Saúde & Povos Indígenas. Ricardo V. Santos & Carlos E. A. Coimbra Jr. (organizadores). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994. 251 p., tabelas, figuras.

ISBN 85-85676-05-1 R$ 23, 00

 

Trata-se de uma coletânea de artigos que procura enfocar o processo saúde/doença em sociedades indígenas em seus aspectos históricos, biológicos e socioculturais. O livro reúne 10 contribuições, repartidas em três partes, e organizadas em torno de uma dupla premissa conceitual: 1) uma visão das sociedades indígenas como inseridas em contextos econômicos e sócio-culturais específicos, e em processos acelerados de mutação; 2)o reconhecimento do fato que as mudanças sócio-econômicas afetam tanto a realidade biológica quanto a realidade social das populações indígenas.

A primeira parte explora temas como transições socioculturais e epidemiológicas, relações entre epidemiologia, processos adaptativos e demografia ou entre variabilidade genética e vulnerabilidade biológica.

Inicia-se com o artigo "Saúde e Doença em grupos Indígenas Pré-Históricos do Brasil: Paleopatologia e Paleoparasitologia", no qual os autores (S. Mendonça de Souza, A. J. G. Araújo e L. F. Ferreira) mostram como os estudos paleopatológicos podem esclarecer a contravérsia acerca da origem pós-contato, no continente americano, de várias doenças infecto-contagiosas. Investigações recentes sobre remanescentes esqueletais de populações ameríndias pré-históricas atestam a existência de várias formas de infecção treponêmatica, bem como de tuberculose (forma óssea). Por outro lado, os estudos paleoparasitológicos (sobre coprólitos) comprovam a presença de infecções parasitárias em populações indígenas no período pré-colombiano, permitindo confirmar a hipótese da origem asiática das populações ameríndias, do povoamento pré-histórico da América através do Estreito de Bering e, possivelmente também, da existência de migrações marítimas transpacíficas.

Em "Ocupação do Espaço, Demografia e Epidemiologia na América do Sul: A Doença de Chagas entre as Populações Indígenas", C. E. A. Coimbra Jr. e R. V. Santos examinam vários fatores que podem explicar as diferenças observadas na epidemiologia dessa tripanossomíase entre as terras andinas e amazônicas, na medida em que influem sobre o processo de domiciliação do inseto vetor (o barbeiro ou triatomíneo) do parasito dessa doença, indispensável à sua endemização. O sedentarismo aliado forte densidade populacional das populações indígenas andinas e a domesticação de animais, parecem assim favorecer a domiciliação de triatomíneos silvestres e, portanto, a endemização da doença de Chagas. Pelo contrário, a mobilidade espacial, o tamanho relativamente pequeno dos assentamentos e a ausência da domesticação de animais, seriam fatores adversos à sua endemização entre as populações indígenas amazônicas, explicando a existência dessa doença sob forma estritamente zoonótica. Os autores alertam, todavia, para as conseqüências do desmatamento, da implantação de projetos agroindustriais, da abertura de estradas, bem como dos processos ligados à aculturação das populações indígenas amazônicas (sedentarização, concentração espacial etc.) que podem mudar o perfil epidemiológico dessa tripanossomíase sul-americana.

O terceiro artigo, "Infecção, Mortalidade e Populações Indígenas: Homogeneidade Biológica como Possível Razão Para Tantas Mortes" de F. L. Black, relança o debate acerca das razões da vulnerabilidade biológica das populações indígenas. De acordo com o autor, não há evidências de especificidades genéticas nessas populações que poderiam comprovar a sua maior suscetibilidade às doenças infectocontagiosas, como, por exemplo, a ausência de certos genes relacionados à capacidade de resposta imune. Além disso, a desestruturação social como conseqüência das epidemias não é suficiente, em si, para explicar as altas taxas de morbidade e de mortalidade observadas na ocasião de um surto epidêmico. O autor formula a hipótese de que o alto grau de homogeneidade biológica observado entre essas sociedades, isto é, seu limitado repertório genético (restrição em alelos HLA notadamente), pode influir em sua capacidade de responder imunologicamente às doenças decorrentes do contato interétnico. Resta a averiguar as causas da homogeneidade biológica pronunciada das populações indígenas.

Segunda parte analisa os sistemas etnomédicos de quatro grupos indígenas da Amazônia, procurando ressaltar as suas dimensões sóciopolíticas, bem como sua relação com o sistema de saúde ocidental. Sobre esse último aspecto, as contribuições insistem na importância do conhecimento antropológico de uma sociedade e das suas representações etnomédicas, para se prover uma assistência médico-sanitária social e culturalmente adequada.

O artigo "A Construção Social da Doença e seus Determinantes Culturais: a Doença da Reclusão do Alto Xingu" é uma boa ilustração dos conflitos de interpretação existentes entre índios e agentes de saúde ocidentais acerca de uma doença específica, e das conseqüências dessas divergências sobre a conduta terapêutica. Tomando como exemplo a síndrome paralítica regressiva que acomete particularmente os adolescentes durante a reclusão pubertária, C. B. L. Verani mostra, outrossim, como a incidência dessa doença assume um papel de destaque no âmbito das rivalidades intertribais, a manipulação pelos índios dos recursos de atendimento à saúde transformando-se numa estratégia importante no contexto das relações com a sociedade nacional envolvente.

E. J. Langdon, em "Representações de Doença e Itinerário Terapêutico dos Siona da Amazônia Colombiana", mostra, antes de mais nada, que a categoria etiológica "doença de brancos, geralmente considerada como categoria funcionalmente válida e amplamente utilizada pelos profissionais de saúde para se referir às doenças decorrentes do contato interétnico, nem sempre é reconchecida pelas sociedades indígenas. Daí decorre a importância de se conhecer as representações indígenas das doenças infecciosas, que podem afetar o padrão epidemiológico e a morbi-mortalidade destas últimas, e também a eficácia das medidadas médico-sanitárias tomadas durante um surto epidêmico. A partir da análise da escolha dos itinerários terapêuticos seguidos pelos Siona, a autora oferece um bom exemplo do caráter altamente pragmático das sociedades indígenas, que utilizam todos os recursos terapêuticos disponíveis. Tal pragmatismo não demostra a incoerência das suas representações, como muitos médicos e agentes de saúde costumam inferir, já que medicinas tradicionais e ocidental atuam em registros distintos (isto é, respectivamente, esfera das causas e dos sintomas).

D. Pollock, em "Etnomedicina Kulína", oferece uma visão abrangente das representações e práticas relativas à doença e seu tratamento nessa sociedade indígena do Alto Rio Purus, insistindo sobretudo na relação (ideológica e prática) com as concepções indígenas do corpo e da pessoa. Discute, outrossim, a questão da utilização e da percepção dos remédios brancos, que só são procurados no primeiro estágio das doenças, isto é, antes de serem atribuídas a uma causa externa (feitiçaria, ataque de espíritos etc.), sendo a medicação escolhida de acordo com os critérios da fitoterapia tradicional (aroma, em particular).

Por fim, a contribuição de B. A. Conklin "O sistema médico Wari' examina a questão da percepção e das formas de utilização da medicina ocidental pelas sociedades indígenas. Mostra em particular como a adoção pelos Wari' da medicina ocidental é parcial, esses índios demostrando um interesse todo especial por comprimidos, injecções, antibióticos, cuja racionalidade deve ser procurada na própria lógica cultural e não na adoção correlativa da ideologia subjacente à biomedicina. Por fim, a autora salienta a resistência dos Wari' a assumir a função técnica de agente de saúde, cuja formação é, aliás, um dos pontos importantes da política de atenção primária em saúde planificada pela Organização Mundial de Saúde, destacando, dessa maneira, que os programas de saúde devem ser idealizados e implantados de acordo com a realidade sócio-cultural das populações beneficiadas.

A terceira parte reúne contribuições que exploram o impacto das transformações ambientais, sócio-culturais e econômicas decorrentes do contato interétnico sobre o perfil epidemiológico e sanitário das populações indígenas.

Inicia-se por um artigo dos organizadores desta coletânea ("Contato, Mudanças Sócio-econômicas e Bioantropologia dos Tupí-Mondé da Amazônica Brasileira") que, a partir de dados de diferentes ordens (ecológicos, epidemiológicos e históricos), examinam as implicações a longo prazo das mudanças ambientais e sócio-econômicas decorrentes do contato inter-étnica sobre o processo saúde/doença entre índios Tupi-Mondé. Os dados dos autores demostram a extrema precariedade da situação nutricional e sanitária desses índios (defeitos do esmalte dentário, desnutrição, anemia, doenças parasitárias, alteração na morfologia corporal, aparição de novas doenças como certas micoses de origem fungai etc.) que se assemelha à dos segmentos menos favorecidos da sociedade brasileira. Reforçam, outrossim, a necessidade da antropologia biológica se abrir ao estudo das relações entre transformações sócio-econômicas e saúde das populações humanas, para menor entender os vários aspectos da biologia das populações indígenas amazônicas, bem como por processos adaptativos destas últimas.

Em "Crise e Recuperação Demográfica: os Xavante de Pimentel Barbosa, Mato Grosso", N. Flowers examina uma questão geralmente pouco enfocada pelos estudos antropológicos em sociedades indígenas, ou seja, os efeitos a longo prazo do contato interétnico sobre as variáveis demográficas (fecundidade, mortalidade, entre outras). Certas sociedades indígenas, como os Xavantes, conseguiram não somente sobreviver ao choque epidemiológico e sanitário do contato, como também demonstraram um rápido crescimento populacional. Analisando a dinâmica demográfica dos Xavantes, a autora mostra que os indicadores demográficos experimentaram importantes flutuações em curto espaço de tempo, como resposta às novas condições sociais e ambientais impostas pelo contato.

Por fim, o artigo "A Morte como Apelo para a Vida: o suicídio Kaiowaá" de J. C. S. Bom Meihy, é uma reflexão acerca dos suicídios de adolescentes entre os índios kaiowá da região de Dourados desde 1986. O autor rejeita a interpretação cíclica (surto cíclico de fases de suicídíos) dada por diversos autores, bem como a teoria do "contágio" apontada por Durkheim para as sociedades urbanas européias do final do século passado. Por outra parte, os problemas de ajustes (familiares, sociais, escolares, culturais) como possíveis causas dos suicídios não parecem refletir a realidade Kaiowá, nem a opção pela morte para se atingir a "Terra sem mal". O autor conclui que a razão desses suicídios, que acontecem principalmente a faixa etária de 10 a 17 anos, deve ser procurada dentro da cosmologia e da mitologia dessa sociedade indígena.

No conjunto, essa coletânea é importante, considerando-se a escassez de estudos publicados no Brasil sobre o processo saúde/doença entre sociedades indígenas. Importa ressaltar, outrossim, a tentativa de apresentar num livro único a pluralidade teórica e metodológica que caracteriza os estudos desse processo, procurando iniciar, de uma certa maneira, um diálogo entre representantes das diferentes vertentes. Por fim, seu interesse se prende aos caminhos abertos (pesquisas, problemas teóricos a resolver) que a diferentes contribuições deixam entrever para o futuro. Dado o seu enfoque multidisciplinar, esse livro será de interesse para antropólogos, etnohistoriadores, demógrafos, epidemiológos e parasitológos interessados em contato, mudanças sócio-culturais e saúde, ou, mais comumente, no impacto biológico das transformações sócio-culturais e econômicas em ambientes amazônico.

 

Dominique Buchillet
ORSTOM – DES
Universidade de Paris

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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