NOTA RESEARCH NOTE

 

 

Alessandra A. Guarneri1
Maria das Graças Carvalho2

Marcos Horácio Pereira3
Liléia Diotaiuti1


Potencial biológico do Triatoma brasiliensis  

Biological potential of Triatoma brasiliensis

 

 1 Centro de Pesquisas René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz. Caixa Postal 1743, Belo Horizonte, MG 30190-002, Brasil.
2 Faculdade de Farmácia, Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Olegário Maciel 2380, Belo Horizonte, MG 30180-112, Brasil.
3 Departamento de Parasitologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais. Caixa Postal 2486, Belo Horizonte, MG 31270-901, Brasil.
  Abstract Biological and physiological parameters of Triatoma brasiliensis, Triatoma infestans, and Triatoma pseudomaculata were studied and compared. T. brasiliensis, reared on mice, showed a faster evolutionary cycle from first stage to adult and higher fecundity, when compared to the other species. T. infestans showed the fastest blood intake in both hosts tested, followed by T. brasiliensis and T. pseudomaculata. Clotting tests using salivary gland extracts of T. brasiliensis presented intermediary values of anti-clotting activity when compared to T. infestans and T. pseudomaculata.
Key words Chagas Disease; Triatominae; Triatoma brasiliensis; Insect Vectors

 

Resumo Foram estudados alguns parâmetros biológicos e fisiológicos do Triatoma brasiliensis em comparação com o Triatoma infestans e com o Triatoma pseudomaculata. O T. brasiliensis, alimentado em camundongos, apresentou um ciclo evolutivo de ninfa de primeiro estádio a adulto mais rápido e uma fecundidade maior quando comparado às demais espécies. O T. infestans apresentou a maior velocidade de ingestão sangüínea nos dois hospedeiros testados, seguido pelo T. brasiliensis e pelo T. pseudomaculata. Os testes de coagulação nos quais foram utilizados extratos de glândulas salivares de T. brasiliensis apresentaram valores de atividade anticoagulante intermediários entre os de T. infestans e os de T. pseudomaculata.
Palavras-chave Doença de Chagas; Triatominae; Triatoma brasiliensis; Insetos Vetores

 

 

Introdução

 

A densidade triatomínica intradomiciliar é fator importante para que a espécie seja um transmissor eficiente da doença de Chagas, uma vez que a transmissão por meio de dejeções é relativamente difícil de ocorrer (Martins, 1968). De maneira geral, o tamanho da população de triatomíneos dentro do domicílio humano está relacionado com o número de hospedeiros disponíveis. Um aumento na densidade de triatomíneos induz a uma maior percepção das picadas sofridas pelo hospedeiro, o que provavelmente diminui a quantidade média de sangue ingerido por ocasionar interrupções mais freqüentes do repasto sangüíneo (Schofield et al., 1986). Essa redução na tomada de sangue acarreta um prolongamento do estádio ninfal, redução da fecundidade das fêmeas e um aumento da probabilidade de dispersão pelo vôo dos adultos, e esses mecanismos atuariam conjuntamente na regulação da densidade populacional dos triatomíneos (Schofield, 1985). Assim, a interação do triatomíneo com o hospedeiro deve regular sua densidade populacional modulando a disponibilidade do alimento.

Outra implicação da melhor exploração do recurso alimentar pelo triatomíneo estaria relacionada com a dinâmica de dejeções e, conseqüentemente, com a transmissão do Trypanosoma cruzi. Segundo Trumper & Gorla (1991), o momento da dejeção não só depende da espécie do triatomíneo como também da quantidade de sangue ingerido, pois os barbeiros que tomam um repasto sangüíneo maior tendem a defecar muito mais rapidamente do que aqueles que fazem um repasto menor.

Os triatomíneos são artrópodes solenofágicos (Lavoipierre & Hamachi, 1961), retirando o sangue diretamente dos vasos sangüíneos (vênulas e arteríolas). Os eventos que ocorrem no processo de alimentação incluem detecção do hospedeiro, chegada até ele, movimento exploratório ativo das partes da boca pela superfície da pele do hospedeiro, picada ou penetração (inserção das partes da boca dentro da superfície), localização do sangue (em um vaso sangüíneo), ingestão do sangue e término da alimentação (Friend & Smith, 1977).

Os triatomíneos são ectoparasitas temporários, e o único contato que mantêm com seus hospedeiros restringe-se ao período do repasto. Vários fatores fisiológicos e comportamentais devem interferir na interação do triatomíneo com o seu hospedeiro. Assim como outros artrópodes sugadores de sangue, os triatomíneos desenvolveram nas suas glândulas salivares uma grande diversidade de componentes anti-hemostáticos altamente eficientes, como anticoagulantes e vasodilatadores, que são introduzidos nos hospedeiros, juntamente com a saliva, no momento da picada (Garcia et al., 1994). Não está ainda bem esclarecido o papel da saliva dos triatomíneos, porém se supõe que ela altere o sítio da picada, favorecendo a localização dos vasos e aumentando o fluxo sangüíneo na área da pele a ser picada, e que antagonize os mediadores reparadores liberados após a injúria dos vasos pelas peças bucais do barbeiro. Isso aumentaria as chances de encontro rápido de um vaso com bom suplemento de sangue, que, em conseqüência, diminuiria o tempo de alimentação (Pappas et al., 1986; Ribeiro, 1987).

O Triatoma brasiliensis é considerado hoje a espécie mais importante na transmissão da doença de Chagas no Brasil, tendo ampla distribuição nos nove estados do Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Sergipe, Maranhão e Rio Grande do Norte), além de nos estados de Tocantins e Minas Gerais (Silveira et al., 1984).

O T. brasiliensis se desenvolve nas regiões secas do Nordeste do Brasil, suportando temperaturas mais elevadas e climas mais secos (Forattini, 1980). É uma espécie amplamente distribuída no ambiente silvestre. Assim, a importância desse triatomíneo torna-se maior, pois, após as borrifações com inseticidas, este pode recolonizar a área onde foi controlado (Alencar, 1987).

No ambiente silvestre, encontra-se associado a abrigos de mamíferos (roedores, morcegos), aves e marsupiais, transmitindo o T. cruzi entre os roedores e marsupiais. Além disso, coloniza bem o domicílio e peridomicílio, sugando o homem e seus animais domésticos. No Ceará, foram encontrados diversos exemplares de T. brasiliensis em locas de pedras, associados a várias espécies de quirópteros e roedores da espécie Cercomys c. laurentius (Alencar, 1987).

Nas áreas de ocorrência dessa espécie, as taxas de prevalência humana da doença de Chagas não são, entretanto, tão elevadas (Ceará, 1,3%; Paraíba, 2,3%; Piauí,3,7%) quanto naquelas em que predomina o Triatoma infestans (Bahia, 7,4%) (Alencar, 1987).

O estudo das fontes alimentares utilizadas por uma amostra de 718 triatomíneos, realizado por Alencar (1987), demonstrou baixa associação dessa espécie com o homem, tendo sido 4,6% das reações de precipitina positivas para o homem. Houve predominância no sangue de galinhas (69,8%), e, secundariamente, nos sangues de cão (9,9%), gato (11,6%) e cabra (10,9%).

Este estudo tem como objetivo verificar alguns parâmetros biológicos e fisiológicos do T. brasiliensis, em comparação com o T. infestans, considerada a mais eficiente espécie vetora no Brasil, e com o Triatoma pseudomaculata, espécie de hábitos peridomiciliares que habita a mesma região geográfica do T. brasiliensis.

 

 

Metodologia

 

Inicialmente foram estudados os ciclos biológicos de T. infestans, T. brasiliensis e T. pseudomaculata, com o objetivo de verificar a existência de diferenças entre as espécies nos períodos de desenvolvimento, quando mantidas nas mesmas condições (temperatura de 28±1oC, umidade relativa de 70±5% e alimentação semanal em camundongos não anestesiados e imobilizados).

Para o estudo de fecundidade utilizaram-se dez casais de cada espécie, provenientes do ciclo evolutivo, mantidos nas mesmas condições acima descritas e acompanhados por um período de três meses.

Para verificar se existem diferenças nos tempos de sondagem e de ingurgitamento entre ninfas de quinto estádio das espécies estudadas, foi desenvolvido um sistema de monitoramento eletrônico da atividade elétrica da bomba cibarial do inseto. Para tal, um eletrodo foi implantado no triatomíneo e outro em uma fonte alimentar. Esse sistema foi adaptado para receber as informações em computador compatível com IBM-AT, capaz de armazenar sessenta minutos de aquisição de dados, com simultânea visualização dos sinais captados. Através dessa metodologia foi possível avaliar os tempos exatos de sondagem e a velocidade de ingestão de sangue (mg/min) de cada uma das espécies quando alimentadas em duas fontes diferentes (pombo e camundongo).

A ação anticoagulante da saliva de T. infestans, T. brasiliensis e T. pseudomaculata foi testada através da avaliação do tempo de protrombina, tempo parcial de tromboplastina ativada e tempo de trombina de plasma humano normal incubado, com diferentes diluições de extratos de glândulas salivares das espécies estudadas.

 

 

Resultados

 

Ciclo biológico

 

O T. brasiliensis apresentou um ciclo evolutivo de ninfa de primeiro estádio a adulto mais rápido quando comparado às outras espécies, seguido pelo T. infestans e T. pseudomaculata. Os tempos totais de duração dos ciclos foram de 119,6±3,2; 161,9±4,1 e 215,9±6,4 dias para T. brasiliensis, T. infestans e T. pseudomaculata, respectivamente. As diferenças observadas entre as espécies ocorrem, principalmente, em virtude da duração dos primeiro e quinto estádios em T. infestans e ao quinto estádio para T. pseudomaculata, o qual foi cerca de duas vezes mais longo do que nas outras espécies (p<0,005).

No estudo de fecundidade, foram novamente observados melhores resultados de postura e eclosão para as fêmeas de T. brasiliensis, sendo que o T. infestans foi quem apresentou as menores taxas, com uma maior mortalidade das fêmeas durante o período de observação (90%).

 

Comportamento alimentar

 

O ciclo vital e a dinâmica populacional dos triatomíneos dependem de maneira crítica da interação com seus hospedeiros vertebrados. Os triatomíneos são insetos paurometabólicos, grandes, e, por isso, necessitam de quantidades consideráveis de sangue (Schofield, 1994). Portanto, quanto mais eficiente é a espécie durante o processo de alimentação, mais curto será o seu tempo de contato com o hospedeiro e maiores serão suas chances de sobrevivência.

Os tempos de sondagens, isto é, o tempo que o triatomíneo demora entre a inserção das peças bucais no hospedeiro e o encontro do vaso, foram bastante variáveis entre os grupos testados. Foram observados tempos mais curtos para os triatomíneos alimentados em pombo, com exceção do T. infestans, que apresentou tempos de sondagem menores quando alimentado em camundongo.

Com relação à velocidade de ingestão de sangue, todas as espécies testadas apresentaram valores maiores quando alimentadas em pombo. Além disso, o T. infestans foi a espécie que obteve as velocidades mais altas nas duas fontes alimentares testadas, seguido pelo T. brasiliensis e pelo T. pseudomaculata, que apresentou valores de velocidade muito baixos em relação às outras espécies.

 

Ação anticoagulante da saliva

 

A saliva das três espécies testadas prolongou os tempos de tromboplastina parcial ativada, protrombina e trombina, o que sugere um efeito anticoagulante tanto na via intrínseca quanto na via extrínseca de coagulação, ao contrário do que se observa em Rhodnius prolixus e Panstrongylus megistus, espécies nas quais a saliva atua somente na via intrínseca (Pereira et al., 1996). O extrato de glândulas salivares de T. infestans mostrou uma maior atividade anticoagulante do que a das demais espécies, tanto no tempo de tromboplastina parcial ativada quanto no tempo de protrombina.

 

 

Conclusões

 

De acordo com o nosso modelo experimental, o T. brasiliensis apresentou um ciclo evolutivo mais rápido e uma maior fecundidade quando comparado às outras espécies e obteve uma velocidade de ingestão de sangue com valores maiores do que o T. pseudomaculata e próximos aos do T. infestans. Além disso, os testes utilizando extratos de glândulas salivares de T. brasiliensis apresentaram valores intermediários de atividade anticoagulante entre T. infestans e T. pseudomaculata. Esses resultados demonstram que essa espécie apresenta uma boa capacidade de adaptação aos seus hospedeiros vertebrados, principalmente quando comparada ao T. pseudomaculata.

 

 

Referências

 

ALENCAR, J. E., 1987. História Natural da Doença de Chagas no Estado do Ceará. Fortaleza: Imprensa Universitária, Universidade Federal do Ceará.         

FORATINI, O. P., 1980. Biogeografia, origem e distribuição da domiciliação de triatomíneos domiciliares na região central do Brasil. Revista de Saúde Pública, 13:265-299.         

FRIEND, W. G. & SMITH, J. J. B., 1977. Factors affecting feeding by blood-sucking insects. Annual Review of Entomology, 22:309-331.         

GARCIA, E. S.; MELLO, C. B.; AZAMBUJA, P. & RIBEIRO, J. M. C., 1994. Rhodnius prolixus: Salivary antihemostatic components decrease with Trypanosoma rangeli infection. Experimental Parasitology, 78:287-293.         

LAVOIPIERRE, M. M. J. & HAMACHI, M., 1961. An apparatus for observations on the feeding mechanism of the flea. Nature, 192:998-999.         

MARTINS, A. V., 1968. Epidemiologia. In: Doença de Chagas (J. R. Cançado, ed.), pp. 225-237, Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais.         

PAPPAS, L. G.; PAPPAS, C. D. & GRASSMAN, G. L., 1986. Hemodynamics of human skin during mosquito (Diptera: Culicidae) blood feeding. Journal of Medical Entomology, 23:581-587.         

PEREIRA, M. H.; PENIDO, C. M.; MARTINS, M. S.; PENIDO, C. M. & DIOTAIUTI, L., 1996. Anticoagulant activity of Triatoma infestans and Panstrongylus megistus saliva (Hemiptera/Triatominae). Acta Tropica, 61:255-261.         

RIBEIRO, J. M. C., 1987. Role of saliva in blood-feeding by arthropods. Annual Review of Entomology, 32:463-478.         

SCHOFIELD, C. J., 1985. Population dynamics and control of Triatoma infestans. Annales de la Societé Belge de Medecine Tropicale, 65:149-164.         

SCHOFIELD, C. J., 1994. Triatominae: Biología y Control. West Sussex: Eurocommunica Publications.         

SCHOFIELD, C. J.; WILLIAMS, N. G. & MARSHALL, T. F. C., 1986. Density dependent perception of triatominae bug bites. Annals of Tropical Medicine and Parasitology, 80:351-358.         

SILVEIRA, A. C.; FEITOSA, V. R. & BORGES, R., 1984. Distribuição de triatomíneos capturados no ambiente domiciliar, no período de 1975/1983, no Brasil. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, 36:15-312.         

TRUMPER, E. V. & GORLA, D. E., 1991. Density dependent timing of defaecation by Triatoma infestans. Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, 85:800-802.         

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br