Debate sobre o Artigo de Marques
Debate on the Paper by Marques

 

Ana Lucia S. Sgambatti de Andrade
Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública
Universidade Federal de Goiás

Inqüestionável a oportunidade do tema "Doenças infecciosas emergentes no reino da complexidade: Implicações para as políticas científicas e tecnológicas", abordado por Marília B. Marques. A recente re-emergência do vírus Ebola no Zaire é o testemunho mais recente da relevância deste tema, que vem desencadeando sucessivas discussões, "convocando" as nações, ricas e pobres, para uma cooperação técnica, visando a definição e a operacionalização de estratégias para o enfrentamento das doenças infecciosas emergentes. Na ordem do dia, novamente, "the burden of infectious diseases". A Organização Panamericana da Saúde prevê uma corrida sanitária de não menos que uma década e mais de U$ 200 bilhões para se controlar, por exemplo, a pandemia de cólera na América Latina (CDC, 1994).

Inúmeras seriam as possibilidades de abordagem do tema. No entanto, Marília B. Marques inova em sua leitura crítica dos desdobramentos previsíveis em direção a uma era de imprevisibilidade, se me permite o trocadilho, tendo em vista as doenças infecciosas emergentes. O artigo traz contribuição, aprofundando a discussão das doenças emergentes no contexto de um processo evolucionário complexo. Enfatiza as dificuldades em se propor intervenções, dado o caráter de imprevisibilidade dessas doenças. Talvez o texto pudesse ser enxugado; alguns traços pecam pela redundância. No subtópico Complexidade e Doenças Emergentes, por exemplo, a polêmica do Grupo de Harvard (páginas 11 a 15) poderia ser condensada.

A profundidade e a abrangência do artigo deixam pouco a acrescentar. Embora reconhecendo não ter sido objetivo do artigo descrever detalhadamente a geografia das doenças infecciosas emergentes, observase que a seção O Problema é, na sua maior parte, dedicada a exemplos de doenças emergentes no contexto da realidade epidemiológica dos Estados Unidos. Neste balanço de novas ondas de agentes infecciosos letais, a maré vem desaguando, cada vez mais, em algumas regiões brasileiras. Julgamos oportuno, à guisa de contribuição, a lembrança de duas outras doenças infecciosas emergentes detectadas em regiões da Amazônia brasileira nos últimos meses. Como já se sabe, os municípios da região norte do estado de Mato Grosso vêm apresentando acelerado e abrupto desenvolvimento de mudanças no uso da terra, com devastações ecológicas, gerando um cenário ecoepidemiológico onde o homem vem compartilhando seu espaco com vetores e reservatórios de focos de doenças infecciosas. Acrescem-se a esse quadro os freqüentes deslocamentos populacionais na área. Assim é que, em 1994, surge a primeira descrição da presença do vírus da hepatite E no Brasil, nessa região. A notificação de uma "epidemia de hepatite" em adultos jovens, com 10% de legalidade, motivou a condução de um inquérito soroepidemiológico, que foi realizado em 98 garimpeiros da região de Peixoto de Azevedo, detectando-se 6% de soropositividade ao vírus da hepatite E (Pang et al., 1995). Ainda no mesmo ano, epidemiologistas de Mato Grosso relataram morte súbita de três recémnascidos residentes em áreas próximas à mata, nos arredores da cidade de Sinop, e em abril de 1995, outras três mortes ocorreram em Cuiabá com manifestações clínicas compatíveis com Síndrome pulmonar por hantivirus. Os exames sorológicos confirmaram tratar-se de hantivírus (dados não publicados).

É premente a necessidade do fortalecimento e da modernização, no curto prazo, dos serviços de notificação e vigilância em saúde, ajustados ao conceito de doenças infecciosas emergentes, aspectos estes também explorados no texto. Aqui vale mencionar que a abrangência do conceito de doença emergente inclui, no elenco de possibilidades, desde novas doenças cujos agente são desconhecidos até velhas doenças com nova epidemiologia. Os Estados Unidos, por exemplo, têm aumentado a vigilância das doenças parasitárias consideradas exóticas. Como exemplo, a ocorrência de dois casos de doença de Chagas aguda, em conseqüência de transfusão de sangue de doador assintomático, imigrante da América Latina, motivou um editorial no Annals of Internal Medicine intutilado is Trypanosoma cruzi a new threat to our blood supply? (Kirchhof, 1989).

Dentre vários pontos levantados no artigo, algumas palavras a propósito das potencialidades dos Sistemas de Informação Geográfica (SIG) na análise prospectiva, conforme sugerido por Marília Marques. Um dos grandes avanços da informática no campo da vigilância espacial no controle de endemias tem sido o uso dos SIG. Para doenças emergentes cujo controle depende da ordenação do processo de desenvolvimento social e econômico e de ocupação do espaço, a utilização de ferramentas como o SIG viabiliza o monitoramento e o planejamento de ações de controle. O mapeamento geográfico segundo características geológicas e hidrográficas e o mapeamento da agricultura e da ocupação do meio ambiente têm permitido o mapeamento da expansão de infecções emergentes, por exemplo, na Amazônia brasileira. Recursos corriputacionais têm sido utilizados para sobrepor imagens de satélite a dados epidemiológicos representados graficamente, para a composição de imagens tridimensionais interpondo o ambiente, o homem e a fonte de vetores. Esta estratégia tem possibilitado a identificação de criadouros de mosquitos, descrição de ecótopos, tipos de vetores e predição de dispersão de doenças em áreas ainda virgens de colonização. Esta metodologia vem, há algum tempo, sendo utilizada com sucesso em doenças parasitárias, como malária e oncocercose.

Na era "internética", como todo bom usuário, não poderia deixar de mencionar a potencialidade da rede internet para viabilizar o estabelecimento de informações "superhighways", adicionando eficiência na troca/disseminação de informações com a finalidade de vigilância de doenças emergentes. Um banco de dados internacional de doenças infecciosas, integrado a sistemas já existentes, com protocolos comuns e armazenados em formatos compatíveis, facilitaria o acesso de usuários de todo o mundo. Nesse aspecto, os CDC vêm propondo o estabelecimento de uma Rede de Vigilância Sentinela, interligada eletronicamente, implementando as tradicionais fontes de dados utilizadas (CDC, 1994).

Em análise presente e futurista deste excitante tema, e considerando que a comunicação entre os povos está em escala irreversivelmente crescente, o destaque fica para o conceito de "saúde internacional" contrapondo-se à noção de "saúde nacional".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CDC (Centers for Disease Control and Prevention), 1994. Addressing Emerging Infectious Disease Threats: A Prevention Strategy for the United States. Atlanta: U.S. Departmente of Health and Human Services, Public Health Service.

KIRCHHOFF, L. V., 1989. Is Trypanosoma cruzi a new threat for our blood supply?. Annals of Interna! Medicine, 111: 773-775.

PANG, L.; ALENCAR, F.; CERUTTI, C.; MILHOU,, W. K.; ANDRADE, A. L. S. S.; OLIVEIRA, R. M.; KANESATHASAN, N. & HOKE, C., 1995. Hepatitis E in the Brazilian Amazon. American Journal of Tropical and Hygiene, 52: 347-348.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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