EDITORIAL EDITORIAL

 

Saúde dos povos indígenas no Brasil: perspectivas atuais

 

A área da saúde indígena está atravessando uma fase singular no Brasil. O momento atual caracteriza-se por alterações profundas, que englobam desde aceleradas transformações em perfis epidemiológicos, até a reestruturação do sistema de assistência à saúde indígena. Concomitantemente, percebe-se que a quantidade de grupos de pesquisa debruçados sobre o tema ampliou-se, algo mais que bem-vindo. Mesmo que transbordem evidências quanto às condições de marginalização sócio-econômica, com amplos impactos sobre o perfil saúde/doença, muito pouco se conhece sobre a saúde dos povos indígenas no Brasil, ainda mais se considerarmos a enorme diversidade sócio-cultural e de experiências históricas de interação com a sociedade nacional.

No papel de editores convidados, procuramos reunir neste fascículo temático de Cadernos de Saúde Pública/Reports in Public Health um conjunto de trabalhos representativos das temáticas e abordagens analíticas correntes sobre a questão. Os tópicos estendem-se desde análises antropológicas sobre sistemas tradicionais de cura, até estudos epidemiológicos sobre doenças infecciosas e crônicas não transmissíveis, bem como contribuições versando sobre aspectos variados dos serviços de assistência à saúde indígena. Muitos dos trabalhos não se encaixam em fronteiras disciplinares rígidas; pelo contrário, permeiam vários campos do saber, como esperado em se tratando de um tema tão multifacetado.

No Brasil e em outras partes do mundo, as doenças infecciosas ocupam um locus diferenciado na história dos povos indígenas. É desnecessário reiterar a magnitude da desestruturação demográfica e sócio-cultural a elas associada, o que fez com que se tornassem elementos cruciais no processo de subjugação frente ao expansionismo ocidental. Como apontam vários artigos deste fascículo, ainda que as doenças infecciosas continuem a ocupar um papel proeminente no perfil epidemiológico indígena no Brasil, há evidências de que a expressão das morbidades crônicas não transmissíveis, como obesidade, hipertensão e diabetes mellitus, está se ampliando. A sobreposição de perfis epidemiológicos também se verifica na população brasileira em geral, mas é possível que seja mais intensa entre os povos indígenas. As conseqüências dessa sobreposição em indivíduos, comunidades e serviços de saúde serão amplas, ainda que seja difícil caracterizá-las no contexto atual da saúde indígena no Brasil.

Nos últimos três anos, aconteceram importantes mudanças no sistema de saúde voltado para os povos indígenas com a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, de norte a sul do país. Há de se aguardar a acumulação de dados e experiências, antes de ser possível aquilatar a extensão dos impactos associados a essa reestruturação. Como enfatizam vários autores, um dos grandes desafios na implementação desse novo modelo de assistência é estruturá-lo - envolvendo centenas de milhares de usuários e agências governamentais e não governamentais - sem perder de vista a imensa sociodiversidade indígena. Tal coadunação é o denominador comum do modelo, e também uma das facetas de mais difícil implementação.

Em 2000, por ocasião das comemorações e sobretudo das manifestações relacionadas aos 500 anos de chegada dos europeus ao território do que hoje denominamos Brasil (que resultaram em imagens simbolicamente expressivas, como a que ilustra a capa deste fascículo) ficou reiterada a magnitude da dívida histórica e social que a sociedade brasileira tem com os povos indígenas. A precariedade das condições de saúde e dos serviços a elas oferecidos é exemplar neste sentido. As contribuições deste fascículo oferecem subsídios importantes para uma melhor compreensão desta complexa realidade, relativamente bem conhecida em seus contornos mais amplos, mas cujas matizes ainda estamos longe de compreender.

 

Ricardo Ventura Santos
Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz e Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ana Lúcia Escobar
Universidade Federal de Rondônia

 

 

Indigenous peoples' health in Brazil: current perspectives

 

The field of indigenous peoples' health is going through a unique phase in Brazil, characterized by profound changes ranging from the rapid transformation of epidemiological profiles to restructuring of the health care system for indigenous peoples. Meanwhile, there is a growing realization that the number of research groups working in the area has expanded, a development that is more than welcome. Although there is overflowing evidence of indigenous peoples' socioeconomic marginalization, with broad impacts on their health/disease profile, very little is known about their actual health, especially considering their enormous socio-cultural diversity and their widely varying historical experience in interacting with national society.

In our role as guest editors, we have attempted to bring together in this special thematic issue of Cadernos de Saúde Pública/Reports in Public Health a set of papers representing current themes and analytical approaches to the issue. The topics range from anthropological analyses of traditional healing systems to epidemiological studies on infectious as well as chronic/non-transmissible diseases, not to mention contributions on various aspects of health care services for indigenous peoples. Many of the papers do not fit within rigid disciplinary borders; on the contrary, they cut across various fields of knowledge, as expected in dealing with such a multifaceted theme.

In Brazil, as in other parts of the world, infectious diseases occupy a differentiated locus in the history of indigenous peoples. We need not reiterate the magnitude of the demographic and socio-cultural destructuring associated with such diseases, making them central elements in the subjugation imposed by Western expansionism. As attested by various articles in this issue, although infectious diseases continue to occupy an important place in the epidemiological profile of indigenous peoples in Brazil, there is growing evidence of the relevance of chronic/non-transmissible diseases, such as obesity, hypertension, and diabetes mellitus. This overlapping of epidemiological profiles can also be seen in the Brazilian population at large, but it appears to be more intense among indigenous peoples. The consequences of this epidemiological overlap for individuals, communities, and health services will be extensive, although it still is difficult to fully characterize their reach within the current context of indigenous peoples' health in Brazil.

In the last three years there have been important changes in the health system for indigenous peoples, with the implementation of Special Indigenous Health Districts all across the nation. We must await the accumulated data and experience before we can fully grasp the extent of the impacts associated with this restructuring process. As various authors have pointed out in this issue, one of the major challenges in implementing this new health care model is to structure it - involving hundreds of thousands of users and government and nongovernmental agencies - without losing sight of Brazil's huge indigenous socio-diversity. This combination is the model's common denominator, and also one of its facets that is most difficult to implement.

In 2000, during the commemorations and especially during the demonstrations held on the 500th anniversary of the arrival of Europeans in the territory we now call Brazil (resulting in symbolically expressive images, like the one illustrating the cover of this issue), the magnitude of Brazilian national society's historical and social debt to indigenous peoples was reiterated many times over. Their precarious health conditions and the precarious health care services offered to them are an example. The contributions contained in this issue provide important material for a better understanding of this complex reality, relatively well-known in broad terms, but whose details we are still far from grasping.

 

Ricardo Ventura Santos
Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz e Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ana Lúcia Escobar
Universidade Federal de Rondônia

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br