das entrevistas, perguntas específicas sobre a violência, tanto as meninas como aqueles que com elas trabalham narram várias situações violentas vividas pelas meninas.

Os depoimentos, nas três categorias de atores sociais estudadas, em geral revelam uma visão da violência que ultrapassa a sua dimensão física. A dimensão social, que serve de quadro para os atos violentos que ocorrem no âmbito das relações entre os indivíduos, está explícita em alguns depoimentos e implícita em outros.

Em geral, nas três categorias de discurso, o tipo de violência mais comum é de caráter sexual. No entanto, no discurso das meninas há poucos depoimentos que revelem consciência da opressão que a mulher sofre nas relações de gênero.

 

CONCLUSÃO

A violência contra as meninas que vivem nas ruas, de modo geral, revela que os atos violentos ligados à sexualidade são vistos mais nitidamente num primeiro plano, tanto pelas meninas como por aqueles que analisam as suas falas. No entanto, se aprofundarmos mais a análise, perceberemos que, por detrás deste plano, encontra-se também uma faceta da violência estrutural, uma vez que a desigualdade entre os gêneros e as faixas etárias é também um dos reflexos de um sistema injusto.

A violência sexual assume um grau significativo no conjunto dos atos violentos cometidos contra a mulher. Neste estudo não medimos a sua extensão, uma vez que a nossa investigação é de caráter qualitativo. Mas há estudos quantitativos que indicam a sua relevância através de proporções significativas. Em termos nacionais, como observa Saffioti (1993), não há dados globais sobre violência sexual. As análises que existem baseiam-se em estudos com universos empíricos restritos.

A título de situar a extensão da violência sexual, citamos dados de Recife e São Paulo. Em Recife, no período de 1987 a 1989, dos 3.667 registros de crimes contra crianças e adolescentes do sexo feminino, 37% se relacionavam à posse sexual mediante fraude e sedução, e 13% foram casos de estupros (CBCA, 1991). Em São Paulo, em 1991, entre os 346 crimes contra crianças e adolescentes, havia 19,9% de estupros e 17,5% de atentado violento ao pudor, sendo que, no conjunto dos casos, só três vítimas eram do sexo masculino (Saffioti, 1993).

Na análise de Goldenberg et al. (1989) podemos perceber que a violência contra a mulher, na sociedade brasileira, estrutura-se a partir da organização hierárquica das relações de gênero, potencializada por ações violentas, apontando para o papel secundário das mulheres no imaginário social.

A partir dos dados da pesquisa e com base nas análises desses autores citados, podemos observar que a menina que vive nas ruas sofre múltiplas opressões dentro deste sistema social desigual. Por ser mulher, tem muitos de seus direitos negados; por não ser ainda adulta, tem seus direitos minimizados; e por viver nas ruas, encontra-se no limite da exclusão social. Junto a esses tipos de opressão, por serem em sua maioria negras, elas também sofrem uma "forte discriminação e violência social, da qual a raça negra brasileira é tradicionalmente vítima" (Prado & Gomes, 1993: 99-100).

Dentro deste quadro, logo podemos perceber inúmeros agravos à saúde. Do ponto de vista da sexualidade ameaçada, por exemplo, observamos, nos relatos, entre outros aspectos, a gestação precoce indesejada, os abortos e as doenças sexualmente transmissíveis com comprometimentos da saúde da menina que vive nas ruas.

No sentido de ampliar mais esta discussão, observamos que o fato de viver nas ruas já implica negação de condições mínimas que assegurem uma qualidade de vida adequada. Por outro lado, além de comprometer a vida, o viver nas ruas pode ter como conseqüência o pior: a morte. Assim, o sistema estruturalmente violento, além de não permitir o acesso de pessoas aos padrões adequados à vida, decreta a morte dessas pessoas previamente excluídas.

Concluímos, ainda, que as marcas decorrentes dessas situações aparecem, nos relatos, como agravos no campo da saúde mental, evidenciados por profundos comprometimentos emocionais, inseguranças, medo e baixa autoestima, que podem se caracterizar como comportamentos paralisantes num processo de recuperação da cidadania das meninas.

A partir do quadro de violência que compromete a saúde das meninas contempladas por esta pesquisa, a título de sugerir novas discussões sobre a temática em questão, propomos que haja uma maior sensibilização face ao problema em todos os níveis do setor saúde. Dentro deste raciocínio, ressaltamos a necessidade de se desenvolverem alternativas para o atendimento de populações com agravos à saúde em decorrência das situações de violência em que vivem. Por outro lado, observamos que as ações no campo da Saúde Pública, antes de tudo, devem se articular a outros setores para que, dentro de uma perspectiva interdisciplinar, possam dar conta desta complexa realidade.

 

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