ARTIGO ARTICLE


 

 

 

 

Ligia Maria Vieira da Silva 2
Luis Eugenio Portela Fernandes de Souza 2
Alfonso J. P. Cerdeira 2
Cristiane M. F. Pinto 2
Renata S. A.Oliveira 2


Algumas características do setor privado de saúde de Salvador, Bahia, Brasil 1  

Characteristics of private health care services in Salvador, Bahia, Brazil 1

 

 


1 Projeto realizado com apoio do CNPq (Processo/no 521004/93-4). Bolsista Capes.
2 Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. Rua Padre Feijó 29, 4o andar, Salvador, Bahia40110-170, Brasil.
  Abstract To study the organization of private health services in the city of Salvador, Bahia, Brazil, a survey was carried out in 1994 involving 174 facilities registered at the Brazilian Institute of Statistics and Geography ­ IBGE. Health services characteristics studied were the following: number of physicians, hospital beds, production and cost of outpatient services, and legislative aspects. Health services were classified according to the amount of resources each type of granting agency contributed to support outpatient care. We found that the majority (51.1%) of private health care services in Salvador do not depend on public funds. The main sources of revenue for health services are private health insurance (41.9%) and other kinds of private health plans (54%). These changes in the organization of health services challenge health planners to review strategies for municipalization of health care and the relations between public and private health services in Brazil.
Key words Medical Assistance; Health Services; Health Systems; Health Insurance  

Resumo Com o objetivo de descrever algumas características dos serviços de saúde privados do Município de Salvador, foi realizado inquérito envolvendo 174 estabelecimentos cadastrados no IBGE. Foram investigados a natureza jurídica, a capacidade instalada ambulatorial e hospitalar, a produção e o custo das consultas médicas segundo modalidades de financiamento público e privado. As diferentes formas de assistência médica supletiva são a principal fonte de financiamento da assistência ambulatorial, e 51,1% das unidades investigadas são independentes dos recursos públicos oriundos do Sistema Único de Saúde (SUS). Os convênios-empresa e o seguro saúde stricto sensu participaram de forma moderada e elevada do financiamento das consultas médicas, em 54% e 41,9% dos serviços respectivamente. Os autores discutem o significado das modificações verificadas no segmento privado da atenção à saúde de Salvador, bem como as implicações desses achados no que diz respeito ao redimensionamento das estratégias de reorganização das práticas e serviços de saúde no País e de relacionamento entre o público e o privado.
Palavras-chave Assistência Médica; Serviços de Saúde; Sistemas de Saúde; Seguro Saúde

 

 

Introdução

 

O papel do setor privado no financiamento e produção dos serviços de saúde, bem como sua articulação com o setor público, constitui-se hoje em tema central do debate sobre as alternativas mais eficazes e menos custosas para a organização setorial em diversos países do mundo (Taylor-Gooby, 1996; Eibenschutz, 1995; Creese, 1994; Banoob, 1994; Gray, 1996; Richmond, 1996).

Recente análise sobre os problemas e perspectivas dos sistemas de saúde de seis países europeus revelou que, para fazer face aos crescentes custos dos serviços de saúde, entre as soluções apontadas estava a expansão da produção privada de serviços (Taylor-Gooby, 1996). Na América Latina, a privatização setorial foi considerada como um dos fatos mais característicos na evolução recente dos sistemas de saúde (Eibenschutz, 1995). Em muitos países da região, o setor privado passou a ser hegemônico, deslocando o setor público para um segundo plano (Laurell, 1995).

No Brasil, o setor privado tem desempenhado papel relevante na prestação de serviços de saúde nas últimas três décadas. Nos anos 60 e 70, verificou-se expansão das empresas médicas lucrativas, financiadas fundamentalmente com recursos públicos, o que correspondeu a um processo de capitalização setorial (Braga & Goes de Paula, 1981).

A década de 80 conviveu com dois fenômenos contraditórios. Por um lado, verificou-se uma institucionalização de algumas proposições oriundas do movimento sanitário no período da chamada Nova República (Escorel, 1987). Entre elas, destaca-se a reversão da tendência privatizante das políticas públicas durante curto período (1985-1988), que se expressou na inversão de prioridade dos gastos públicos com saúde: em 1987, 35,3% dos recursos da Previdência Social foram repassados ao setor privado contratado, enquanto 55% foram destinados ao setor público (MPAS, 1988; Silva, 1990; Cordeiro, 1991). Essa inversão de prioridades acompanhou-se por medidas de unificação e de descentralização dos serviços públicos de saúde consubstanciadas na expansão das Ações Integradas de Saúde (AIS) e do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) (Silva, 1990). Essas iniciativas resultaram na elevação da produção de serviços (consultas, exames) do setor público, porém imprimiram poucas modificações ao modelo assistencial que continuou centrado em ações curativas voltadas ao atendimento da demanda espontânea.

Por outro lado, o segmento do setor privado não dependente do financiamento do Estado, representado pelas empresas médicas de pré-pagamento e companhias de seguro saúde privado, algumas de origem transnacional, surge no final da década de 70 (Cordeiro, 1984), expandindo-se no período subseqüente. Denominado genericamente de assistência médica supletiva, é constituído por diversas modalidades cuja classificação varia de autor para autor (Mendes, 1993; Lewis & Medici, 1995). Para Mendes, o subsetor privado estaria subdividido em: subsistema contratado e conveniado (moderno e tradicional); subsistema privado da assistência médica supletiva e parte do subsistema de alta tecnologia. Por sua vez, o subsistema privado de assistência médica supletiva estaria composto por cinco modalidades assistenciais principais: a) medicina de grupo; b) sistemas próprios; c) seguro saúde stricto sensu; d) cooperativas médicas e planos de administração (Mendes, 1993). Já para Lewis & Medici (1995), o setor privado estaria subdividido em: a) sistema de pré-pagamento; b) cooperativas médicas; c) planos de saúde de companhias e d) seguro saúde. Para Mendes (1993), esse subsetor da assistência médica constituiu-se, desde então, no segmento hegemônico de prestação de serviços privados de saúde no País, cobrindo cerca de 22% da população.

Alguns estudos têm fornecido evidências empíricas sobre as modificações verificadas na composição do campo da prestação de serviços privados de saúde a partir de dados fornecidos por empresas de consultoria, evidenciando os gastos, o número de beneficiários, o porte, entre outros aspectos dos diversos tipos da assistência médica supletiva e em particular da medicina de grupo (Medici, 1991; Lewis & Medici, 1995) e do seguro saúde stricto sensu (Andreazzi, 1990). Outros estudos têm buscado a explicação do fenômeno principalmente na análise das políticas neoliberais de ajuste (Possas, 1996) ou investigado as suas relações com os distintos paradigmas de reforma da Seguridade Social (Teixeira, 1995).

Contudo, as possíveis modificações na organização dos serviços privados de saúde decorrentes desse novo momento, relacionadas com as características da gestão, grau de incorporação de tecnologia e participação das modalidades de financiamento na produção de serviços, são aspectos ainda insuficientemente investigados. Nessa perspectiva, o presente estudo pretende, através da análise de algumas características das empresas prestadoras de serviços do setor privado de saúde do Município de Salvador, contribuir para com a compreensão desse campo e também para o debate sobre as alternativas de reorganização dos serviços de saúde .

 

 

Metodologia

 

Foi realizado inquérito envolvendo estabelecimentos de saúde privados do Município de Salvador. Segundo publicação que contém os resultados referentes à pesquisa sobre a Assistência Médico-Sanitária (AMS) do IBGE, de 1990, dos 362 estabelecimentos de saúde existentes em Salvador, 116 eram públicos e 246 privados (IBGE, 1990). Contudo, no cadastro fornecido pelo escritório do IBGE de Salvador, existiam 260 serviços privados. Foram excluídos 37 estabelecimentos por se tratarem de serviços exclusivamente odontológicos; 13 serviços médicos de sindicatos; três serviços exclusivamente especializados em exames complementares e 11 outros vinculados a entidades comunitárias. Foram enviados questionários aos 196 restantes. Destes, três não mais existiam e 19 ou recusaram-se a responder ou protelaram a entrega do questionário para além dos prazos máximos estabelecidos para a coleta, totalizando 22 perdas, o que corresponde a 11,2% do total.

Foi realizado pré-teste em julho de 1994 em sete serviços de porte diferenciado para verificação acerca da adequação do questionário da investigação. Em seguida, os questionários foram enviados pelo correio, tendo havido um retorno de 20% do total. Quinze entrevistadores previamente treinados e supervisionados por bolsistas de iniciação científica e de aperfeiçoamento do CNPq concluíram a coleta de dados, bem como complementaram as informações referentes aos questionários enviados pelo correio, por meio de entrevistas com gestores dos serviços. Em alguns casos, quando não havia dados consolidados disponíveis para o preenchimento do item referente ao financiamento, o entrevistador, ou bolsista, calculou diretamente a informação a partir de relatórios mensais dos serviços. Quando isso não foi possível, o entrevistador solicitava do gestor uma estimativa a partir de dados mensais, o que aconteceu em 31 estabelecimentos (18% do total). Por esses motivos, a coleta prolongou-se de setembro de 1994 a março de 1995. Os dados foram digitados e analisados com o auxílio do programa Epi-info (Dean et al., 1990).

Foram utilizadas as seguintes variáveis para a descrição das características gerais dos estabelecimentos: a) designação jurídica (sociedade beneficente; sociedade filantrópica; com fins lucrativos; fundação; sociedade civil sem fins lucrativos); b) oferta de serviços (consultas médicas); c) capacidade instalada (número de médicos; número de consultórios; número de leitos); d) especialidades médicas oferecidas.

Já para a caracterização das formas de financiamento, foram utilizados dois indicadores: a) proporção de consultas médicas produzidas em 1993 segundo tipo de convênio ou modalidade de financiamento ­ Sistema Único de Saúde (SUS), seguro saúde stricto sensu, convênio-empresa, financiamento direto, outras ­ (esta informação foi obtida por meio de entrevista realizada com gestores ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde); b) proporção do custo de uma determinada modalidade de financiamento ou convênio em relação ao custo total de todas as consultas produzidas em 1993 por determinado estabelecimento de saúde. Este indicador foi calculado da seguinte forma:

 

pmi = (cmi X 100) / ctoti , onde :

 

pmi = proporção do custo da modalidade m no estabelecimento de saúde i;

cmi = número de consultas financiadas pela modalidade m no estabelecimento de saúde i multiplicado pelo valor unitário da consulta da modalidade m;

ctoti = csusi + csegi + cempri + cparti + coutri;

ctoti = custo total das consultas médicas no estabelecimento de saúde i;

csusi = número de consultas pagas pelo SUS x valor unitário da consulta SUS no estabelecimento de saúde i;

csegi = número de consultas pagas pelas empresas de seguro saúde stricto sensu x valor unitário médio da consulta do seguro saúde no estabelecimento de saúde i;

cempri = número de consultas pagas pelas empresas x valor unitário médio da consulta paga pelos convênios-empresa no estabelecimento de saúde i;

cparti = número de consultas pagas diretamente pelo usuário x valor unitário médio da consulta paga diretamente pelo usuário no estabelecimento de saúde i;

coutri = número de consultas pagas pelas outras modalidades de financiamento x valor unitário médio da consulta naquelas modalidades no estabelecimento de saúde i.

Com essa finalidade, foram utilizados os seguintes valores unitários correspondentes a julho de 1994: SUS = R$ 2,55 (dois reais e cinqüenta e cinco centavos); seguro saúde stricto sensu = R$ 20,00 (vinte reais); convênio-empresa = R$ 18,00 (dezoito reais); outras = R$ 18,30 (dezoito reais e trinta centavos) e particular = R$ 55,5 (cinqüenta e cinco reais e cinqüenta centavos). Com exceção do valor da consulta do SUS, os demais corresponderam a valores médios. A opção pela utilização de números relativos (proporções) relaciona-se não só com os objetivos do estudo, como também com o fato de que os valores monetários são referentes a 1994 e a informação sobre o número de consultas é de 1993.

As fontes de financiamento foram agrupadas nas seguintes modalidades (m): a) SUS: financiamento público; b) seguro saúde stricto sensu: empresas que atuam apenas como financiadoras de assistência médica; c) convênio-empresa: correspondem aos planos de saúde das diversas empresas que podem ou não ser de autogestão; d) financiamento direto: serviços remunerados diretamente pelo usuário; e) outras: demais modalidades (cooperativas, medicina de grupo ­ empresas concomitantemente financiadoras e prestadoras de serviços).

Em seguida, foi elaborada uma classificação para os estabelecimentos de saúde a partir da estratificação dos dois indicadores utilizados: a) proporção de consultas médicas produzidas em 1993 segundo tipo de convênio ou modalidade de financiamento; b) proporção do custo de uma determinada modalidade de financiamento ou convênio em relação ao custo total de todas as consultas em determinado estabelecimento. Segundo essa classificação, os estabelecimentos estudados foram agrupados em quatro faixas, conforme detalhamento feito abaixo para o indicador produção de consultas.

1) Ausência de participação dessa modalidade na produção de consultas: corresponde a 0% das consultas financiadas por aquela modalidade (SUS, seguro saúde stricto sensu, convênio-empresa, particular e outras);

2) Participação pequena: corresponde a uma proporção entre 1% ­ 19% das consultas financiadas por aquela modalidade;

3) Participação moderada: corresponde a uma proporção entre 20% ­ 40% das consultas financiadas por aquela modalidade;

4) Elevada participação: corresponde a uma proporção superior a 50% das consultas financiadas por aquela modalidade.

Da mesma forma, para a análise da participação relativa (pmi ) de cada modalidade m no financiamento global de determinado estabelecimento de saúde i, foram considerados os mesmos quatro estratos.

Por fim, naqueles estabelecimentos de saúde onde havia ausência de participação dos recursos públicos na produção de consultas, foi verificada a magnitude da participação das demais formas de financiamento (seguro saúde stricto sensu, convênio-empresa, financiamento direto e outras).

 

 

Resultados

 

Dos 174 estabelecimentos incluídos no estudo, a maioria está constituída por serviços com finalidade lucrativa (86,2%), sendo 12,6% sociedades filantrópicas, ou beneficentes, ou sociedades civis sem fins lucrativos. Quase a totalidade dos serviços (95,4%) oferece atendimento ambulatorial, e 21,8% possuem leitos para internação. Os serviços estudados são, na sua maioria, de pequeno porte, possuindo entre um e quatro consultórios (56,3%) para o atendimento ambulatorial e até sete médicos (51,1%). As especialidades oferecidas com maior freqüência são: ginecologia (46,0%), pediatria (40,8%), cardiologia (30,5%), cirurgia geral (35,1%), obstetrícia (33,9%), oftalmologia (31,0%). Apenas 32,9% dos serviços oferecem atendimento de urgência. Nas unidades que possuem internação, 38% são de pequeno porte (0 ­ 20 leitos); 23% são de médio porte (26 ­ 80 leitos) e 39% são de grande porte (100 ­ 823 leitos).

A análise da informação acerca da produção de consultas médicas por tipo de convênio revela que 89 dos estabelecimentos estudados (51,1%) são completamente independentes dos recursos públicos (Tabela 1). O total de estabelecimentos onde havia algum tipo de atendimento à clientela vinculada ao SUS foi de 64 (36,5%) (participação pequena, moderada ou elevada), sendo que, em 43 empresas (24.7%), a participação do SUS foi classificada como elevada, correspondendo a serviços de saúde cuja proporção de consultas pagas pelo SUS foi maior que 50% do total produzido durante o ano de 1993 (Tabela 1).

 

 

O seguro saúde stricto sensu participou de forma moderada e elevada do total de consultas médicas produzidas em 73 serviços de saúde, o que corresponde a 41,9% (Tabela 1).

Já a participação do convênio-empresa na produção das consultas médicas foi moderada e elevada em 94 serviços (54%). Apenas 8% dos serviços estudados não tiveram nenhum tipo de financiamento oriundo desse tipo de convênio. O número de consultas financiadas diretamente pelo usuário, sem intermediação do Estado ou de seguradoras, é de menor importância quando comparado com as demais modalidades, embora ainda se constitua em fonte complementar de pequena importância para 67,8% dos serviços e de moderada importância para 10,3%. Apenas cinco serviços referiram ter mais de 50% das consultas financiadas diretamente pelo usuário (Tabela 1) .

As outras modalidades de financiamento, como a medicina de grupo e as cooperativas, estiveram ausentes ou participaram pouco da produção de consultas médicas em 133 serviços (76,5%); em 18 serviços (10,3%), a participação foi classificada como moderada e apenas quatro referiram participação elevada (Tabela 1).

Na produção das consultas médicas das 89 unidades independentes do SUS, o convênio-empresa teve uma participação moderada em 38 (42,7%) e elevada em 37 (41,6%), totalizando 84,3%, superior, portanto, àquela relacionada com o seguro saúde stricto sensu, que foi moderada ou elevada em 62,9% dos casos (Figura 1).

Por outro lado, quando se analisa o peso relativo do custo das consultas por cada modalidade de financiamento, verifica-se que o convênio-empresa continua sendo, isoladamente, a principal forma de financiamento, o que corresponde a uma participação moderada ou elevada em 51,2% dos estabelecimentos de saúde (Tabela 2). Contudo, em segundo lugar, aparece o financiamento direto pelo usuário com participação moderada ou elevada em setenta estabelecimentos (40,3%). O seguro saúde stricto sensu vem em terceiro lugar, com participação moderada e elevada em 35,7%. O SUS fica em quarto lugar, participando de forma relevante (moderada ou elevada) em 16,7% dos estabelecimentos estudados (Tabela 2). Da mesma forma, quando os estabelecimentos de saúde que não tiveram financiamento público para consultas médicas em 1993 são analisados, a principal modalidade de financiamento é o convênio empresa, que participou de forma moderada ou elevada dos custos globais com consultas médicas em 70,8% dos estabelecimentos estudados; em seguida vem o financiamento direto, com 52,8%, e o seguro saúde stricto sensu com 45,0%.

 

 

Esse perfil é verificado principalmente nos estabelecimentos que oferecem apenas atendimento ambulatorial (clínicas), sendo que a maioria, 78 (57,4%), informa ausência de participação do financiamento público nas consultas médicas; 20 (14,7%) informam participação pequena e 23 (17,0%), participação moderada ou elevada dessa fonte de recursos. Já nos 38 hospitais estudados, embora apenas 11 (28,9%) tenham referido ausência de participação do SUS, 11 (28,9%) informaram ser pequena a participação dos recursos públicos no financiamento das consultas médicas, o que totaliza 57,8% (Figura 2). O número de estabelecimentos onde a participação do SUS deu-se de forma entre moderada e elevada foi equivalente àquele verificado na rede ambulatorial, ou seja, sete (18,4%). Tanto nos hospitais onde não havia qualquer tipo de financiamento público, quanto naqueles onde a participação era pequena, predominou o financiamento através dos convênios-empresa, seguido pelo financiamento direto do usuário e por aquele feito através das seguradoras. Chama ainda atenção que, nos 24 estabelecimentos caracterizados como não lucrativos (beneficentes e filantrópicos), 29,2% são completamente independentes dos recursos públicos, existindo uma participação pequena e moderada do seguro saúde em 58,3%, e do convênio-empresa em 41,7% dos casos.

 

 

Discussão

 

Os estabelecimentos de saúde estudados são, na sua maioria, empresas com finalidade lucrativa que oferecem serviços tanto básicos, quanto especializados em diversos níveis de complexidade. As diferentes modalidades da assistência médica supletiva em Salvador são as principais responsáveis pelo financiamento da assistência ambulatorial dos estabelecimentos de saúde privados estudados, sendo a maioria dos mesmos completamente independente dos recursos públicos.

Dentre os diferentes tipos de seguro privado de saúde investigados, chama atenção o papel desempenhado pelo convênio-empresa quando comparado com o seguro saúde stricto sensu, seja no que diz respeito ao volume de consultas produzidas, seja no que concerne ao custo das mesmas. Esse achado pode indicar um movimento na direção da eliminação do intermediário entre a empresa e o estabelecimento de saúde no financiamento das ações. Já a medicina de grupo e as cooperativas médicas têm participação menor do que aquela verificada em outros estudos (Medici, 1991). Esse fato pode decorrer de prováveis especificidades regionais na composição do subsetor privado, tendo em vista que, para o Brasil, em 1988, a participação da medicina de grupo foi registrada como superior às outras modalidades (Medici, 1991). Essa diferença também pode estar relacionada a utilização de metodologias distintas, o que dificulta a comparação entre os trabalhos.

O peso elevado do custo das consultas médicas pagas diretamente pelo usuário em relação ao total relaciona-se com a diferença significativa existente entre o custo unitário das consultas financiadas por esta modalidade quando comparada com as demais. O fato de essa forma de pagamento ter algum tipo de participação na maioria dos estabelecimentos de saúde estudados pode corresponder a um triplo ônus para o consumidor. Ou seja, parcela significativa dos usuários contribui tanto para a previdência social quanto para uma das forma de assistência médica supletiva. Tendo em vista que na maioria dos tipos de seguro privado não existe livre opção pelo profissional, freqüentemente o cliente paga diretamente a consulta ao médico de sua preferência, embora realize exames complementares e internações através do seguro privado.

Um adequado equacionamento do papel do setor público no financiamento dos estabelecimentos privados de saúde requereria uma análise global dos custos desses serviços, principalmente das internações e serviços complementares de diagnóstico e terapia (SADT). Os resultados do presente trabalho, contudo, são coerentes com a tendência nacionalmente verificada de modificação da situação dominante na década de 70, quando as empresas privadas de saúde desenvolveram-se basicamente às custas dos recursos da previdência social (Oliveira & Teixeira, 1986), para um outro padrão, baseado no financiamento privado através das diversas formas de assistência médica supletiva e seguro saúde (Mendes, 1993).

Por outro lado, esse é um fenomeno verificado em escala internacional e na América Latina em particular, conforme mencionado anteriormente. A expansão do setor privado em saúde tem ocorrido tanto na Argentina, Chile e México (Eibenschutz, 1995; Tamez et al., 1995), quanto em países europeus (Banoob, 1994) e asiáticos (Creese, 1994). Na América Latina, esse fenômeno vem sendo patrocinado pelo Estado de duas formas: diretamente, seja por meio de legislação específica protetora das seguradoras, seja através do financiamento público de planos de saúde privados para trabalhadores, e indiretamente, em decorrência das políticas de ajuste neoliberais que têm asfixiado o setor público nesses países (Tamez et al., 1995).

No caso particular do Brasil, a legislação define a responsabilidade pública pela saúde da população no artigo 196 da Constituição Federal de 1988. Concomitantemente, é assegurado espaço para a iniciativa privada no artigo 199, onde ficou estabelecido que: "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada". Além disso, como as ações e serviços de saúde são considerados como de 'relevância pública' (art. 197), o setor privado está sujeito ao controle e fiscalização do Estado. Ou seja, não há um favorecimento do setor privado na legislação específica da saúde em vigor, exceção feita às deduções do imposto de renda de despesas privadas com saúde, cujo impacto sobre o financiamento setorial ainda precisa ser melhor dimensionado. Aqui, a expansão deste segmento da atenção à saúde parece relacionar-se fundamentalmente com o colapso do financiamento público setorial verificado a partir de 1989 (Medici, 1994 e 1995). A deterioração progressiva dos serviços públicos acentuou o deslocamento da clientela usuária do SUS para as diversas modalidades de seguro privado. Esse movimento de mercantilização dos serviços de saúde vem sendo promovido pelo Estado através do desfinanciamento da seguridade social, quer diretamente através do corte nos gastos públicos, quer indiretamente através da política salarial e de emprego (Laurell, 1995).

Cabe também indagar quais as possíveis repercussões das características dos serviços privados de saúde de Salvador, anteriormente analisadas, sobre a organização setorial de serviços e práticas. Do ponto de vista da implementação dos preceitos constitucionais relacionados com a organização de um Sistema Único de Saúde, o crescimento desordenado de estabelecimentos prestadores de serviços entra em contradição com as necessidades da planificação voltada para a resolução de problemas de saúde. Entre analistas de sistemas de saúde, é reconhecida a importância do papel do Estado na regulação e no financiamento das ações de saúde para assegurar tanto a eficácia, quanto a eqüidade (Creese, 1994). Não se trata de excluir o produtor privado de serviços, porém de regulamentá-lo e controlar a sua qualidade.

A análise da experiência internacional pode trazer alguns elementos para a reflexão a esse respeito. No que concerne aos países desenvolvidos, tem-se, por um lado, o modelo americano, considerado como paradigmático de um sistema de saúde financiado pelo seguro saúde stricto sensu privado, que tem sido criticado como excludente e pouco eficiente (Noronha & Ugá, 1995; Hellander et al., 1995).

Em diversos países da Europa oriental e central, como Rússia, Bulgária, Polônia,Tchecoslováquia, entre outros, ocorreram, nos últimos anos, reformas sanitárias caracterizadas por uma rápida privatização, descentralização e criação de um sistema de seguro saúde privado (Banoob, 1994). Uma análise comparativa destes sistemas com aqueles de países da Europa ocidental, como Alemanha, França e Bélgica, revelou que os primeiros apresentam um desempenho inferior aos últimos em termos de indicadores de saúde a despeito de elevado número de médicos e leitos/habitante (Banoob, 1994).

Por outro lado, com o crescimento da renda nacional, verifica-se uma tendência global ao aumento da participação pública nos gastos com saúde, conforme demonstrado por Musgrove (1996) em estudo envolvendo 69 países. A esse respeito, há as experiências bem sucedidas do Canadá e Inglaterra centradas fundamentalmente no financiamento público e na regulamentação estatal sobre o setor privado. Na Inglaterra, problemas relacionados com o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, principalmente no que dizia respeito ao acesso aos serviços especializados, influíram na reforma iniciada em 1991, que introduziu elementos de mercado, mantendo, contudo, o financiamento público. As modificações então iniciadas, embora tenham resultado em maior agilidade para a oferta de alguns serviços, elevaram os custos com a administração do sistema (Ham, 1996).

Já a análise do caso de Quebec revela o potencial de um sistema gerenciado e financiado pelo Estado através do seguro saúde público (Dussault, 1995). Na atual fase de compressões orçamentárias do Canadá, a despeito de existirem defensores da criação de um sistema privado paralelo, principalmente entre os médicos, a manutenção do financiamento público tem apoio da maioria da população (Gray, 1996) e existem diversas propostas de reforma sanitária centradas na introdução de formas de prestação de serviços de saúde menos custosas e em modificações na forma de remuneração dos prestadores de serviços (Angus et al., 1995; Contandriopoulos, 1996).

Em Salvador e provavelmente no resto do Brasil, a magnitude do setor privado independente do financiamento público, cria uma nova realidade para o planejamento em saúde. A organização de serviços e práticas capazes de ter impacto nos níveis de saúde e efetividade no controle das doenças e agravos mais prevalentes requer, nas atuais circunstâncias de desenvolvimento econômico e social do País, a rediscussão das relações entre o público e o privado, bem como um redimensionamento dos dois setores.

 

 

Agradecimentos

 

Os autores agradecem à Secretaria Municipal de Saúde, em particular à subsecretária Neusa Sader, a participação no desenvolvimento do projeto, e à Associação de Hospitais e Serviços de Saúde do Estado da Bahia a colaboração na coleta dos dados. Agradecem também ao prof. Jairnilson Paim e Andre Pierre Contandriopoulos as sugestões.

 

 

Referências

 

ANDREAZZI, M. F. S., 1990. O Seguro Saúde "Sensu-Strictu". Rio de Janeiro: Documento Técnico Preparado para a OPAS (mimeo.)         

ANGUS, D. E.; AUER, L.; CLOUTIER, J. E. & ALBERT, T., 1995. Pour un Système de Soins de Santé Viable au Canada. Projets de Recherche Économique des Université d'Ottawa et Queen's. Ottawa: Université d'Óttawa.         

BANOOB, S. N., 1994. Réforme sanitaire en Europe centrale et orientale: financement public ou privé? Forum Mondial de la Santé, 15:351-357.         

BRAGA, J. C. S. & GOES DE PAULA, 1981. Saúde e Previdência ­ Estudos de Política Social. São Paulo: Cebes-Hucitec.         

CONTANDRIOPOULOS, A. P., 1996. Transformer le système de santé? Ruptures, Revue Transdisciplinaire en Santé, 3:10-17.         

CORDEIRO, H., 1984. As Empresas Médicas. As Transformações Capitalistas da Prática Médica. Rio de Janeiro: Graal.         

CORDEIRO, H., 1991. Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ayuri Editorial.         

CREESE, A., 1994. Les tendances mondiales en matière de réforme des soins de santé. Forum Mondial de la Santé, 15:337-343.         

DEAN, A. G.; DEAN, J. A.; BURTON, A. H. & DICKER, R. C., 1990. Epi Info, Version 5: a Word Processing Database, and Statistics Program for Epidemiology on Micro Computers. Atlanta: Centers for Disease Control.         

DUSSAULT, G., 1995. Lições da reforma do sistema de saúde do Quebéc. In: Sistemas de Saúde. Continuidades e Mudanças (P. M. Buss & M. E. Labra, orgs.), pp. 245-259, São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Editora Fiocruz.         

EIBENSCHUTZ, C., 1995. Apresentação. In: Política de Saúde: o Público e o Privado (C. Eibenschutz, org.), pp. 11-18, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         

ESCOREL, S., 1987. Reviravolta na Saúde: Origem e Articulação do Movimento Sanitário. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.         

GRAY, C., 1996. Visions of our health care future: is a parallel private system the answer? Canadian Medical Association Journal, 154:1.084-1.087.         

HAM, C., 1996. Population-centered and patient focused purchasing: the U.K. experience. The Milbank Quarterly, 74:191-214.         

HELLANDER, I.; MOLOO, J.; HIMMELSTEIN, D. U.; WOOLHANDLER, S. & WOLFE, S. M., 1995. The growing epidemic of uninsurance: new data on the health insurance coverage of americans. International Journal of Health Services, 25:377-392.         

IBGE (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA), 1990. Estatísticas de Saúde. Assistência Médico-Sanitária. Rio de Janeiro: IBGE.         

LAURELL, A. C., 1995. La logica de la privatizacion en salud. In: Política de Saúde: O Público e o Privado. (C. Eibenschutz, org.), pp. 31-48, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         

LEWIS, M. A. & MEDICI, A. C., 1995. Private payers of health care in Brazil: characteristics, costs and coverage. Health Policy and Planning, 10:362-375.         

MEDICI, A. C., 1991. A Medicina de Grupo no Brasil. Rio de Janeiro: OPAS.         

MEDICI, A. C., 1994. Economia e Financiamento do Setor Saúde no Brasil. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.         

MEDICI, A. C., 1995. Necessidades de financiamento do setor saúde no Brasil em 1995. Saúde em Debate, 48:69-76.         

MENDES, E. V., 1993. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In: Distrito Sanitário. As Mudanças das Práticas Sanitárias do SUS (E. V. Mendes, org.), pp. 19-19, São Paulo: Hucitec.         

MPAS (Ministério da Previdência e Assistência), 1988. Relatório de Atividades 1986/87. Brasília: Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps).         

MUSGROVE, P., 1986. Public and Private Roles in Health. Theory and Financing Papers. Washington: World Bank (Discussion Paper 339).         

NORONHA, J. C. & UGÁ, M. A. D., 1995. O sistema de saúde dos Estados Unidos. In: Sistemas de Saúde. Continuidades e Mudanças (P. M. Buss & M. E. Labra, orgs.), pp. 177-218, São Paulo: Hucitec/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         

OLIVEIRA, J. A & TEIXEIRA, S. M. F., 1986. (IM)Previdência Social. 60 Anos de História da Previdência no Brasil. Petrópolis: Vozes/Rio de Janeiro: Abrasco.         

POSSAS, C. A., 1995. A articulação público-privado e o cuidado com a saúde dos pobres: implicações das políticas de ajuste estrutural na América Latina. In: Política de Saúde: O Público e o Privado. (C. Eibenschutz, org.), pp. 49-65, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         

RICHMOND, C., 1996. NHS waiting lists have been a boon for private medicine in the UK. Canadian Medical Association Journal, 154:378-381.         

SILVA, L. M. V., 1990. A Descentralização das Ações de Saúde no Município: O Caso de Camaçari. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.         

TAMEZ, S.; BODEK, C. & EIBENSCHUTZ, C., 1995. Lo público y lo privado, las aseguradoras y la atención médica en México. Cadernos de Saúde Pública, 11:579-587.         

TAYLOR-GOOBY, P., 1996. The future of health care in six european countries: the views of policy elites. International Journal of Health Services, 26:203-220.         

TEIXEIRA, S. F., 1995. Paradigmas da reforma da seguridade social: liberal produtivista versus universal publicista. In: Política de Saúde: O Público e o Privado (C. Eibenschutz, org.), pp. 69-91, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br