DEBATE DEBATE

 

 

Kenneth Rochel de Camargo Jr.

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Debate sobre o artigo de Ana Maria C. Aleksandrowicz

Debate on the paper by Ana Maria C. Aleksandrowicz

 

 

Ao iniciar meu comentário sobre o artigo proposto pelos editores de Cadernos de Saúde Pública para um debate, parto da constatação de que o tema é complexo e extenso para justificar minha opção de centrar minha intervenção no exame de um aspecto, qual seja, o da possível contribuição de Sokal & Bricmont para discussões no âmbito da Saúde Coletiva.

Escolhi este tema por conta de minha reação inicial, de absoluta perplexidade, ao receber o texto em questão, que propõe ser possível uma leitura destes autores que permitiria "(...) focar alguns aspectos de sua proposta de interesse para a Saúde Pública" (p. 3). Meu estado inicial de perplexidade manteve-se após seguidas leituras tanto do texto quanto do livro em questão, em particular, por afirmar a autora que uma das críticas pertinentes de Sokal & Bricmont seria destinada ao "(...) relativismo epistêmico/cognitivo (oriundo da filosofia e sociologia), especificamente a idéia de que a moderna ciência não é mais que um 'mito', uma 'narração', uma 'construção social', entre muitos outros (...)" (p. 4), e mais ainda, que os mesmos estariam de alguma forma abordando a inter-relação entre disciplinas (p. 4).

Faço uma leitura radicalmente diferente daquela que a autora propõe, a qual passo a comentar a seguir.

Em primeiro lugar, gostaria de discutir o que a autora supõe ser uma crítica válida, àquilo que chamam, ela, Sokal & Bricmont, de "relativismo epistêmico/cognitivo". A posição destes autores está expressa no capítulo 3 de seu livro. Ali verifica-se que, sob essa rubrica, os autores pretendem livrar a História e a Filosofia das Ciências de qualquer pretensão de questionamento do produto das últimas, a começar por Hume e passando por Quine, Popper e Kuhn até chegar ao grupo que denomina "pós-modernos". Não seria possível examinar em detalhe este capítulo no espaço de que disponho aqui; limitar-me-ei portanto a algumas considerações de ordem geral. Em primeiro lugar, uma série de afirmações de Sokal & Bricmont permitem identificar seu claro comprometimento com uma forma radical de realismo objetivista (apesar de algumas afirmações contraditórias), como, por exemplo, ao criticar Latour por deslizar "(...) da 'representação da natureza' na primeira metade da frase para 'natureza' tout court na segunda metade". Isto se repete em um comentário sobre um livro de Fourez, quando dizem que "O texto confunde fatos com afirmação de fatos". Ora, a posição dos autores corresponde a uma dada corrente filosófico-epistemológica, mas será que simplesmente afirmá-la como tal automaticamente invalida qualquer interpretação filosófica diferente, como, por exemplo, a do neopragmatismo? Gostaria de colocar como contra-exemplo desta concepção um autor como Ludwik Fleck (1979), cujo trabalho, a começar pelo próprio título de seu livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico, argumenta de modo convincente contra a distinção radical entre "fatos" e "afirmação de fatos". Ou ainda, o conceito Bachelardiano de fenomenotécnica (Bachelard, 1971) também apontaria, a meu ver, para a ingenuidade desta distinção, na medida em que os "fatos" da ciência são cada vez mais os "fenômenos" produzidos em laboratórios, que só se tornam inteligíveis a partir de sua localização em uma complexa rede de teorias e procedimentos técnicos.

O mesmo tipo de equívoco surge nos comentários sobre Kuhn, como se vê, por exemplo, na afirmação de que "(...) as mudanças de paradigma, pelo menos na maioria dos casos desde o advento da moderna ciência, não ocorreram por razões totalmente irracionais". Ora, parece-me que a démarche de Kuhn vai em direção totalmente oposta, a de afirmar que estas mudanças não são totalmente racionais, mas a forma como esta idéia é exposta é característica persistente na discussão de Sokal & Bricmont neste capítulo: a construção de posição caricata para os adversários de suas idéias, que pode então facilmente ser desmontada.

Mas adiante, neste capítulo, as dificuldades criadas tanto pelo realismo de Sokal & Bricmont quanto pela sua estratégia de construção de ogros a partir dos moinhos de vento dos textos alheios, fica nítida quando tenta descartar aquilo que chamam de "versão radical da história da ciência de Kuhn", pois esta seria "auto-refutável". Segundo sua argumentação, como a história coleta dados de forma pelo menos análoga aos métodos empregados nas ciências naturais, se estas últimas não dispõem de um referente fixo, tampouco o terá a primeira, e Kuhn serrou o galho onde sentava. Novamente, isto só será um problema se se persiste em uma visão objetivista, representacional, do que seja fazer ciência. Se, ao contrário, assumirmos que fazemos um conjunto de asserções que em determinado momento nos parecem razoáveis, à luz do que reconhecemos como evidências empíricas e teóricas aceitáveis, tanto a história de Kuhn quanto a física de Sokal & Bricmont podem repousar confortavelmente sobre afirmações provisoriamente aceitas como verdadeiras (como exemplo de perspectiva reflexiva que incorpora as contribuições de Kuhn, ver Epstein, 1988).

Ao contrário da autora do artigo, portanto, não vejo pertinência na crítica sokal-bricmontiana ao que estes denominam relativismo, nem vejo neste o risco que os mesmos apontam, em outro equívoco, de que a crítica a uma visão fundacionista da ciência conduziria a uma "apatia teórica" (posso pragmaticamente optar por determinado curso de ação, por julgá-lo mais convincentemente demonstrado, mesmo sem ter que necessariamente assumir que o mesmo é representação acabada do real, tal como verdadeiramente é); parece-me inversamente que o risco de colocar as produções da ciência além de qualquer crítica (e não alimentemos ilusões; é disto que se trata) é potencialmente muito mais perigoso, em especial na área de Saúde Coletiva, na medida em que sanciona intervenções sociais com base em pressupostos fundamentados pela ciência. Veja-se, por exemplo, quanto tempo foi perdido na implementação de medidas eficazes de combate à epidemia de HIV/AIDS por conta da associação feita, de modo excludente, com o homossexualismo masculino ou, ainda, do quanto este último tem sido discriminado também com base em asserções pretensamente "científicas".

Mas a maior dificuldade que tenho em considerar a possibilidade de recolher qualquer contribuição da extensa diatribe desses autores reside na ambigüidade com que caracterizam suas intenções, dedicando-se mais a falar do que não pretendem. Por exemplo, após apresentar a genealogia do texto que produziram, na página 10 do seu livro colocam-se a pergunta: "Mas o que pretendemos exatamente? Nem oito nem oitenta." Depois de atacar um conjunto de autores de língua francesa, terminam dizendo que "Não pretendemos dizer que isto invalida o restante de sua obra, sobre a qual não emitimos julgamento", embora mais a frente esclareçam que "[p]orém, quando a desonestidade intelectual (ou flagrante incompetência) é descoberta num trecho - mesmo marginal - do texto de alguém, é natural querer examinar mais criticamente o restante de seu trabalho. Não queremos prejulgar os resultados de tal análise, mas simplesmente remover a aura de profundidade que por vezes impediu estudantes (e professores) de empreendê-la" (p. 21). Ou seja, ainda que obliquamente, há sim, de fato, o julgamento depreciativo que o tempo todo afirmam não fazer.

Voltando ao prefácio, mais adiante, declaram: "Temos objetivos mais amplos em mente, mas não necessariamente aqueles a nós atribuídos" (p. 11), e prosseguem sem esclarecer efetivamente que objetivos grandiosos seriam esses. A definição mais clara surge já no final do livro, em um dos apêndices, de autoria apenas de Sokal, quando este declara explicitamente que "[a]ntes, meu interesse é explicitamente político: combater o discurso pós-modernista/pós-estruturalista/social-construtivista atualmente em moda - e mais genericamente a tendência para o subjetivismo - que é, acredito, prejudicial para os valores e futuro da esquerda" (p. 287).

Trata-se portanto de uma luta política, onde Sokal lançou mão de atos eticamente discutíveis, como submeter uma paródia, como se fosse um artigo, a determinada revista, e neste sentido não penso, como a autora do artigo, que se deva "propor algo em troca", na medida em que Sokal & Bricmont não parecem, eles mesmos, interessados em um diálogo. Por este mesmo motivo, não acredito que haja nestes autores quaisquer lições a extrair sobre multi, inter, trans ou pluridisciplinariedade. Citando Foucault, um dos autores, aliás, criticados de modo particularmente superficial por Sokal & Bricmont: "No intercâmbio sério de perguntas e respostas, no trabalho de elucidação recíproca, os direitos de cada pessoa são de algum modo imanentes a discussão. Derivam da situação de diálogo. (...) Perguntas e respostas dependem de um jogo, um jogo que é ao mesmo tempo prazeroso e difícil, no qual cada um dos dois parceiros se compromete a só usar os direitos que lhe são dados pelo outro e pela aceitação da forma de diálogo. O polemista procede baseado nos privilégios que tem de antemão e nunca vai questionar. (...) O polemista assume uma legitimidade que por definição é negada a seu adversário" (Rabinow, 1999:17-18).

Do ponto de vista político, por fim, prefiro acompanhar uma lição de Pierre Thuillier, que afirmou que "[s]e ensinarmos as pessoas a respeitar demais a ciência, estaremos minando sua possibilidade de criticar a tecnocracia" (Thuillier, 1989:23).

 

BACHELARD, G., 1971. A Epistemologia. Lisboa: Edições 70.

EPSTEIN, I., 1988. Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Ática.

FLECK, L., 1979. Genesis and Development of a Scientific Fact. Chicago: University of Chicago Press.

RABINOW, P., 1999. Antropologia da Razão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

SOKAL, A. & BRICMONT, J., 1999. Imposturas Intelectuais. Rio de Janeiro: Editora Record.

THUILLIER, P., 1989. Entrevista. Ciência Hoje, 9:18-23.

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