NOTA RESEARCH NOTE

Ana Rodrigues Falbo 1
João Guilherme Bezerra Alves 1


Desnutrição grave: alguns aspectos clínicos e epidemiológicos de crianças hospitalizadas no Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), Brasil

 

Severe malnutrition: epidemiological and clinical characteristics of children hospitalized in the Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), Brazil

1 Instituto Materno Infantil de Pernambuco. Rua dos Coelhos 300, Recife, PE 50070-550, Brasil.

 

Abstract Ninety-nine children admitted to the Instituto Materno Infantil de Pernambuco with severe malnutrition from May 1999 to May 2000 were investigated in a cross-sectional study focusing on key epidemiological and clinical variables. The majority of the children (88.9%) were less than 6 months of age, 42.4% had a history of low birth weight, and 36.4% were premature. Some 19.2% had never been breastfed, and 49.5% had been breastfed for less than 2 months. Some 15.2% of the mothers were illiterate. Most of the families (86.1%) had incomes less than twice the minimum wage (approximately US$150/month), and 51.5% had migrated from rural areas. Only 26.3% of the homes had running water, and 40.4% lacked sewage disposal facilities. Diarrhea was the reason for hospital admission in 55.6% of the cases. Hospital mortality was 34.3% in this group.
Key words Nutrition Disorders; Hospitalization; Child Health

 

Resumo Foram estudadas todas as crianças, hospitalizadas no Instituto Materno Infantil de Pernambuco, com desnutrição grave, no período de maio de 1999 a maio de 2000. O estudo foi de natureza descritiva com desenho transversal. O objetivo do estudo foi conhecer o perfil dessas crianças, em relação a algumas variáveis clínicas e epidemiológicas. A maioria das crianças tinha idade menor que 6 meses (88,9%), tendo sido observado um percentual de 42,4% de baixo peso ao nascer e 36,4% de prematuridade. Dezenove vírgula dois porcento das crianças nunca receberam leite materno, e 49,5% foram amamentadas por um período inferior a 2 meses. Verificou-se que 15,2% das mães não tinham nenhum grau de escolaridade. A renda familiar foi menor que 2 salários mínimo em 86,1% das famílias. A maioria das crianças veio do interior do Estado (51,5%). Em relação ao saneamento básico, 26,3% das casas não tinham água encanada e em 40,4% não havia fossa séptica. A diarréia foi o motivo da internação em 55,6% dos casos. A mortalidade hospitalar no grupo do estudo foi de 34,3%.
Palavras-chave Desnutrição; Hospitalização; Saúde Infantil

 

 

Introdução

 

A desnutrição energético-protéica (DEP) constitui-se num dos principais problemas de saúde coletiva em escala mundial, por sua magnitude, conseqüências biológicas e danos sociais. No nordeste do Brasil, as formas graves de DEP chegam a atingir 24,0% das crianças menores de 5 anos de idade, hospitalizadas (Alves et al., 1988; Batista Filho et al., 1988). A II Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição (INAN/UFPE/SES-PE, 1998) encontrou, segundo o indicador peso/idade, um percentual de 4,9% de desnutrição grave e moderada (abaixo de -2 desvios-padrão) em todo o Estado de Pernambuco.

A letalidade hospitalar em menores portadores de formas graves de DEP chega a ser quase dez vezes mais elevada quando comparada com crianças eutróficas (Alves et al., 1988; Guillerman & Taboadela, 1984; Schofield & Ashworth, 1997). Estudo realizado no Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP), observou que, de 1.045 crianças carentes falecidas no hospital no ano de 1995, 60,1% tinham algum grau de comprometimento do estado nutricional (Alves et al., 1996). Em 1998, 15,1% das crianças desnutridas graves que foram hospitalizadas no IMIP evoluíram para o óbito (NEPI, 1998). Esses dados evidenciam, de forma expressiva, o papel do hospital como centro de demanda dos casos de desnutrição grave.

Com o objetivo de se obter um maior conhecimento do problema em nível hospitalar, realizamos esse estudo, que descreve alguns aspectos clínicos e epidemiológicos de crianças com desnutrição grave. Esses dados fornecerão uma base importante para a realização de estudo de intervenção que possa então contribuir de modo mais efetivo para melhorar a abordagem médica da criança com desnutrição grave hospitalizada.

 

 

Metodologia

 

O estudo foi realizado no IMIP, Recife, Estado de Pernambuco. Como centro de referência do SUS-Pernambuco, esse instituto atende crianças oriundas de todos os municípios do Estado de Pernambuco e também de estados vizinhos.

Em um estudo do tipo seccional, foram pesquisadas todas as crianças hospitalizadas no período de maio de 1999 a maio de 2000 (99 crianças), com idade de um a 60 meses, com desnutrição grave (índice peso/idade < percentil 3). Para a coleta dos dados utilizou-se um formulário construído conforme as variáveis do estudo (idade, sexo, peso ao nascer, idade gestacional, aleitamento materno, estado vacinal, local da habitação, água encanada e fossa séptica na habitação, motivo da hospitalização, presença de edema, estado de hidratação e sinais de choque hipovolêmico na admissão, uso de antibiótico e soro para reidratação oral durante a hospitalização), a fim de atender os objetivos da pesquisa. As informações foram coletadas dos prontuários médicos, pois o estudo foi retrospectivo. Para a criação do banco de dados, duas entradas foram realizadas por diferentes digitadores, utilizando-se o programa Epi Info 6.0. A avaliação do estado nutricional foi realizada pelo Epinut do Epi Info 6.0, que utiliza como referência o padrão do National Center for Health Statistics (NCHS, 1977). Verificou-se a distribuição de freqüência das variáveis estudadas, que são apresentadas em forma de tabelas.

 

 

Resultados

 

Os dados que caracterizam a amostra em relação ao sexo, idade, peso ao nascer, idade gestacional, aleitamento materno e estado vacinal, encontram-se descritos na Tabela 1.

 

 

Em relação a algumas variáveis indicadoras da condição da habitação da criança, observou-se que 54,1% das residências estavam localizadas no interior do Estado; 36,1% na Zona da Mata. Em 36,1% das residências não havia água encanada, e constatou-se ausência de fossa séptica em 55,5 % dos casos.

Em 55,6% das crianças pesquisadas a diarréia foi o motivo da hospitalização, enquanto a pneumonia respondeu por 26,3% dos casos. Apenas 6,0 % das crianças do estudo apresentavam edema no momento da admissão hospitalar. Em relação ao estado de hidratação, 32,3% apresentavam sinais de desidratação do 1o e 2o graus, e 15,2% do 3o grau; em 17,2% dos casos, observaram-se dados sugestivos de choque hipovolêmico. Verificou-se o uso de antibiótico em 81,8% das crianças hospitalizadas e soro para reidratação oral em 60,0 % delas. Houve evolução para o óbito em 34,3% das crianças.

Os dados que caracterizam a mostra em relação à idade e escolaridade das mães e à renda familiar, encontram-se descritos na Tabela 2. A taxa de letalidade hospitalar no grupo foi de 34,3% (34 crianças). As Tabelas 3 e 4 mostram dados que caracterizam este grupo em relação a algumas variáveis clínicas e epidemiológicas, bem como da sua condição sócio-econômica.

 

 

 

 

As crianças foram sistematicamente classificadas segundo a evolução para alta ou óbito e considerando as variáveis que foram demonstradas anteriormente (Tabelas 3 e 4), e não foram observadas diferenças estatisticamente significantes entre as variáveis, obtendo-se sempre um p > 0,05.

 

 

Discussão

 

Apesar das evidências recentes de redução dos índices de DEP no Brasil, especialmente no Nordeste, ela continua como a endemia carencial mais importante em nosso país, provocando uma elevada demanda nos serviços de saúde e aumento nas taxas de mortalidade hospitalar (Batista Filho & Costa, 1988). Isso aumenta a relevância do estudo da desnutrição hospitalar, pelos seus efeitos desfavoráveis sobre o prognóstico dos pacientes. No presente estudo, a maioria das crianças tinha idade menor que seis meses. Os elevados percentuais de baixo peso ao nascer e prematuridade, ao lado de elevados índices de desmame precoce, contribuem para justificar esse achado.

A ação que mais contribuiria para a prevenção das interações maléficas do binômio DEP/ infecção seria a prática da amamentação exclusiva até o 6o mês de vida. Vários estudos têm comprovado o papel da proteção do leite materno, particularmente em relação às infecções do trato digestivo e respiratório, responsáveis pela grande maioria das hospitalizações em nossa casuística. Nos países em desenvolvimento, crianças não amamentadas no seio têm 3 a 4 vezes mais chances de morrer nos três primeiros meses de vida (Beaudry et al., 1995; Ebrahim, 1995). Infelizmente, a freqüência e a duração do aleitamento materno são baixas em nosso meio, o que contribui para índices bastante elevados de morbimortalidade no primeiro ano de vida (INAN, 1990).

Dentre as crianças estudadas, apenas 15,6%, tinham esquema vacinal completo. Existe uma forte associação entre ocorrência de doenças imunopreveníveis e posterior surgimento de doenças infecciosas, sobretudo diarréia e pneumonia, em função da queda de imunidade imposta pelas doenças imunopreveníveis (Deivanayagam et al., 1993; Mahalanabis et al., 1991).

No presente estudo, foi elevado o número de mães adolescentes e com baixa escolaridade, reconhecidamente fatores de risco para agravos à saúde (Victora et al., 1993). A baixa renda das famílias estudadas aponta para uma situação de miséria. Evidentemente, essa situação gera condições nutricionais insatisfatórias. Estima-se, hoje, que 50,95% da população do Estado de Pernambuco tenham uma renda mensal inferior a R$ 80,00 per capita (Neri et al., 2000).

Dos domicílios das crianças do estudo, 36,1% não tinham acesso à água encanada e 55,5% não possuíam fossa séptica. Em termos de saúde ambiental, a falta de acesso a algum tipo de abastecimento de água limpa e de destino adequado dos dejetos, e a manipulação dos alimentos sem cuidados de higiene têm implicações significativas na disseminação de doenças infecciosas.

Apesar de a desnutrição edematosa ser um achado freqüente em muitos países em desenvolvimento, e de essas crianças apresentarem uma evolução com pior prognóstico (Golden, 1996; Manary & Brewster, 1997; Waterlow, 1992), apenas 6,1% das crianças estudadas apresentavam edema na admissão hospitalar. A criança com desnutrição grave está propensa a desenvolver sérios problemas que a coloca sob o risco de morrer, dos quais, dentre outros, destacam-se a infecção e os distúrbios hidroeletrolíticos (Schofield & Ashworth, 1997; WHO, 2000). Das crianças estudadas, 15,2% chegaram ao serviço apresentando desidratação grave, e outras 17,2% com sinais de choque hipovolêmico. O grande percentual do uso de antibióticos (81,8%) condiz com o fato de que a infecção foi provavelmente um evento comum nessas crianças. Diarréia e pneumonia foram as infecções mais triviais, achados bem descritos em crianças com desnutrição grave (Alves et al., 1988).

Observou-se uma elevada taxa de mortalidade no grupo estudado, de 34,3%, semelhante aos dados citados na literatura, que relatam percentuais de mortalidade hospitalar nessas crianças, variando de 20 a 30% (Schofield & Ashworth, 1997). O fato de não terem sido observadas diferenças com significância estatística entre algumas variáveis em relação às crianças que receberam alta e as que evoluíram para o óbito, talvez seja explicado pelo manejo dispensado ao grupo como um todo, que não levava em conta as limitações fisiopatológicas inerentes à desnutrição. Este fato aponta para a necessidade de melhorar a abordagem médica dessas crianças.

Portanto, a maior parte das crianças tinha idade inferior a 6 meses, precárias condições de habitação e foi desmamada precocemente. Mais de um terço delas teve nascimento prematuro, baixo peso ao nascer e evolução para o óbito. O conhecimento dessas características clínicas e epidemiológicas nos forneceu subsídios para desenvolver um estudo de intervenção, visando testar, em nosso meio, a aplicação do protocolo da OMS para manejo da desnutrição grave, cujos principais objetivos são a redução do risco de óbito e a diminuição da permanência hospitalar.

 

 

Referências

 

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Recebido em 14 de agosto de 2001
Versão final reapresentada em 26 de março de 2002
Aprovado em 10 de maio de 2002

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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