José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres

Debate sobre o artigo de Mary Jane P. Spink

Debate on the paper by Mary Jane P. Spink

Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. jrcayres@usp.br

 

Risco e imponderabilidade: superação ou radicalização da sociedade disciplinar?

 

 

É sempre um grande prazer e, na mesma medida, um desafio debater as contribuições conceituais que a Professora Mary Jane Spink tem trazido para o campo da saúde e das ciências sociais. No presente artigo, Spink nos deixa, uma vez mais, diante de uma série bastante rica e complexa de questões. Entre os diversos aspectos levantados, será necessário, claro, fazer um recorte que torne possível o diálogo no limitado espaço destinado a esses comentários. Nesse sentido, procurarei deter-me, fundamentalmente, na tese da transformação, na idéia de que, por trás das mudanças que a palavra risco foi experimentando ao longo de sua vida discursiva, existe uma ruptura significativa de condições/exigências de validade no horizonte normativo da modernidade.

A proposta de reflexão do artigo parte de um claro móvel prático: o desafio, ao mesmo tempo técnico, teórico-filosófico e ético, de identificar as novas formas de sensibilidade social da chamada modernidade tardia, trazendo para o exame público, de forma mais positiva e livre, o modo como estamos, ou podemos estar, construindo nossa sociabilidade. Aponta, nesse sentido, para uma mudança importante, que seria o abandono de uma normatividade de caráter disciplinar, fixadora de regras, para outra, de caráter apenas regulador, criadora e disseminadora de subsídios para a tomada de decisões. Acrescenta a essa formulação a idéia de que, em oposição à primeira, de tendência mais organizativa-conservadora, este horizonte normativo recente seria mais vinculado à ação, à aposta, ao enfrentamento do imponderável, o "risco-aventura".

Estou de acordo com a posição, solidamente sustentada pela autora, de que as sociedades modernas transitaram de formas de sociabilidade mais fortemente apoiadas numa contratualidade explícita, disciplinar, para outras, onde os modos de pactuar e exercer a coerção social estão distribuídos de forma pulverizada e internalizada nos indivíduos. Também concordo que o risco é, efetivamente, um elemento fundamental para essa passagem. Resta então, o desafio, proposto pela autora, de avaliar criticamente o significado desse "risco-aventura" nas sociedades ditas "pós-modernas".

Pensada em relação ao móvel ético de uma sociedade solidária, livre e criadora, o que significa a penetrante idéia de gestão de riscos? De que "aventura" estamos falando quando sinalizamos positivamente o "expor-se a danos" por ousar, por fazer acontecer, desqualificando como "sonolenta" a opção por não correr riscos? Os exemplos trazidos pela autora me parecem muito fecundos em mostrar alguns elementos discursivos comuns e bastante poderosos. Fala-se do indivíduo quando se fala em gestão de risco, não de grupos, muito menos de comunidades - e a imagem (não autorizada) do operário solitário em plena megalópole é aqui emblemática. Mais, esse indivíduo é concebido sempre contra o pano-de-fundo de um meio hostil, desconhecido, no mínimo desafiante, no qual ele tem de vencer, vencer por sua ousadia, por sua coragem, por sua capacidade de ação. Para completar a "sagrada" trindade, a figura redentora de uma mercadoria - sempre uma tecnologia, um saber fazer - que garante que, afinal, esse indivíduo prevaleça, seja preservado, tenha... segurança(!).

Não sei se exagero no pessimismo, mas atentando bem para esse discurso, não me parece difícil reconhecer o "velho e bom" darwinismo social. Meio eclipsada a certa altura do século XX, pela maré vermelha das revoluções socialistas, ou pelo brilho caro do Estado do bem-estar social, a perspectiva ideológica da existência como atualidade da saga particular dos indivíduos (tecnologicamente) mais competentes parece cruzar toda a Modernidade, desde o período clássico - com as promessas onipotentes das Luzes - até o nascente século XXI - com sua extraordinária capacidade de processar probabilidades. Mesmo quando no matricial pensamento bio-evolucionista, a idéia de competição indivíduo-meio-indivíduo já está largamente superada, prestando-se mais e mais atenção para a interdependência e a cooperação na transformação das formas de vida como ideologia social, o darwinismo parece ainda muito vivo e eficaz. É como porta-voz dessa ideologia que a onipresença e a onipotência mercadológica do discurso do risco me parece mais compreensível. Nem liberdade, nem criatividade: faça-se, sem pensar; faça você e consuma o "como fazer" (tecnó-logos) para ser vitorioso. Portanto, disciplina ainda, a pior delas, aquela cuja finalidade conhecemos cada vez menos e contra a qual se torna mais e mais difícil se rebelar, à medida que ela vai se tornando menos e menos visível e, portanto, menos acessível ao pensamento, conforme o diagnóstico "melancólico" dos Frankfurtianos.

Mas não se preocupe a autora, que o efeito da reflexão que tão agudamente nos traz com seu artigo, não me leva a um diagnóstico fatalista e paralisante. Ainda com a Escola de Frankfurt, vejo no pessimismo filosófico apenas a outra face de um otimismo prático incorrigível (espero). É que, até onde consigo pensar a questão, se não estivermos atentos para o "risco-espetáculo" - tão bem representado por No Limite, recente sucesso de Ibope - atrás, através e para além do risco-aventura, vamos apenas continuar perdendo vidas jovens nos esportes radicais (esses sim, sem qualquer possibilidade de cálculo e gestão de danos) e podemos perder chances preciosas de pensar o indivíduo como o inseparável par "eu-outro", de conceber a felicidade não "contra o mundo", mas "no mundo e pelo mundo" e de construir o conhecimento não como simples mercadoria para consumo de êxitos técnicos mas, fundamentalmente, como poética social de sucessos práticos.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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