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Foi extremamente gratificante e estimulante reler o meu texto após os cuidadosos comentários feitos por tão seleto grupo de estudiosos, que não somente apontaram aspectos não abordados por mim, como esclareceram pontos não suficientemente desenvolvidos no ensaio. Retomar um clássico é sempre um desafio. José Machado Pais (1996), ao escrever sobre o centenário de uma outra obra de Durkheim ­ As Regras do Método Sociológico ­, comemorado há dois anos, perguntava, citando Jean-Michel Berthelot, se não estaríamos a participar de um ritual tribal próprio de eventos comemorativos. Respondia que talvez sim, talvez não. "Talvez sim, considerando que as comemorações são normalmente utilizadas para evocações de caráter mais ou menos ritualístico." Porém, continuava Pais, a releitura do livro "talvez nos permita chegar à conclusão de que o que comemoramos não se esgota no ato da comemoração" (Pais, 1996:85-86). Esta verdade aplica-se, sem dúvida, à obra de Durkheim que analisei ­ O Suicídio, não só no sentido de exaltar as suas virtudes, como também no de apontar as suas deficiências. Isto foi fortemente reconhecido por todos os comentaristas, que se debruçaram sobre o texto e sobre a obra numa leitura que vai muito além das análises por mim realizadas. A representatividade do grupo de especialistas e a forma erudita e detalhada de apresentar as informações e acréscimos ao trabalho reforçaram-me a crença na possibilidade de um trabalho acadêmico compartilhado. As lacunas apontadas no trabalho original, como na forma como foi analisado, evidenciaram que o tema é atual e aberto à pesquisa.

O prof. Roosevelt, com sua experiência psicanalítica, chama a atenção para o próprio conceito de suicídio, e dos limites de uma definição positivista, que tem levado a uma "quase estagnação criativa nos estudos sobre o suicídio". Aponta que, sendo fenômeno ímpar e entretecido numa complexa rede de relações, não se elucida por um único método. A mesma idéia estará presente na abordagem da prof.a Elisabeth, ao inseri-lo no campo mais amplo dos processos de autodestruição; assim como tornou-se referência no comentário da prof.a Ceres, conclamando para uma perspectiva interdisciplinar para a compreensão de tão complexa problemática. Em realidade, é essa perspectiva que acentua os limites das abordagens epidemiológicas, psiquiátricas, antropológicas e sociológicas quando tomadas em si mesmas, e que conduzem o tema a leituras tão particulares. É claro que todos reconhecem o a priori sociológico assumido pelo autor, mas que, após cem anos, deve ser reconsiderado. E as reconsiderações serão conseqüências dos avanços teórico-metodológicos dos vários campos do conhecimento, como, por exemplo, é colocado pelo prof. Castiel, em relação aos estudos epidemiológicos, ao apontar que os avanços metodológicos, computacionais e a modelagem não linear dos anos 90 seriam fundamentais para a reavaliação dos estudos ecológicos e revisão das associações entre variáveis, embora já nos anos 70 Susser tenha citado o estudo de Durkheim como exemplo de "consistência de associações na replicação de estudos".

Sente-se, lendo os comentários, que, independentemente do enfoque mais particular de cada comentarista, fruto da reflexão guiada pela própria especialidade que cada um desenvolve, há pontos comuns, alguns já marcados; mas o que chama a atenção é que todos sentem a necessidade de ampliar a questão, ressituando o suicídio em diversas dimensões que extrapolam a proposta durkheimiana. Nesse sentido, é oportuna a questão apontada pelo prof. Roosevelt sobre os limites das definições de suicídio, a morte e as fantasias criadas a seu respeito. Retoma, com extrema propriedade, o que sempre constituiu uma fragilidade dos estudos sobre o suicídio, ou seja, a imprecisão nas definições e sua conseqüência quando expressa nas estatísticas. Os aportes trazidos pelo comentarista são preciosos no redimensionamento do tema; veja-se, por exemplo, quando toma o caso dos "homicídios precipitados pelas vítimas", ou da enorme contribuição da psicanálise para a melhor compreensão do suicídio egoísta, ou das condutas autodestrutivas antevistas por Durkheim como anômicas. Acrescente-se a esse debate a elaborada classificação que a prof.a Elizabeth propõe sobre a autodestruição humana, repensando a totalidade do processo da violência, tanto relacionado ao indivíduo, como ao coletivo. É importante sublinhar que o empenho da prof.a Elizabeth não se limita ao aspecto formal de catalogar os eventos, e sim o de trazer à tona o caráter epidêmico de destruição que crescentemente envolve a humanidade, cuja presença incomoda, mas que parece tornar-se cada vez mais natural. Eu diria, que, mais do que nunca, a Guernica de Picasso é paradigmática dos tempos modernos, pois o terror que estampa, ao captar os horrores da guerra em 1937, iria reproduzir-se, de maneiras as mais diversas, ao longo deste século. Mas não basta expor o horror às guerras travadas cotidianamente, e sim tentar encontrar algum caminho para que o homem reencontre-se como ser humanizado e ético. Concordo, sim, que o enfrentamento se faça tanto no nível individual, como estrutural e nada teria a acrescentar à profunda e sentida reflexão da prof.a Elizabeth. Interessante é que Durkheim também se volta para a sistematização de suas idéias sobre o suicídio num momento em que a Europa passava por enormes transformações econômicas e sociais, cujas conseqüências já se faziam notar na morbi-mortalidade de uma população exposta aos avanços do capitalismo, que não eram desconhecidos do sociólogo, além de outros acontecimentos que tiveram fortes repercussões em suas aulas e escritos, quais sejam a instituição do divórcio (1884) e a implantação da instrução laica (1882). Como lembra a prof.a Maria Cecília, o século XIX foi marcado pelas conseqüências da Revolução Industrial, e a Durkheim não passou despercebido que as porcentagens de suicídios estavam crescendo de forma regular. Assim, se, de um lado, o projeto intelectual de Durkheim é o de legitimar a sociologia como ciência, estudando o suicídio, como retoma a prof.a Maria Cecília, de outro lado pode ser visto como decorrência de sua própria ideologia. Como escreve Zell (1986:303): "Sua própria ansiedade sobre o que ele sentia ser uma crise contemporânea enfraquecendo a civilização européia pode ter conscientemente ou inconscientemente mobilizado-o a investigar suicídios".

Muitos são os aspectos comentados e que merecem a minha atenção. Nem todos necessitam ser retomados, pela precisão com que foram elaborados. Mas não se pode deixar de destacar a pertinência da observação da prof.a Maria Cecília, quando lembra que críticas ao trabalho de Durkheim procedem do próprio campo das ciências sociais. Assim, a perspectiva compreensivista critica O Suicídio quando este marginaliza o papel do sujeito, dos significados e das intencionalidades. Não voltarei ao texto de Douglas (1970), básico para se entender o significado social do suicídio, mas o que me parece fundamental é que, ao situar essas questões, recoloca-se um ponto central na obra durkheimiana e que perpassa, em especial, o estudo do suicídio: a relação indivíduo-sociedade. "A sociologia durkheimiana", na expressão de Pais (1996:96), "repousa numa definição personificada do indivíduo, ou seja, o indivíduo é sempre um agente socializado e as 'leis sociais' repousam numa 'moralidade' que tende a adequar/subordinar o indivíduo ao corpo doutrinal da sociedade". Tentei mostrar no texto que Durkheim havia atingido com desembaraço o dimensionamento baseado em um paradigma que enfatizava as macroestruturas sobre os fenômenos de nível micro. Não há dúvidas, e concordo plenamente com as observações de muitos dos comentaristas sobre a necessidade de se repensar a relação, e, mais ainda, faço minhas as palavras de Pais (1996: 98), quando escreve: "Se Durkheim hoje vivesse, a sua Sociologia teria, provavelmente de enfrentar o 'mito do indivíduo' (Rivière & Piette, 1990:10) apesar de ­ paradoxo supremo ­ esse mito tentar promover a reciclagem de uma subjetividade ameaçada pela 'homogeneização social'. Será que neste paradoxo assenta, afinal, a coincidência do retorno do indivíduo com a redescoberta de Durkheim?". Mas, de outro lado, o mesmo autor nos encaminha para uma outra face da questão, quando salienta que a sociologia contemporânea ao "centrar-se preferencialmente nos problemas da desordem, das singularidades, das disjunções" (...) "relevasse, afinal, de uma preocupação latente com a ordem? Ou vendo o problema numa outra perspectiva: por que é que o 'retorno do indivíduo' (Touraine, 1984) coincide com a redescoberta de Durkheim?" (Pais, 1996:98).

São muitos os aspectos a merecerem atenção, e, como disse, não pretendo esgotá-los. Mas, dentre aqueles que irei abordar, há um que, sem dúvida, é também nuclear na sociologia de Durkheim, e oportunamente comentado pela prof.a Ondina, da qual eu não discordo. O fato de não ter dado a extensão devida à complexa dimensão assumida na obra de Durkheim sobre a questão da moral e do social pode ter levado a que o seu estatuto não ficasse muito claro, na observação da professora. Assim, retomo o tema, lembrando que há na obra de Durkheim duas fases na evolução de sua análise científica da moralidade. Wallwork (1972), um dos estudiosos desses aspecto, aponta que na primeira fase o sociólogo francês incluía em sua teoria da moralidade a afinidade interpessoal, a obrigação moral e a lealdade ao grupo como constituintes da sua teoria da moralidade. A primeira resultava de sentimentos espontâneos das relações face a face; a segunda, das regras normativas impostas pela consciência coletiva e a terceira, de sentimentos de lealdade aos grupos ou de suas representações. Justamente com O Suicídio, Durkheim inaugurou uma segunda fase, a fase caracterizada por esclarecer e refinar o seu entendimento do fenômeno moral. Neste momento, segundo Wallwork (1972:47), Durkehim cede a referência aos sentimentos naturais e "sua ênfase no Suicídio, é claramente sobre sentimentos evocados pelo grupo como um todo (...) de sentimentos de vinculação e aderência, lealdade e devoção, amor e afeição evocados pelas coletividades". Mais ainda, tanto em O Suicídio, como ao tratar da educação moral, o autor volta a sua atenção para o fato de como a existência social transforma a conduta.

Quanto à distribuição dos suicídios, alguns dados são trazidos pelas prof.as Ondina e Maria Cecília, com interessantes comentários. Em realidade, como cita a prof.a Ondina, a China é o único país no qual a taxa mais elevada de suicídio é entre as mulheres em zonas rurais, sendo de 30,5/100.000 hab., para todas as idades, chegando a 50,0 para as mulheres de 15 a 25 anos. A fim de estabelecer comparações, acrescento alguns dados sobre o suicídio entre as mulheres, mostrando que a França tinha, em média, no período de 1991 a 1994, 11,2/100.000 hab.; em 1994, a Hungria tinha 16,8; o Japão, 10,9; a Finlândia, 11,8; a Suíça, 12,2; a Bulgária, 9,7; em 1993, a Suécia tinha 9,5 e a grande maioria dos demais países com valores ao redor de 4,0/100.000 hab. Certamente, as relações entre gênero e suicídio continuam a merecer estudos específicos.

Outro tema pertinente é o da anomia, ressaltado em muitos comentários, e que na brilhante análise de Heloísa Rodrigues Fernandes (1996:73) é o "legado que Durkheim transmitiu aos habitantes da modernidade para que pudessem auto-refletir-se numa imagem que lhes desse sentido". E, como acrescenta a socióloga, "é a vedete da Sociologia; freqüenta, e com crescente insistência, as interpretações de outros campos teóricos como, por exemplo, a psicanálise; assina presença quase diária na mídia e começa a invadir a linguagem do cotidiano". Sem dúvida, como afirma a socióloga, "a anomia teria passado a ocupar o lugar de onde foi desalojada a autonomia". Não entrarei nos diversos aspectos que assume o conceito de anomia na obra de Durkheim, mas devo dizer que, no estudo do suicídio, há anomia quando as ações dos indivíduos não são mais reguladas por normas claras e coercitivas. Além disso, na medida em que os sistemas sociais tornam-se mais complexos, mais crescem a individualização, o desregramento e, como afirma Fernandes (1996:76), "indica o relaxamento da inscrição da sociedade no psiquismo". Nesse sentido, o caso dos indígenas citado pelo prof. Roosevelt é exemplar e as reflexões da prof.a Ondina sobre os imigrantes são inquietantes; a referência do prof. Castiel a respeito da patologização do corpo sócio-político não pode ser esquecida, quando, na atualidade, os elos da sociabilidade rompem-se seguidamente, em um espaço, que, como analisa a prof.a Elizabeth, é dominado por uma 'cultura tóxica' de extrema violência.

Considero agora a questão levantada com tanta erudição pelo prof. Djalma, na qual a arte, a história, a filosofia e a epistemologia se cruzam ao abordar o evento suicídio, e um caso particular à história deste país ­ o do presidente Vargas. O prof. Djalma centraliza a questão em torno da teoria aristotélica de causa, que não tem sido estranha aos estudiosos da obra de Durkheim, entre eles Douglas (1970). Durkheim não menciona diretamente as concepções aristotélicas de causalidade, e implicitamente assume as distinções do filósofo grego, vigentes no século XIX, ou seja, que as 'causas eficientes' eram as causas reais. No caso do suicídio, o indivíduo deve ser considerado como a causa materia, mas somente os fatores são causas eficientes ou as causas realmente ativas do suicídio, ou, como salienta Douglas (1970:349), "somente os fatores sociais podem ser usados para dar uma explicação científica do suicídio". Mesmo considerando que Durkheim não trata do suicídio como um fenômeno observável (Douglas, 1970:349), ou seja, em seu caráter individual, não gostaria de deixar sem resposta a pergunta do prof. Djalma, que quer saber se, no caso Vargas, pode-se falar em suicídio ou em homicídio estrutural. Em minha opinião, o evento deve ser considerado como suicídio. Havia, como se sabe, uma conjuntura nacional que, naquele momento, forçava-o a adotar uma definição para solucionar a crise instalada. Como o próprio Prof. Djalma assinala, "haveria várias possibilidades para o desfecho da crise"; Vargas recorre ao suicídio. Esta, aliás, parece ter sido uma solução já cogitada por Vargas em duas ocasiões, como narra Veríssimo (1963:715-716). Em 1930, no dia 3 de outubro, quando governador do Rio Grande do Sul, e em 1932, já Presidente, em uma suposta conversa com um correligionário político acerca da Revolução Constitucionalista e da possibilidade de ser exigida a sua renúncia.

Ao chegar ao final destas considerações, quero agradecer novamente a generosidade dos comentaristas, cujas valiosas observações engrandeceram e conferiram valor a este trabalho.

 

 

Referências

 

DOUGLAS, J. J., 1970. The Social Meanings of Suicide. New Jersey: Princeton University Press.

FERNANDES, H. R., 1996. Um século à espera de regras. Tempo Social, 8:71-83.

PAIS, J. M., 1996. Das regras do método, aos métodos desregrados. Tempo Social, 8:85-11.

RIVIÈRE, C. & PIETTE, A., 1990. Nouvelle Idoles, Noveaux Cultes. Paris: Éditions L'Harmattan.

TOURAINE, A., 1984. Le Retour de L'acteur. Essai de Sociologie. Paris: Fayard.

VERÍSSIMO, E., 1963. O Tempo e o Vento ­ III ­ O Arquipélago. 3o tomo, Porto Alegre: Globo.

WALLWORK, E., 1972. Durkheim: Morality and Milieu. Cambridge: Harvard University Press.

ZELL, M., 1986. Suicide in pre-industrial England. Social History, 2:303-317.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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