EDITORIAL EDITORIAL

 

O desafio da autoria

 

 

O influente periódico American Journal of Public Health (AJPH) atualmente adota como política editorial limitar em seis o número máximo de autores por artigo (acima desse número, o AJPH exige justificativa por escrito). Para muitos, tal regra pode parecer carregada de elevado grau de autoritarismo. Afinal, quem melhor que os próprios participantes de uma investigação para definir quem e quantos devem figurar como autores e em que ordem?

A política editorial do AJPH insere-se numa discussão mais ampla acerca da autoria de trabalhos científicos1,2,3, que só recentemente vem recebendo alguma atenção no Brasil4,5. Há uma situação de 'crise' de tal magnitude, que um número crescente de editores vêm trazendo para si a responsabilidade de monitorar e exercer maior controle sobre a questão da autoria. Nesse tocante, seguem os quesitos propostos internacionalmente no que tange à qualificação de um determinado pesquisador a autor/co-autor de um trabalho científico, quais sejam, participação na concepção/desenho e/ou análise/interpretação, bem como redação6,7. Na área da saúde, além do AJPH, outras revistas vêm implementando políticas editoriais que objetivam um maior controle sobre o estabelecimento da autoria. Por exemplo, The Lancet e British Medical Journal não somente exigem a apresentação de um documento no qual estejam explicitadas e justificadas as contribuições de todos aqueles que constam como autores (independentemente do número), como também publicam como nota (antes das referências bibliográficas) a contribuição específica de cada um para o trabalho.

As formas de monitoramento e controle de autoria visam, em grande parte, coibir o que na língua inglesa é chamado gift authorship8,9, a que aqui me referirei como 'autoria de presente', na falta de uma tradução mais adequada. A expressão aplica-se àqueles indivíduos cuja contribuição para a investigação, mesmo que bastante periférica, ainda assim se consubstancia na forma de co-autoria, conferindo mérito não inferior àquele recebido pelos pesquisadores que efetivamente conceberam, obtiveram financiamentos, executaram e redigiram o trabalho. Análises recentes revelam que, por vezes, quase metade dos autores de um determinado artigo não tiveram participação suficiente que justificasse co-autoria1. Não se deve deixar de mencionar que a autoria de presente vem fortemente associada à noção de reciprocidade: um determinado investigador que oferece a um colega uma autoria de presente coloca-o na condição de retribuir na mesma moeda no futuro. Tal rede de reciprocidades pode gerar carreiras científicas altamente 'produtivas', mesmo que não embasadas na efetiva produção de pesquisas originais.

Deve-se mencionar que inovações em políticas editoriais concernentes à autoria também se relacionam ao aumento no número de casos jurídicos em importantes universidades européias e norte-americanas envolvendo disputas, por vezes acirradas, relacionadas à falsificação de dados, plágio e roubo de idéias, entre outros10. Em meio a dezenas ou centenas de nomes, supostamente autores de um determinado trabalho, como identificar responsabilidades?

Infelizmente as formas como a produção científica é avaliada em instituições de pesquisa e agências de financiamento, menos que coibir, estimulam a proliferação de autorias de presente, uma vez que maior ênfase é comumente conferida à quantidade. Os novos desafios na prática da autoria e co-autoria possivelmente irão ocupar crescente espaço na agenda de editores e pesquisadores no futuro visando salvaguardar os princípios éticos da edição e publicação de trabalhos científicos.

 

Carlos E. A. Coimbra Jr.
Co-Editor

 

1 CBE Views, 21:131-133, 1998; 2 Am J Publ Health, 88:824-831, 1998; 3 JAMA, 280:222-242, 1998; 4 Cad Saúde Pública, 9:115-116, 1993; 5 Jornal de Ciência Hoje, números 273 e 276, 1993; 6 Bol Of Sanit Panam, 107:422-437; 7 Ann Intern Med, 126:36-47; 8 Brit Med J, 309:1456-1457, 1994; 9 JAMA, 271:469-471, 1994; 10 Cad Saúde Pública, 12:440-441, 1996.

 

 

The challenge of authorship

 

 

The influential periodical American Journal of Public Health (AJPH) currently adopts an editorial policy whereby it limits the number of authors of articles to six (above this limit, AJPH requires a justification in writing). Many people may feel that such a rule is steeped in "authoritarianism". After all, one might ask, who better than the participants in a research endeavor themselves to define who and how many should be listed as authors, and in what order?

The editorial policy adopted by AJPH is part of a broader discussion on authorship in scientific studies1,2,3, which only recently has begun to receive attention in Brazil4,5. There is a "crisis" situation of such magnitude that a growing number of editors have taken it upon themselves to monitor and exercise greater control over the issue of authorship. In this regard, they follow the items proposed worldwide pertaining to the qualifications of a given researcher as author or co-author of a scientific publication, i.e., participation in the study's concept/design and/or analysis/interpretation, as well as in writing up the article6,7. In the health field, in addition to AJPH, other journals have implemented editorial policies aimed at greater control over authorship criteria. For example, The Lancet and British Medical Journal not only require that a document be submitted stating and justifying the contributions of all those listed as authors (regardless of the number), but they also publish the specific respective contributions to the work in the form of a note (before the bibliographical references).

The forms employed for monitoring and controlling authorship basically aim to discourage "gift authorship"8,9. The term applies to individuals whose contribution to the research, albeit quite marginal, is nonetheless claimed in the form of co-authorship, conferring no less merit than that accruing to the researchers who actually conceived of, obtained funding for, carried out, and wrote up the work. Recent analyses have shown that in some cases nearly half of the authors of a given article had not participated in such a way as to justify co-authorship1. Neither could one fail to mention that "gift authorship" is closely associated with the notion of reciprocity: a given researcher offers a colleague a "gift authorship", placing him/her under the obligation of paying back "in kind" in the future. Such a network of reciprocities can generate highly "productive" scientific careers, despite their lacking substance in the actual production of original research.

One should also mention that innovations in editorial policies for authorship are also related to an increase in the number of legal cases in major European and North American universities, involving what are often heated disputes regarding the alleged falsification of data, plagiary, theft of ideas, and other issues10. In the midst of dozens or even hundreds of names of purported "authors" of a given study, how does one identify responsibilities?

Unfortunately, the ways by which scientific production is evaluated in research institutions and funding agencies stimulate the proliferation of "gift authorship" rather than discouraging it, given that the emphasis is usually placed on quantity. New challenges in the practice of authorship and co-authorship may well gain greater space on the agendas of editors and researchers in the future, with a view towards safeguarding the ethical principles of editing and publishing scientific work.

 

Carlos E. A. Coimbra Jr.
Co-Editor

 

1 CBE Views, 21:131-133, 1998; 2 Am J Publ Health, 88:824-831, 1998; 3 JAMA, 280:222-242, 1998; 4 Cad Saúde Pública, 9:115-116, 1993; 5 Jornal de Ciência Hoje, numbers 273 and 276, 1993; 6 Bol Of Sanit Panam, 107:422-437; 7 Ann Intern Med, 126:36-47; 8 Brit Med J, 309:1456-1457, 1994; 9 JAMA, 271:469-471, 1994; 10 Cad Saúde Pública, 12:440-441, 1996.

 

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br