O AUTOR RESPONDE / THE AUTOR REPLY

 

Marília B. Marques
Núcleo de Estudos em Ciência e Tecnologia, Centro de Informações Científicas e Tecnológicas em Saúde, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4036, 7° andar, Rio de Janeiro, RJ, 21040-361, Brasil.

O artigo mereceu comentários críticos de natureza variada. Devido ao predomínio, entre os comentaristas indicados pelos Cadernos de Saúde Pública, de profissionais das áreas biomédica e clínica, seria mesmo de esperar que o texto cumprisse o papel de estimular a divulgação, para um público mais amplo, de informações e dados, verdadeiramente preciosos do ponto de vista acadêmico, sobre a situação das doenças emergentes/re-emergentes no Brasil. Tenho testemunhado que há, nos círculos internacionais dedicados ao assunto, grande expectativa e preocupações motivadas pela escassez de informações sobre a situação em nosso País.

As contribuições vieram, portanto, em muito boa hora. Considerando a quase inexistência de dados e informações a respeito circulando no Brasil, as ocorrências referidas por Sgambatti de Andrade, Linhares, Hortal, Kloetzel, Boulos e Tauil, certamente, enriquecem o conhecimento a respeito e fazem aflorar, para o espaço das preocupações com a saúde pública, graves e pouco valorizados episódios de doenças emergentes e re-emergentes. As informações trazidas por Linhares, sobre as arboviroses na região amazônica, atestam a liderança internacional alcançada por pesquisadores brasileiros.

Situações, epidêmicas ou não, como as descritas por Sgambatti de Andrade, no Estado do Mato Grosso do Norte – Hepatite E, em garimpeiros e hantavírus, em recémnascidos – em geral, terminam sendo "metabolizadas" cientificamente pelos meios acadêmicos e pela indústria farmacêutica do Primeiro Mundo, muito antes de que qualquer política científica específica, ou até mesmo de saúde, venha a ser definida pelo Brasil. Considerando que a confirmação diagnóstica é, muitas vezes, feita no exterior e que a publicação dos relatos de casos é, em geral, feita em revistas internacionais especializadas, a maioria em inglês, o fluxo de informações termina sendo muito mais eficaz para fora do que internamente.

Não há como deixar de aproveitar as oportunas observações de Sgambatti de Andrade sobre a importância do aproveitamento da Internet para a vigilância de doenças emergentes, para registrar, mais uma vez, o quanto a questão da regulamentação do patenteamento da vida no Brasil tornou-se um tema político crucial. Sem adentrar pelos aspectos éticos dessas discussões, penso que sua introdução eventual – o que espero não venha a acontecer – irá restringir ainda mais o fluxo internacional de informação científica e tecnológica. Por outro lado, também poderá vir a comprometer a universalidade do acesso em saúde aos resultados da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico, como, por exemplo, futuras vacinas para doenças emergentes, tendo em conta os impactos que terá sobre os preços de produtos finais, no complexo médico-industrial.

Considero que a circulação da informação científica e tecnológica, no Brasil, ainda é insuficiente, inadequada e desprotegida – ousaria afirmar que a comunidade científica brasileira, mas não apenas ela, ainda ignora a importância da informação que produz, no contexto técnico-econômico deste final de século. Apesar das limitações das bases de dados existentes, a capacitação nacional em certos campos, surpreende. É o caso das arboviroses.

Certas doenças são ignoradas até mesmo pela mídia que, corno chamam a atenção Serufo e Schatzmayr, especializou-se em veicular imagens sensacionalistas. Se a mídia peca por excessos, não há, entretanto, como deixar de registrar as contribuições importantes que alguns jornalistas vêm dando ao campo das doenças emergentes/re-emergentes. Há cerca de três anos, passei ao Schatztmayr cópia de um artigo fascinante que encontrei na The New Yorker, publicado antes do livro "Hot Zone" e do Ebola estourar novamente na África, em 1995. Recentemente, colaboramos – eu, e muitos outros pesquisadores brasileiros – para uma matéria no tema, preparada pela jornalista Terezinha Costa para a revista Globo Ciência e avalio que o resultado foi excelente.

Recomendo a leitura do livro "The Coming Plague. Newly Emerging Diseases in a World Out of Balance", da jornalista Laurie Garret (editado por Farrar, Straus e Girow/New York, 1994). Trata-se de um trabalho monumental. Tive oportunidade, em duas ocasiões diferentes, de manter contato profissional com a Laurie. A primeira vez, no outono americano de 1993, em um seminário promovido pelo Grupo New Diseases da Universidade de Harvard, e realizado nos Marine Biology Laboratories, na cidade de Woodshole, na Costa Leste dos Estados Unidos.

Não notei restrições da parte dos cientistas americanos pelo fato de tratar-se de uma jornalista. Ao contrário, tratavam-na com a mesma reverência acadêmica que conferiam aos demais cientistas presentes, e as opiniões eram unânimes quanto à seriedade do sério trabalho de pesquisa que estava sendo feito pela jornalista, em Harvard. Em junho de 1995, volteia encontrar a Laurie em Nova York, em outro seminário no tema. Seu livro tornara-se um best seller em poucos meses. Com certeza, a versão para o português será lançada em breve por aqui e repetirá o sucesso que vem tendo em outros países.

Destaquei essa questão por considerar muito importante a contribuição que os cientistas podem vir a da imprensa, no Brasil, no desenvolvimento de um jornalismo científico de qualidade e ético.

Maria Hortal referiu-se à resistência que microorganismôs desenvolvem por intercâmbio genético intra e interespécies, como nos casos do S. pneumoniae e dos enterecocos. Schatzmayr menciona fatos biológicos irreversíveis e mutações aleatórias na evolução biológica. Gadelha mencionou os desafios colocados pelos prions e virions – novas formas virais – para a detecção e vigilância de doenças emergentes. São observações que suscitam diferentes questões de ordem teórica e que discuto a seguir.

Antes, porém, é necessário destacar o problema dos conceitos de "novas" doenças e de doenças emergentes, para o qual chamaram a atenção Gadelha e Serufo.

Freqüentemente, presume-se que o aparecimento de um "novo" microorganismo causador de doença é o resultado de uma mudança genética. Outras vezes, a emergência é claramente imputada às mudanças no ambiente e na ecologia humana. Com razão, Serufo, em seus side comments – que não destinou à publicação – pergunta: as doenças re-emergentes devem ser entendidas como "novas" doenças infecciosas? É possível separar conceitualmente emergência e re-emergência?

Bem, Gadelha ofereceu uma contribuição concreta, apresentando a categorização proposta por Mirk Grmek, a partir de cinco situações em que uma doença pode ser considerada emergente; também sugere o desenvolvimento, no terreno conceitual, das diferenças entre "novidade" e "emergência", referindo-se aos conceitos de "patocenose" e momentos de ruptura de equilíbrios patocenóticos na explicação da emergência (e não da novidade). Não conheço os trabalhos de Grmek, mas encontrei uma certa proximidade, na leitura da apresentação que deles faz Gadelha, com as discussões atuais sobre emergência de "novas" doenças, focalizando a importância relativa da evolução de agentes de novo em comparação à da transferência de agentes já existentes para novas populações de hospedeiros (o denominado microbial traffic).

Realmente, as diferenças entre "novo", "emergente" e "re-emergente" são tratadas superficialmente na literatura médica e biomédica, ao contrário do que parece ocorrer na historiografia, segundo indicam os comentários de Gadelha. Para mim ficou, entretanto, a dúvida se os estudos feitos nas interfaces entre biologia, ecologia e história estão incorporando as discussões atuais sobre a problemática – histórica – do determinismo.

Embora não tenha ressaltado, no texto em debate, as limitações que encontro nas atuais classificações do novo, do emergente, do reemergente, na verdade, quando trato da previsibilidade referida à interpretação da causação, estou entrando na problemática do determinismo e da questão conceitual, ainda que sumariamente. Sem adotar nenhum conceito, porque considerei – e considero – prematuro, não pretendi, portanto, como entendeu Gadelha, regredir a algum reducionismo explanatório, do tipo tentar explicar toda a biologia pela ecologia ou pela economia ou em termos genéticos ou físico-químicos.

Em minhas atuais preocupações com as doenças emergentes, tenho em mente a seguinte pergunta: poderá a epidemiologia beneficiar-se, futuramente, da substituição de seus pressupostos mais tradicionais, dos mecanismos determinísticos, por um novo paradigma evolucionário?

Esta questão hoje se faz presente, em muitas áreas da ciência, a partir do momento em que a filosofia da complexidade encontrou suporte no campo da evolução biológica e passou a ser explorada enquanto um recurso alternativo às abordagens reducionistas. Sobretudo, o problema do deteterminismo é complexificado no campo das ciências físicas, nas idéias de caos determinista, caos organizador, estruturas desordenadas, caos quântico. Mas existe uma verdadeira explosão de trabalhos sobre o caos, em quase todos os domínios do conhecimento.

Penso que não se trata apenas de contrapor ao determinismo, a imprevisibilidade e a complexidade. Para dar conta de responder a essa indagação, ainda há muito que caminhar na direção, apenas indicada, introdutoriamente, no trabalho em debate.

Penso, acompanhando Prigogine e Stengers em "Entre o Tempo e a Eternidade", que é possível falar de uma gênese físico-química da informação, sem que isto signifique reduzir a biologia e a história às leis físico-químicas, antes revelando a riqueza das relações entre processos, acontecimentos e circunstâncias que ganham um sentido longe do equilíbrio.

Advertem Prigogine e Stengers que as teorias da evolução darwinianas apresentam a evolução como simples produto de forças seletivas, atuando em mutações de ocorrência aleatória. Mas, indagam, são as mutações ocorrências aleatórias ou não são? Na ausência de qualquer informação concernente à natureza exata da variabilidade, entendem que a hipótese da total aleatoriedade é a mais plausível, tanto que o próprio Darwin a adotou. Muitas outras hipóteses são, entretanto, possíveis, desde a completa aleatoriedade, até o puro determinismo ecológico, no qual o ambiente é que determina totalmente qual mutação ocorrerá. A teoria darwiniana não é, portanto, preditiva e constitui apenas uma explanação plausível dos fenômenos observados no reino animal.

No seminário antes referido, de junho de 1995 – Emerging Infeccious Diseases: Meeting the Challenge, promovido pela The New York Academy of Medicine –, presenciei o Prêmio ,Nobel Joshua Lederberg, discorrendo a respeito do futuro das doenças infecciosas, mencionar, a propósito dos mecanismos de coadaptação e troca de DNA que "... DNA é DNA e não reconhece espécies!" Com esta afirmação, Lederberg estava sugerindo que o processo evolucionário é muito mais complexo do que a explicação darwiniana sugere!

Muito têm contribuído para esta reviravolta as pesquisas sobre a Encefalopatia Espongiforme Bovina ou Prion Disease, incluída como doença emergente no relatório do Institute of Medicine, que cito no texto. Este exemplo é importante porque, historicamente, uma doença é, geralmente, reconhecida antes dos seus agentes específicos. Novas técnicas genéticas e conhecimentos moleculares estão invertendo esta situação, e os agentes causais de muitas doenças emergentes são identificados simultaneamente ou, até mesmo, antes das síndromes associadas às doenças. No caso da Doença de Prion, as discussões sobre as medidas a serem tomadas estão se pautando pela antecipação dos riscos epidemiológicos, "puxando", desse modo, o desenvolvimento científico e tecnológico correspondente.

Em que momento a AIDS deixou de ser um problema hipotético e passou a ser uma questão concreta, de ordem operacional para os cientistas norteamericanos e europeus'? Certamente, não foi a partir do momento em que se contabilizaram as mortes e extraiu-se uma discussão estéril sobre o conceito de epidemia. Em 1995, em menos de duas décadas, essa trágica enfermidade tornou-se a primeira causa de morte entre indivíduos de 25 a 44 anos de idade, em certas partes do Primeiro Mundo, como na "abrasileirada" megacidade de Nova York.

De certa forma, as respostas às bem fundamentadas preocupações de Kloetzel sobre como fazer com que se aceitem novos conceitos e como conseguir que recursos sejam alocados para pesquisar hipotéticas endemias, já estão sendo dadas, no plano da ciência internacional, como comprovam a Encefalopatia Espongiforme Bovina e a AIDS. Penso que se trata, portanto, de levar na devida conta – nos planos acadêmico e da política de ciência e tecnologia em saúde – os riscos hipotéticos ou teóricos de futuras doenças emergentes.

Para Serufo, não há como discutir emergência e reemergência de doenças sem se pronunciar sobre questões políticas – e, acrescento, éticas e de segurança – emergentes, nos plano nacional e internacional. Certas enfermidades, realmente, só são valorizadas quando passam a ser percebidas como motivos de risco universal. A recente epidemia do Ebola leva à seguinte indagação: quem se encarregará de desenvolver e de fabricar uma vacina específica, apesar da miséria do Zaire? Esta é uma questão que toca fundo na atual ética universal nos aspectos dasaúde e do ambiente, onde predomina o enfoque instrumental e mercadológico.

Não se trata, portanto, de tentar prever o imponderável, em detrimento do instrumentalismo, como entendeu Schatzmayr. O pensamento simplificador rejeita a incerteza. Mas o conhecimento científico deve confrontar a incerteza, o acaso, o indeterminável e o imprevisível, porque também fazem parte do mundo real. O pensamento biológico moderno trabalha com o acaso e toda inovação evolutiva comporta acontecimentos aleatórios. E é a incerteza e não a certeza que estimula a criatividade intelectual.

Rattner, em seus comentários, concorda que a tese que associa a emergência de novas patologias à inovação e generalização de tecnologias permite várias análises e inferências. Seus comentários me fizeram pensar nos que estão em busca, na atualidade do pós-socialismo, dos caminhos que poderão conduzir a um novo humanismo. Os novos humanistas refletem sobre o futuro e lutam para superar a crise geral atual. São otimistas e acreditam na liberdade e no progresso social. São internacionalistas e aspiram uma a nação humana universal, porém múltipla: por suas etnias, seus idiomas, costumes, regiões, idéias, aspirações, crenças, ateísmo e religiosidade. Múltipla no trabalho e na criatividade.

Concluo deixando um fragmento da poesia de Robert Frost:

Two roads diverged in a wood and I
took the one less traveled by
and this has made all the difference

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br