O AUTOR RESPONDE / THE AUTHOR REPLY

 

Djalma A. de Melo-Filho
Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. Rua dos Coelhos, 450, Antigo Hospital Pedro II, 1º andar, Recife, PE, 50070-550, Brasil.

1. As reflexões do professor José Ricardo de C. M. Ayres nos impelem a destacar, devido à exigüidade de espaço, pelo menos uma delas: na busca pelo Verdadeiro e pelo Bem, como conciliar a permanência e a efemeridade da própria existência humana? Weber diz que o homem consegue o possível porque busca o impossível. Caminharemos nesse sentido. Se, ao criticarmos o “escândalo da filosofia” (o positivismo), propomos a união da ciência com o “deve-ser”, não estaríamos nós, após rejeitar pela enésima vez as facilidades do relativismo pós-moderno, desejando, agora, uma ética do “é”? O “mundo das idéias” de Platão ou o “Eu sou a verdade” de Cristo são exemplos de solução anistórica para o problema. A tentativa do marxismo de historicizar o ponto de apoio, através da “missão” do proletariado mostrou-se, empírica e filosoficamente, problemática: a referida classe resolveu desobedecer as “leis” da história, não vindo a romper com o particular. “E agora, José?” Como ser permanente sem ser eterno (anistórico)? Como ser efêmero sem ser relativista? Fiel à tradição da filosofia antiga, Heller em sua teoria sobre o valor verdadeiro propõe a criação de um silogismo cuja premissa maior, composta pelos ideais de valor (liberdade, felicidade, personalidade, vida humana, humanidade e igualdade), é histórica e universalmente válida, ou melhor, tornou-se universal na história porque assim houve condições e, de igual modo, porque desejaram os homens. Portanto, diz Heller (1983), “se um valor é relacionado com um ideal de valor a revela-se entre os dois uma contradição, o valor [em questão] não é verdadeiro”. Sendo assim, a saúde seria também um valor verdadeiro. Cabe ainda ressaltar que esses ideais apesar de serem válidos por mais algumas décadas, ou mesmo séculos, isso não nos autoriza a eternizá-los como no desejo de Utnapishtim, embora o professor José Ricardo não nos tenha revelado se o sábio babilônico consseguiu o seu intento. Finalizando esta reflexão, cabe sublinhar que “estamos confinados a uma Conjuntividade junto com os mortais com quem compartilhamos nossa vida. Com efeito, o poço de nosso passado é muito profundo a vastíssima é nossa responsabilidade. Temos, contudo uma única vida. Assim sendo, não tenha pressa Capitão Para-Frente! Qualquer pressa só apressa nossa morte. (...) Godot não virá, mas nós certamente partiremos. (...) Se podemos víver uma vida digna – por que não tentar?” (Heller, 1993: 395).

2. Em relação à contribuição da professora Maria Cecilia de Souza Minayo, gostaríamos de destacar a sua interessante compreensão da “barreira cerácea”: os marinheiros de Ulisses não poderiam se comunicar! O que seria discutido na “comunidade ideal de comunicação” de Apel se acreditamos que os paradigmas são incomensuráveis? se concebemos os valores como sendo deduzidos dos interesses? se compreendemos o socialismo como a ausência de contlitos? se tomamos como equivalentes a dóxa e a epistéme? Talvez seja necessário repensar os referidos marcos, como deseja Minayo, antes que o capitalismo torne os homers “iguais”, pois, segundo Heller, a utopia de uma sociedade inteiramente autogovernada carrega consigo o dever de propiciar o pluralismo das formas de vida, pois os “seres humanos só podem ser socialmente iguais se forem desiguais em gostos, inclinações, desejos, talentos e interesses”. Para haver comunicação, é necessário que os homens partam do princípio que é possível convencerem e serem convencidos sobre uma determinada questão dentro de uma discussão racional: os valores não são irracionais, existem, como foi visto no comentário à contribuição do professor José Ricardo, assim como o conhecimento, valores verdadeiros. A liberdade, mesmo sendo o sumo-bem da filosofia burguesa, ao ser universalizada, não é mais um valor de uma classe particular, mas sim de toda humanidade. Outro marco a ser abandonado é a banalidade pós-moderna que não se esforça em diferenciar, como desejava a filosofia antiga, a dóxa da epistéme onde estariam unidos o Verdadeiro, o Bem e o Belo. Se não há diferença, o que discutir, então? A atomização da particularidade quando universalizada, possibilita que surjam, enquanto sinédoques, um anti-Ulisses e um anti-Fausto: neste caso, seria o homem-particular, e não as sereias, que “negaria” o indivíduo.

3. As instigantes observações feitas pelo professor Luiz Fernando D. Duarte nos impelem ao exercício, previsto na “situação de fala ideal”, da discordância. Inicialmente, nos moldes de uma certa tradição tão comum às “esquerdas”, a argumentação visa a “diagnosticar” nossa filiação: marxista-metafísica? idealista? adepto do “evolucionismo culturalizante”, síntese do “universalismo triunfalista do ‘liberalismo’ com o ‘romantismo’”? Felizmente, essa tradição está sendo abandonada, pois muitas vezes ratifica o “dogma” kuhniano da incomensurabilidade dos paradigmas, reafirmando, como diz Minayo, a nossa “incompetência de promover a isonomia das forças em oposição”. Como exemplos, Apel, Habermas e Heller contrapõem a racionalidade da “comunidade ideal de comunicação” à irracionalidade dos conflitos entre paradigmas. Passemos, pois, a refletir sobre as críticas. Se o nosso texto discute filosofia a história, acreditamos que ele não trata, pelo menos nos moldes tradicionais, de filosofia da história, pois faltam-lhe os pressupostos essenciais que a caracterizam. Em nenhum momento, defendemos uma teoria da evolução universal, uma teleologia histórica ou mesmo a existência de “leis” necessárias e independentes da vontade humana que impeliriam a transformação de Ulisses em Fausto. Falamos de possibilidade: um fato histórico pode ocorrer se houver condições para que ele ocorra, mas também se decidirem que ele possa ocorrer. Aí talvez resida nossa ruptura com os cânones da filosofia marxista da história. Não obstante, esse abandono não deve ser pretexto para a defesa de um relativismo culturalizante como propõe a primeira crítica. Existem valores que foram universalizados na história e relativizaram o argumento da “especificidade dos sonhos de cada cultura”. A segunda crítica nos remete para um estado intermediário (segundo) sob a vigência da “lei” comtiana. Ela encontra-se tão distante do que diz o texto original que deve ser revista à luz das citações de Markus, que fogem do liberalismo e do estruturalismo, sobre a história. Os marxismos benjaminiano e blochiano também já foram considerados metafísicos. O rótulo de metafísico, ou melhor, de idealista não impediu Heller de fundar sua ética sobre a união de Kant com Marx. Em relação a última crítica, gostaríamos de dizer a “complexa negociação social” que permitiu a elaboração do referido Relatório em nada relativiza a hipótese central de nosso trabalho. Poderíamos, talvez, reescrevê-la da seguinte maneira: o Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde, apesar de..., visou ao homem-particular e não ao indivíduo.

4. Consideramos muito oportuno o registro da professora Maria Helena Machado sobre uma das (muitas) lacunas de nosso texto: a questão do individualismo na sociedade moderna. Se é verdade que a emergência da sociedade burguesa criou condições para a emergência da individualidade; é também verdade que criou consideráveis obstáculos, inclusive a crença de que a satisfação dos interesses privados seria o motor para o progresso. Esse recuo para o espaço privado é característico da modernidade. Buscando a “segurança”, o indivíduo, assinala Heller, experimenta o desespero, a solidão e a infelicidade. É necessário resgatar duplamente a idéia de progresso, não como uma “necessidade histórica”, mas como um valor, e a dimensão pública do espaço. Em princípio, se aderirmos às filosofias de Heidegger a Nietzsche, identificadas com o “retrocesso histórico”, mas como fizeram os estruturalistas franceses, também não nos libertaremos do messianismo das filosofias marxista e hegeliana da história, adeptas de um “progresso universal”. No primeiro caso, chegaríamos ao Inferno e no segundo, ao Paraíso. Concordando com Collingwood e Heller, partimos de uma posição que nega ambas as saídas: a análise de cada situação permitirá avaliar se há progresso, entendido por “ganhos sem perdas correspondentes”, ou retrocesso, compreendido por “perdas sem ganhos correspondentes”. Tornando ético o pensamento de Marx, que assevera que transformando o mundo, os homens se transformam a si mesmos, Heller diz que “não podemos transformar o mundo se, ao mesmo tempo, não nos transformarmos nós mesmos”. Tanto o socialismo como a “utopia sanitária” devem ser compreendidos enquanto valores e como tais a sua racionalidade independe da realização do fim. Essa posição compartilha de uma ética estóico-epicurista, reafirmada por Heller, que empreende “ações racionais de valor sem importar-se com o sucesso ou o fracasso delas. A derrota é sofrida e o sucesso é gozado, mas em ambos os casos, no sofrimento ou na alegria, tem de prevalecer sempre a mesma coragem e decisão”.

5. Em relação aos comentários dos professores Nísia Trindade Lima e Marcos Chor Maio, queremos destacar três aspectos que nos parecem importantes. O primeiro refere-se à contribuição de Simmel sobre o indivíduo, sem dúvida fundamental para o debate. Concordamos que a “elevação” do homem-particular à universali-dade, afirmando o valor “indivíduo”, é um processo relacional e interativo da “vida social e as demais individualidades em constituição”, pois esse valor somente se expressa em sociedade, ou, em termos utópico-racionais, em comunidade. Não se trata de resgatar, romanticamente, as comunidades naturais pré-burguesas nas quais os homens ao nascerem pertenciam a elas naturalmente; muito pelo contrário, no caso moderno é necessária, a fim de construí-las, uma tomada de decisão, de forma consciente, por parte do homem. Reconhecemos que essa face do problema foi desconsiderada no nosso texto. O segundo é sobre a “discrepância” entre teoria e análise, consideramos que o nosso objetivo, que também “salta aos olhos”, não visou à realização de uma hermenêutica do Relatório como um todo. A análise dos excertos, advindos da parte conceitual do referido documento, pareceu-nos contribuir para o não falseamento da hipótese. Ou, tam-bém seria bom indagar, o restante “desconsiderado” do Relatório ajudaria a refutá-la, ou pelo menos abandoná-la? A crítica também não respondeu essa questão. O terceiro aspecto refere-se a alguns elementos fundamentais da obra helleriana. Foi salientada a influência de Marx e Weber sobre Heller, todavia Lima & Maio esqueceram de assinalar que a ética helleriana é essencialmente kantiana, assim como a “soci-ologia formal” de Simmel. Ao contrário do que diz a crítica, pode-se constatar que a teoria helleriana dos valores, descrita em “A Filosofia Radical” e também presente em “Uma Teoria da História”, pretende “moldar a reflexão intelectual e, possivelmente, a prática social, a partir de um parâmetro edutivo-normativo”. A teoria proposta pela filósofa é histórica, pois os ideais de valor (liberdade, humanidade, vida humana, igualdade, personalidade a felicidade) foram universalizados na própria história. A liberdade, por exemplo, é um valor de origem fundamentalmente burguesa, todavia essa particularidade foi rompida e tornou-se universal. Heller rejeita a concepção que admite ser o valor deduzido dos “conflitos de interesses” ou mesmo das necessidades. Existem afinidades, mas não necessariamente identificação, pois, se caso houvesse, os valores não poderiam ser universalizados, possibilidade que foi mostrada pela história. A sua teoria não se “ancora” no proletariado para assegurar a sua verdade, pois os interesses de classe não vem rompendo, empiricamente, com a dimensão do particular o que seria necessário para garantir a referida verdade. A discussão filosófica sobre valores partiria de uma unidade “sem interesses” que seria a humanidade. Por fim, de modo irônico, a vida também encontra-se na premissa maior do argumento dedutivo, a partir do qual seria avaliada a verdade dos outros valores. Talvez, neste caso, Mefistófeles não tenha razão.

6. O professor Fermin Roland Schramm enriquece sobremodo o filosofar sobre a dialética Ulisses-Fausto, ou, em outras palavras, sobre a síntese das necessidades relativas à sobrevida e à qualidade de vida, quando propõe radicalizar o próprio conceito de necessidade. Acreditamos que ao pensar sobre a “lei da necessidade”, Schramm nos convida a buscar respostas para a seguinte indagação: é possível, do ponto de vista empírico e teórico, ratificar a dialética histórica sem a âncora da filosofia marxista da história, já que os pressupostos dessa última (teleologia, futuro deduzido do passado, determinismo das “leis históricas”, evolucionismo etc.) foram recusados no nosso texto? Deslocando a causa finalis da história para as ações humanas na própria história talvez possa ser um ponto de partida: os grupos identificados com as chamadas necessidades radicais poderiam “negar” uma situação histórica (porque decidiram fazer isto e não porque existe uma necessidade infra-histórica que os obrigaria a fazê-lo).

Se isto de certa forma restitui a autonomia das ações humanas, por outro lado não afasta a “revolta perante o espanto frente à lei da necessidade, conforme a ordem do tempo e da destruição...”.

O próprio Marx, ao refletir sobre a antinomia, identifica a pré-história com o reino da necessidade e a verdadeira história (comunismo) com o reino da liberdade. Segundo ele, a própria morte somente na aparência nega a unidade entre o gênero e o indivíduo. Para Heller a finitude humana, mesmo inexorável, já é marcadamente, por ser humana, diferente: “Só o homem é mortal, porque só ele sabe que um dia já não estará aqui”. Retornando à metáfora proposta por Schramm, poderemos imaginar um Deus espinosiano que, ao “expulsar” (libertar) o homem dos jardins do Éden, poderia ter parafraseado Drummond dizendo: -“ Vai”, Adão! “ser gauche na vida”.

Finalmente, queremos agradecer à Direção da Escola Nacional de Saúde Pública pela criação do Prêmio Joaquim Alberto Cardoso de Melo, estimulando, dessa forma, a reflexão sobre os problemas e os desafios contemporâneos da Saúde Pública, ao Editor dos Cadernos de Saúde Pública que permitiu que o debate se tornasse público e aos professores que contribuíram para o enriquecimento do debate. Dedicamos, ainda, nosso esforço intelectual à luta pela construção da Escola de Saúde Pública de Pernambuco.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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