Debate sobre o Artigo de Marques
Debate on the Paper by Marques

 

Hermann G. Schatzmayr
Instituto Oswaldo Cruz
Fundação Oswaldo Cruz

O trabalho apresenta a complexidade dos fatores envolvidos no aparecimento de novas entidades mórbidas ou no ressurgimento de antigas, sob formas mais graves.

Inicialmente cumpre assinalar que o fenômeno não é novo, as epidemias de varíola, cólera, peste e influenza, em passado histórico não tão distante, com efeitos por vezes devastadores, indicam que, em presença de populações susceptíveis, estes agentes tiveram a possibilidade de atingir grandes núcleos populacionais.

Os avanços no conhecimento das etimologias das doenças infecciosas, de seu diagnóstico, e da vacinação contra várias delas, criaram a falsa impressão de que estavam sob controle e que seriam rapidamente superados eventuais focos que surgissem.

Esqueceram-se, porém, dois fatos biológicos irreversíveis: um, a evolução dos seres vivos, incluindo as mutações dos microorganismos, gerando melhores condições de sobrevivência para alguns indivíduos e, outro, o crescimento demográfico exponencial das populações humanas neste século.

Este último dado, sem qualquer cunho alarmista, nos indica que, em muitas regiões do mundo, já não há mais possibilidade sequer de se prover saneamento básico para as populações existentes, pelas tecnologias atuais, por falta de recursos hídricos sustentáveis a longo prazo. Parecenos que este crescimento demográfico é citado apenas ao longo do texto e não como uma das bases do processo em discussão.

A pressão das populações crescentes sobre os recursos naturais existentes, inclusive sobre áreas e sistemas ecológicos ainda não desenvolvidos, na busca de bens ou mesmo da simples sobrevivência, é muito forte. A par disso, ocorrem as ocupações de larga escala, desenvolvidas por estruturas poderosas como, por exemplo, na busca de minério ou na implantação da agricultura ou da pecuária.

Estas atividades freqüentemente expõem populações humanas a ciclos naturais de agentes infecciosos até então em equilíbrio e afastados do homem.

Por outro lado, já se afirmou que nada tem sentido em biologia se não for avaliado pela ótica da evolução; as mutações aleatórias propiciam condições de vantagem para alguns indivíduos, os quais, ao sobreviverem melhor às condições existentes, predominam sobre os demais. Ocasionalmente a resistência a drogas ou a maior capacidade de se multiplicarem em seus hospedeiros, o que podemos chamar de maior virulência, surgem ao longo do processo e são a base do estabelecimento de novas entidades ou do ressurgimento de outras já conhecidas.

O artigo descreve as possibilidades de previsão dos cenários futuristas, reconhecendo o grau de imprecisão dos mesmos, com o que concordamos.

O artigo preconiza, ainda, uma conjugação de esforços de várias áreas do conhecimento, visando uma ação comum, com o que também se concorda, inteiramente.

Parece-nos, no entanto, muito mais importante, em vez de tentar prever o imponderável, nos voltarmos ao instrumentalismo, destacando-se o estabelecimento de métodos e tecnologias de monitoramento global do surgimento de problemas. Estes sistemas deveriam permitir detectar, em qualquer parte do mundo, o acúmulo de quadros de doenças emergentes ou disto suspeitas, bem como acompanhar a evolução do problema ao longo do tempo.

A par do monitoramento de eventos, será necessário, a nível global, o aprimoramento de ações de controle que possam ser aplicadas, de maneira consistente, em todas as populações sob risco imediato ou de médio e longo prazo.

Dentro destas ações de controle, destaca-se a capacidade de mobilização de grupos de abordagem especializados, apoiada na tríade epidemiologia, laboratório e clínica, para desenvolver ferramentas de diagnóstico e prevenção.

Outra ação instrumental importante é a correta divulgação de informações sobre estes quadros emergentes, hoje tratados na mídia comercial de forma quase sempre sensacionalista no momento em que surgem e em seguida esquecidos, quando mais se necessitaria de uma avaliação crítica da situação, a médio e a longo prazos.

Destaca-se, ainda, a necessidade de maior flexibilidade e rapidez na alocação de fundos e a definição de prioridades, para se fazer face a esses desafios; não se pode esperar anos para que mais recursos fluam para doenças que, em poucos meses, possam ter efeitos graves sobre populações.

Em resumo, em nossa opinião, o artigo é estimulante e abrangente, porém não enfatiza os dois principais agentes do surgimento de doenças novas e o ressurgimento de antigas, de forma mais grave, quais sejam, a evolução biológica e o crescimento demográfico humano.

Procurando o macro dos fatores envolvidos, acaba deixando sem maior definição os instrumentos a aplicar.

O artigo permite que se reavalie que espécie de profissional necessitamos formar para a Saúde Pública de nossos dias; a volta de enfoque mais instrumentalista, que norteou, por exemplo, a nossa Ensp por muitos anos, deve ser repensada.

Através da pura dialética, muitas vezes ela própria conflitante e perplexa pelas rápidas mudanças que surgiram nos últimos anos no mundo, não seremos capazes de responder a graves problemas que, eventualmente, atinjam milhões de pessoas, em curto prazo de tempo.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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