Social Science & Medicine. Linda C. Garro & Cheryl Mattingly (Guest Editors), Special Issue, Narrative Representations of Illness and Healing, vol. 38, no. 6, pp. 771-862, Exeter: Elsevier Science Inc., 1994.

ISSN 0277-9536

 

Dentro da tendência geral da retomada da metodologia qualitativa, especialmente dirigida ao estudo das representações, a Revista Social Science & Medicine publicou este número especial dedicado ao estudo das narrativas em torno do processo da enfermidade e do tratamento. Na introdução à série de pesquisas, Cheryl Mattingly e Linda C. Garro apontam as características básicas da narrativa como um modo de pensar, diferenciando-a das formas abstratas e científicas, pois suas bases assentam-se nas singularidades da ação humana. Afirmam que a narrativa é usada para entender eventos concretos que necessitam relacionar o mundo interior do desejo e das motivações ao mundo exterior das ações e coisas observáveis. Seria a forma mais fundamental de entender a vida em seu fluxo temporal; evocar imagens sensoriais; entrelaçar cenas e símbolos mesmo quando contraditórios e, assim, oferecer explanações contraditórias da mesma estória. Lembram, servindo-se de Ricoeur, da relação narrativa/metáfora, principalmente porque oferece uma forma para contemplar o inefável, o abstrato, pelo caminho do concreto.

No total são apresentados oito trabalhos que tratam de experiências distintas. Linda C. Garro analisa, através de entrevistas semi-estruturadas, 32 indivíduos (27 homens e cinco mulheres), com idades entre 23 e 69 anos, que tinham problemas crônicos na articulação mandibular, conhecidos como ator, e que são tratados por odontólogos e não por médicos. Apesar da literatura existente, há pouco consenso sobre a etiologia, aspectos fisiológicos e tratamento da atm. Segundo a autora, os relatos são complexos e mostram a luta das pessoas ao experimentarem um problema que não se encontra suficientemente categorizado ou tratado dentro do contexto do sistema de atenção à saúde nos Estados Unidos. Os principais pontos destacados referem-se ao fato de que as pessoas apresentam extrema dificuldade em rotular de forma apropriada a sua doença e, até que isso ocorra, buscam um diagnóstico que se torna bastante conflitivo pelas interpretações que são dadas a sua doença, sendo que muitas vezes é sugerido que a sua base é psicológica e não física. Para a autora, as estórias são ricas para o exame dos conceitos sobre doença e a relação mente/corpo. Nesse sentido, a autora analisa que, ao reconstruírem suas narrativas, as pessoas situam ou contrastam sua estória individual dentro de contextos culturais mais amplos e de outros modelos que são compartilhados. Aponta que, no caso desta pesquisa, os indivíduos vêem suas experiências de doença como desvios do modelo geral que informa o que é doença; sendo doenças atípicas, são vistas dentro de modelos que contrastam doença do corpo/doença da mente; é sobre este modelo que reconstroem as suas experiências, atribuindo o problema mais ao mau funcionamento da mente do que do corpo, buscando modelos culturais que possam contextualizar a relação mente/corpo.

Holly F. Mathews, Donald R. Lannin e James P. Mitchell estudam 26 mulheres negras que ingressaram no serviço médico, na zona rural da Carolina do Norte, com câncer de seio em estado avançado (estádio 3 ou mais adiantado). Para muitas delas a doença não era conhecida e este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre as razões por que algumas mulheres demoram muito tempo para procurar tratamento médico. Todos os relatos começam com a discussão da origem dos sintomas e, de forma cronológica, contam sobre eventos ocorridos e que se tornaram relevantes em relação à doença. Há pouca consideração sobre as causas da doença, mas voltam-se para como rotulá-la e caracterizá-la, e, da mesma forma, poucos comentários sobre os papéis desempenhados por outras pessoas em relação à doença. Para 14 das mulheres, os sintomas relacionavam-se a uma concepção indígena da doença vinculada a um desequilíbrio no sangue. Outro grupo de pacientes associava a doença a concepções populares correntes entre os norte-americanos e, para um terceiro grupo, as concepções eram de caráter biomédico. Neste trabalho, um dos pontos destacados refere-se ao fato das entrevistadas adaptarem sua experiência pessoal a quadros de referências explicativos.

O trabalho de Paul Farmer procura traçar o desenvolvimento de um modelo cultural da AIDS – as representações – através da entrevista de 20 adultos em uma localidade rural do Haiti. Para o autor, entender o processo pelo qual se constrói a representação de uma nova doença exige articular a experiência individual e coletiva, a macro e a microexperiência. O autor relata a cronologia do conhecimento da AIDS nessa comunidade a partir de 1983 e ressalta que o processo de identificação passou por certas etapas: exposição à doença ou notícias sobre ela, particular atenção à doença e conseqüente maior carga de estresse, geração de estórias sobre a doença.

Ao iniciar o seu trabalho "The concept of therapeutic ‘emplotment’', Cheryl Mattingly assinala que contar estórias de nossas vidas é de fundamental importância no mundo da clínica. Continua afirmando que as narrativas desempenham um papel central no trabalho clínico, não somente como relato retrospectivo, mas como uma forma através da qual terapeutas e pacientes procuram ativamente impor-se sobre o tempo clínico. A questão básica deste trabalho é a noção de emplotment, e seu emprego em uma situação terapêutica. Emplotment envolve elaborar uma configuração temporal, criando um todo fora de uma simples sucessão de eventos, ou seja, criando estórias; numa tradução não literal – criando enredos. A autora ilustra a situação, relatando como uma terapeuta ocupacional trabalha para organizar uma série de ações, dando-lhe um significado de totalidade, ou seja, que o tratamento não é visto como uma mera seqüência de eventos, mas como sendo estruturado narrativamente. O tempo da estória é o tempo humano e não o tempo físico e o tempo que se estrutura nessas relações é o tempo das realizações sociais. Conclui, também, que a construção deste processo terapêutico deriva das situações concretas e a análise da narrativa oferece um caminho para examinar o trabalho clínico como uma série de "negociações existenciais entre clínicos e pacientes", importante para que se retome "o significado de uma vida que deve ser refeita em face de uma doença grave".

Outro interessante trabalho desta publicação é de autoria de Jean E. Jackson e discute uma forma especial de entrevista na qual o entrevistado-narrador assume diferentes "personas" durante a entrevista. É o que a autora denomina "abordagem Rashomon", parafraseando o título do filme de Kurosawa, de 1950, quando quatro testemunhas descrevem um estupro de formas diferentes. Neste trabalho, a abordagem é utilizada para tratar da dor crônica. O ponto focal da pesquisa era saber como os pacientes reestruturam suas formas de pensar sobre a dor em resposta a alguma forma de tratamento a que eles resistem pelo menos em alguns aspectos. Trata-se de utilizar a entrevista como veículo de reflexão e como maneira de configurar a experiência futura. Como escreve a autora, engajar o paciente em uma espécie de autoterapia.

Para Byron J. Good e Mary-Jo del Vecchio Good, o estudo de pessoas identificadas como sofrendo de epilepsia, em uma pequena cidade da Turquia, foi demonstrativo de que as estórias da enfermidade tinham uma estrutura completa, mas, também, as entrevistas estavam compostas como um corpus de pequenas estórias. Das conclusões apontadas sobressai que "As narrativas sobre enfermidades não são simplesmente relatos da experiência ou relatos miméticos de eventos da perspectiva daqueles que estão doentes ou de membros de suas famílias. Nem são ficções culturais. As narrativas sobre as enfermidades formulam a realidade e uma atitude frente a ela. Elas compartilham experiências e organizam o comportamento, mesmo quando elas contam a experiência como foi vivida e mantida no recôndito da memória". Também, que as narrativas são sociais e intersubjetivas e o contexto da narração necessita cuidadosa observação.

Os dois últimos artigos da Revista relatam estudos no campo da oncologia. Linda M. Hunt analisa os dicursos de oncologistas em uma cidade mexicana, baseando-se em entrevistas formais e observações da prática clínica diária. O principal ponto da discussão é a disparidade entre o treino recebido pelos médicos, dentro do modelo biomédico, e o que é possível ser feito. As narrativas irão revelar esta defasagem, como também um terceiro discurso que virá carregado de conceitos morais e sociais, tais como a passividade da mulher ou a incompetência do pobre.

No último artigo, Mary-Jo del Vecchio Good, Tseunetsugu Munakata,Yasuki Kobayashi, Cheryl Mattingly e Byron J. Good analisam a questão da temporalidade enfrentada pelos oncologistas no processo terapêutico, comparando padrões norte-americanos e japoneses. Ao estudar, através das narrativas dos médicos, como eles constroem a trama terapêutica, verificaram não somente a utilização de metáforas, mas que para os norte-americanos a questão do tempo e a revelação da doença ao doente eram vistas de forma diferente, comparando-a aos japoneses. Para os primeiros, a revelação é imediata e o paciente é informado das formas sucessivas de tratamento, tentando encorajá-lo. Os médicos japoneses ocultam o diagnóstico e estão começando a lutar para "contar a verdade".

Certamente, toda a densidade empírica e teórica desses trabalhos não pode ser apanhada em uma resenha; esta fixa alguns pontos, chamando a atenção do que foi considerado de maior relevância. No seu conjunto, estes trabalhos colocam para os pesquisadores as amplas possibilidades da adoção de uma metodologia que, ao introduzir figuras literárias, como narrativa, enredo, temporalidade, retrospecção etc. concorre para que as observações antropológicas, utilizando estas novas abordagens, captem os significados e as expressões sobre a doença e as práticas terapêuticas. Ao encerrar, a citação de Jerome Bruner (Life as narrative, Social Research, 54: 11-32), 1987, resume a importância desta abordagem, ao afirmar: "Parece-nos não existir nenhum outro caminho para descrever o ‘tempo vivido’, salvo sob a forma de uma narrativa". (...) "A narrativa imita a vida, a vida imita a narrativa".

 

Everardo Duarte Nunes
Faculdade de Ciências Médicas
Universidade de Campinas

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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