OPINIÃO OPINION

 

Dóra Chor 1


Saúde pública e mudanças de comportamento: uma questão contemporânea

Public health and behavior modification: a contemporary issue

 

1 Departamento de Epidemiologia, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil.   Abstract Most cardiovascular disease risk factors can be modified through life-style changes. Choices of habits and behavior are in fact heavily influenced by concepts of normality and social values. However, social influences fail to fully explain these choices, insofar as health-related habits are also shaped by personal experience. The main limitations of public health practice can probably be found at this subjective level. This article emphasizes the need to consider determinants of human behavior at different levels, increasingly important for strategies to promote health and prevent disease, or at least delay its onset. The primary focus is to influence rules and laws aimed at protecting life. The article also discusses possible strategies for translating scientific knowledge into public health action, avoiding the restriction to the "healthy life" regulatory role. Finally, participation by public health professionals is suggested in places where population groups share life experiences, such as workplaces, schools, and churches, developing approaches which include those experiences as well as fears and hopes related to health. Scientific facts might thus be transformed into more familiar elements of everyday life.
Key words Life Style; Behavior; Cardiovascular Diseases

Resumo O artigo reconhece que alguns dos principais fatores de risco para doenças cardiovasculares são passíveis de alteração por meio de mudanças de hábitos de vida. Conceitos sociais de normalidade influenciam escolhas destes comportamentos, que são aparentemente individuais. No entanto, a dimensão coletiva não esgota a questão, já que, embora os hábitos relacionados à saúde sejam culturalmente mediados, tomam também formas bastante pessoais. É nesta dimensão que se encontram, provavelmente, as maiores lacunas do "fazer" da epidemiologia, ao não levar em conta o caráter não racional das escolhas de comportamento. Aponta-se a necessidade de integrar os vários determinantes do comportamento humano, cada vez mais importantes para estratégias de promoção da saúde e prevenção de doenças. O artigo discute estratégias para traduzir em ação preventiva o conhecimento gerado no campo da Saúde Pública. Em primeiro lugar, favorecer normas e leis que que protejam e valorizem a vida. Em outro nível, sugere a presença de profissionais de saúde pública em ambientes de trabalho e escolas, onde grupos compartilham experiências de vida, reconhecendo seus temores e esperanças em relação à saúde, para que as descobertas científicas possam se tornar menos estranhas ao cotidiano de cada um.
Palavras-chave Estilo de Vida; Comportamento; Doenças Cardiovasculares

 

 

Introdução

 

Parece não haver mais dúvida de que o hábito de fumar, o consumo de álcool e a obesidade, estes últimos por meio da elevação dos níveis de pressão arterial, são preditores da mortalidade por todas as causas (Kornitzer & Goldberg, 1993). Além destes fatores, também o colesterol sérico, que na maioria das vezes está elevado em função da dieta, prediz a mortalidade por doença coronariana (Keys, 1970). De acordo com estes e outros exemplos (Aids e diversas neoplasias relacionadas à dieta), a "ocorrência da maioria das doenças está relacionada com o que as pessoas comem e bebem, com suas atividades diárias, e seu ambiente físico e social" (Rose, 1992). Neste caso, a promoção da saúde, a prevenção de algumas enfermidades, ou pelo menos, seu aparecimento mais tardio, poderiam ser alcançados por meio da redução da prevalência destes fatores, que são, teoricamente, passíveis de modificação.

Mediante que processos o conhecimento gerado no campo da saúde pública se traduz em ação preventiva? No caso dos fatores de risco em questão, relacionados à ocorrência das doenças cardiovasculares, a informação, nível de escolaridade e acesso a bens e serviços não têm sido suficientes para causar e manter mudanças de hábitos e atitudes. Por exemplo, estudo recente realizado entre funcionários de um banco estatal, no Estado do Rio de Janeiro, estimou a prevalência de sedentarismo em 57%, o consumo diário ou semanal de bebidas alcoólicas em 44%, enquanto 30% eram fumantes e 35% apresentavam sobrepeso ou obesidade (índice de massa corporal > 25 kg/m2 ­ Chor, 1997). Considerando-se que mais de 90% dos funcionários apresentavam escolaridade de nível superior (completo ou incompleto), e ainda seu acesso praticamente irrestrito aos Serviços de Saúde credenciados ou de livre escolha, tais prevalências podem ser consideradas elevadas. No caso do conjunto da população brasileira, os dados disponíveis sugerem diminuição da prevalência de tabagismo (Griep, 1998), e não há estimativas nacionais em relação aos outros comportamentos.

Conceitos de "normalidade" e "comportamentos socialmente desejáveis" influenciam escolhas aparentemente individuais, fortemente relacionadas aos hábitos coletivos. Baseando-se nos resultados de 52 grupos populacionais, relativos a 32 países, Rose (1992) estimou alta correlação entre o comportamento de cada um destes grupos e seus "desviantes". Assim, dado o consumo médio de álcool de determinado grupo, é possível prever a prevalência de consumidores excessivos de álcool. De forma semelhante, a prevalência de obesidade é função do peso médio de cada população, assim como a média de pressão arterial de cada grupo também revelou-se boa preditora do número de hipertensos. Não é possível, portanto, separar hábitos e valores da sociedade e de seus "desviantes", "já que um pertence ao outro, goste a sociedade ou não" (Rose, 1992). Estes resultados não são tão óbvios quanto podem parecer à primeira vista, já que contradizem o senso comum, que atribui a responsabilidade do "desvio" somente ao indivíduo, sem que nenhuma parcela seja compartilhada com seu grupo social. As implicações destes resultados empíricos nas estratégias que visam mudanças de comportamento populacional são imediatas, porque revelam a inter-relação entre os indivíduos.

O primeiro nível de intervenção é, portanto, o de influenciar valores e condições sociais que não só sustentam mas favorecem hábitos arriscados, com leis e normas que protejam e valorizem a vida. No entanto, a dimensão coletiva não esgota a questão. Embora hábitos e comportamentos relacionados à saúde sejam culturalmente mediados, tomam também formas bastante pessoais. É nesta dimensão que se encontram, provavelmente, as maiores lacunas do "fazer" da saúde pública, ao não levar em conta o caráter não racional das escolhas de comportamento, especialmente quando se trata do prazer ligado ao hábito de fumar, beber, comer ou à vida sexual. É preciso então tentar compreender os diversos determinantes do comportamento humano, entre os quais a epidemiologia acena com probabilidades de adoecimento (e que portanto, pode ou não ocorrer), a longo prazo, quando não se tem nenhuma garantia de ainda estar vivo (Castiel, 1996). Por exemplo, profundas alterações nos hábitos da população inglesa ocorreram após dez casos da doença de Creutzfeldt-Jakob, "possivelmente" relacionados à encefalopatia espongiforme bovina (EEB). O número reduzido de casos assim como a ausência de "certeza" científica de associação entre as duas doenças não justificariam, à primeira vista, a drástica redução de consumo de carne bovina. Tal mudança de comportamento não havia ocorrido após mais de uma década de comunicações sobre a associação entre o consumo de gordura e doenças responsáveis por boa parte da mortalidade britânica, como o câncer de mama e as enfermidades cardiovasculares (Marmot, 1996). Revisões e questionamentos freqüentes de "certezas" estabelecidas, como a relação entre o consumo de sal e a elevação da pressão arterial (McCarron, 1998), embora inerentes ao avanço do conhecimento, contribuem para que resultados de estudos científicos sejam apenas uma parte da "racionalidade" (ou ausência de) embutida na decisão de mudar comportamentos.

Retomando a pergunta inicial: como elaborar intervenções apropriadas, sem nos tornarmos reguladores do que deve ou não deve ser feito ­ verdadeiros vigilantes do prazer alheio ­ para que se leve uma "vida saudável" (com todos os seus diferentes significados para cada grupo ou cada indivíduo)?

Experiências (Wagner et al., 1984; Jeffery et al., 1993) sugerem que as descobertas científicas podem ser traduzidas e suas propostas implementadas por meio de grupos populacionais que compartilham experiências de vida onde há "relações que influenciam idéias, normas e condutas" (Castiel, 1996:98). "Trata-se de contextualizar estratégias de prevenção. O risco da Aids, por exemplo, é apenas mais um, inserido num cotidiano de violência, para adolescentes pobres, que vivem no Rio de Janeiro" (Merchán-Hamman, 1995:477). Assim, pensar na prevenção da doença, neste grupo, requer estratégias adequadas a esta realidade específica, de indivíduos que compartilham o risco, mas podem vir também a compartilhar formas de evitá-lo.

Ambientes coletivos podem ser especialmente adequados para a elaboração e implantação das ações de saúde, visto que podem ser ajustadas a cada contexto específico. Desse modo, o trabalho dos profissionais de saúde pública é cada vez mais necessário em escolas, ambientes de trabalho ou moradia, grupos religiosos ou de outra natureza. Métodos elaborados por Paulo Freire (Minkler & Cox, 1980), na área de educação, podem se revelar uma fonte rica de idéias e abordagens por meio das quais seja possível atingir os indivíduos, partindo da compreensão de sua experiência de vida, seu vocabulário, seus temores, esperanças e anseios frente à saúde ou, em última análise, frente à vida e à morte.

 

 

Referências

 

CASTIEL, L. D., 1996. Força e vontade: aspectos teórico-metodológicos do risco em epidemiologia e prevenção de HIV/AIDS. Revista de Saúde Pública, 30:91-100.         

CHOR, D., 1997. Perfil de Risco Cardiovascular de Funcionários de Banco Estatal. Tese de Doutorado, São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.         

GRIEP, R. H.; CHOR, D. & CAMACHO, L. A. B., 1998. Tabagismo entre trabalhadores de um Banco Estatal. Revista de Saúde Pública, 32:533-40.         

JEFFERY, R. W.; FORSTER, J. L.; FRENCH, S. A.; KELDER, S. H.; LANDO, H. A.; McGOVERN, P. G.; JACOBS, D. R. & BAXTER, J. E., 1993. The healthy worker project: a work-site intervention for weight control and smoking cessation. American Journal of Public Health, 83:395-401.         

KEYS, A., 1970. Coronary heart disease in seven countries. Circulation, 41(Sup. 1):1-211.         

KONITZER, M. & GOLDBERG, R., 1993. Introduction. Cardiology, 82:85-88.         

MARMOT, M. G., 1996. Editorial: From alcohol and breast cancer to beef and BSE ­ Improving our communication of risk. American Journal of Public Health, 86:921-923.         

McCARRON, D. A., 1998. Diet and blood pressure ­ the paradigm shift. Science, 281:933-934.         

MERCHAN-HAMMAN, E., 1995. Grau de informação, atitudes e representações sobre o risco e a prevenção da AIDS em adolescentes pobres do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 11: 463-479.         

MINKLER, M. & COX, K., 1980. Creating critical consciousness in health: applications of Freire's philosophy and methods to the health care setting. International Journal of Health Services, 10:311-322.         

ROSE, G., 1992. The Strategy of Preventive Medicine. New York: Oxford University Press.         

WAGNER, E. H.; JAMES, S. A.; BERESFORD, A. A.; STROGATZ, D. S.; GRIMSON, R. C.; KLEINBAUM, D. G.; WILLIAMS, C. A.; CUTCHIN, L. M. & IBRAHIM, M. A., 1984. The edgecombe county high blood pressure control program: I. correlates of uncontrolled hypertension at baseline. American Journal of Public Health, 74:237-241.         

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