ARTIGO ARTICLE

Rosa Maria Marques 1
Áquilas Mendes 2,3


A política de incentivos do Ministério da Saúde para a atenção básica: uma ameaça à autonomia dos gestores municipais e ao princípio da integralidade?

 

Brazilian Ministry of Health policy providing incentives for basic health care: a threat to the autonomy of Municipal administrators and the principle of integrality?

1Departamento de Economia, Faculdade de Economia e Administração, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre 984, São Paulo, SP 05014-901, Brasil.
rosamarques@hipernet.com.br
2 Departamento de Economia, Fundação Armando Alvares Penteado. Rua Alagoas 903, São Paulo, SP 01242-902, Brasil.
3 Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal. Av. Professor Lineu Prestes 913, São Paulo, SP 05508-900, Brasil.

 

Abstract Thirteen years after the Unified National Health System was implemented in Brazil, the Federal government increased the use of norms and regulations aimed at rationalizing resources and prioritizing basic care within the system. In other words, although actions and services are the responsibility of Municipal governments, the Federal government used financing to reinforce its role in determining the policy to be adopted. The first part of this article analyzes trends in health care expenditures and financing in the country and priorities and strategies for financing. The second part relates the 1996 Basic Operational Norm to the Federal government policy of transferring resources to the Municipalities, discussing the importance of the Family Health Program as part of the financing logic and the role of the Health Care Operational Norm in reinforcing rationalization and emphasizing basic care.
Key words Basic Standards for Health Care; Health Policy; Health Financing; Family Health Program

 

Resumo Passados 13 anos do surgimento do Sistema Único de Saúde, o governo federal aumentou o uso de normas e regulações que visam racionalizar os recursos e priorizar o nível de Atenção Básica dentro do sistema. Isso significa dizer que, embora as ações e serviços sejam de responsabilidade do município, a instância federal reforçou, mediante o financiamento, seu papel na determinação da política a ser adotada. Na primeira parte do artigo, analisa-se a evolução do gasto e do financiamento da atenção à saúde no país, as prioridades e as estratégias de financiamento. Na segunda parte, relaciona-se a Norma Operacional Básica de 1996 com a política de transferência de recursos para os municípios, adotada pelo governo federal; discuti-se a importância assumida pelo Programa Saúde da Família no interior da lógica do financiamento e destaca-se o papel da Norma Operacional da Assistência à Saúde no reforço da racionalização e da ênfase na Atenção Básica.
Palavras-chave Normas Básicas de Atenção a Saúde; Política de Saúde; Financiamento da Saúde; Programa Saúde da Família

 

 

Introdução

 

Há 13 anos, desde que a saúde no país foi instituída como um direito de todos e um dever do Estado e operada por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), que os gestores deste sistema vêm atribuindo ênfase à mudança do modelo de atenção à saúde, priorizando o nível de atenção básica. Nesse período de existência do SUS, vários modelos assistenciais foram implementados nas diversas localidades, tais como a "vigilância em saúde", "ações programáticas de saúde", "saúde da família", etc.

No período mais recente, a operacionalização de todas as ações relativas à atenção básica tem se concentrado no processo de expansão da estratégia Programa Saúde da Família (PSF), incentivada pelo Ministério da Saúde (MS). É perceptível que um dos aspectos positivos no PSF é seu potencial como mecanismo de promoção da saúde e prevenção de doenças. Há quem afirme, no entanto, que sua capacidade de alteração do modelo assistencial não tem obtido o mesmo sucesso ou mesmo que o PSF não tem garantido, de forma sistemática, o acesso de sua clientela aos níveis de maior complexidade da saúde, nem a universalização da cobertura.

Se essa situação estiver ocorrendo, a despeito de seus aspectos positivos, o PSF não estaria consolidando um SUS diferente do disposto na legislação? Pode-se admitir que o PSF, na sua concepção formulada pelo MS, representa a única alternativa para organizar o nível de atenção básica? A estratégia de alteração do modelo de atenção, operada por meio da implantação do PSF, via incentivo financeiro do governo federal, contribui para a garantia do acesso e integralidade na atenção à saúde? Existe um único modelo de atenção capaz de assegurar os princípios do SUS, ou, devido à heterogeneidade de situações existentes no país, seria possível viabilizar diversas estratégias que operassem distintos modelos? Foram essas as preocupações que motivaram a realização deste artigo. Responder ao conjunto dessas perguntas não é, contudo, seu objetivo. Inserido numa linha de pesquisa mais abrangente, trata-se de uma primeira tentativa de melhor entender a estratégia adotada pelo governo federal e de analisar seus desdobramentos.

Vale lembrar que o PSF, bem como as Normas Operacionais e instrumentos que regulamentam o SUS, foram amplamente discutidos na Comissão Intergestores Tripartite, no Conselho Nacional de Saúde, no Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e no Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS). Nesse sentido, estas instâncias de representação são partícipes da política atualmente incentivada pelo MS, mesmo que, em algumas vezes, parte dessas instituições tenham discordância sobre seu encaminhamento. Contudo, tendo em vista a importância dos recursos federais no financiamento do SUS, entende-se que o MS, enquanto parte da estrutura do governo, foi a instância que mais influiu na determinação da política nesses últimos anos, principalmente quando os constrangimentos econômicos e financeiros se fizeram mais presentes.

A primeira parte do artigo analisa as alterações da política de saúde no país nos anos 90, onde é destacada a priorização do nível de atenção básica, por meio da operacionalização do PSF. São abordadas questões como: crescente aumento do uso de normas e regulações pelo governo federal, visando priorizar o nível de Atenção Básica dentro do sistema e reforçar seu papel na determinação da política de saúde, mediante o mecanismo do financiamento. A segunda parte demonstra que a NOB 96 (MS, 1996), prioriza a alteração do modelo de atenção. Para isso é analisada a política de transferência de recursos federais para os municípios, destacando o papel do PSF no interior da lógica do financiamento. A terceira, e última parte, discute o papel da Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS) no reforço da racionalização e da ênfase na Atenção Básica.

 

 

A política de saúde na década de 90: a prioridade para o nível de Atenção Básica

 

A década de 90 foi marcada por grande investimento do MS na universalização da atenção básica. Paralelamente, houve avanço no processo de municipalização e no estabelecimento de novas sistemáticas para o financiamento das ações e serviços de saúde, especialmente em nível da atenção básica.

A implementação da proposta de atenção básica, que vem orientando a reorganização da lógica assistencial do SUS, teve início em 1994, com a operacionalização do PSF, incorporando a experiência anterior do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). O objetivo do PSF, segundo Merhy & Franco (2000:145), refere-se à: "reorganização da prática assistencial em novas bases e critérios, em substituição ao modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças no hospital. A atenção está centrada na família, entendida e percebida a partir do seu ambiente físico e social, o que vem possibilitando às equipes da Família uma compreensão ampliada do processo saúde/doença e da necessidade de intervenções que vão além de práticas curativas".

Esses autores ressaltam quatro princípios básicos do PSF: (a) caráter substitutivo ­ alteração das práticas convencionais de assistência por um novo processo de trabalho, concentrado na vigilância à saúde; (b) integralidade e hierarquização ­ adoção da Unidade de Saúde da Família como primeiro nível de ações e serviços do sistema local de saúde; (c) territorialização e adscrição da clientela ­ incorporação do território enquanto espaço de abrangência definida; (d) equipe multiprofissional ­ composição realizada por um médico generalista ou médico de família, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitários de saúde.

No período 1994-2001, o crescimento do PSF foi significativo, registrando-se 328 equipes de saúde da família em 1994 e 10.788 em 2001 (Figura 1). Nesse último ano, o PSF estava presente em 4.266 municípios, prestando assistência integral a 36 milhões de brasileiros.

 

 

Recentemente, o MS, seguindo sua linha central de incentivo à atenção básica, criou um órgão denominado Departamento de Atenção Básica. É função desse Departamento normatizar a organização e gestão desse nível de atenção em saúde. Sua organização está estruturada visando a execução das atividades de gerenciamento de todas as ações voltadas para o redirecionamento do modelo assistencial do SUS, com destaque à expansão da estratégia das equipes de saúde da família, à qualificação e capacitação do pessoal de saúde da família e à avaliação e monitoramento desse modelo. Para tanto, algumas áreas programáticas do MS (relacionadas à expansão do PSF) passaram a ser de responsabilidade desse Departamento, a saber: coordenações nacionais de prevenção e controle da tuberculose e outras pneumopatias, de controle de hanseníase e outras dermatoses, de controle das doenças reumáticas, de controle dos diabetes mellitus, de controle das doenças cardiovasculares/hipertensão, de saúde bucal, de vigilância alimentar e nutricional e de assistência farmacêutica (Sousa, 2000). A ampliação do campo de ação desse Departamento indica, portanto, o crescimento da importância do PSF no conjunto da Atenção Básica e desta última, na política de saúde implementada pelo MS.

Há quem defenda que existam similaridades entre as propostas do PSF, da Medicina Comunitária e das Ações Primárias de Saúde ­ estas duas últimas tomadas como concepções desenvolvidas pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) em 1978, no Congresso realizado em Alma Ata, no Cazaquistão. Segundo alguns autores, o PSF adota o campo da vigilância à saúde centrado no território, conforme indicação da proposta da OPAS. Isso porque, em larga escala, o Programa inspira-se nos cuidados a serem oferecidos para ações no ambiente, sem dar muito valor para o conjunto da prática clínica, desconsiderando a necessidade de sua ampliação na abordagem individual, isto é, sua atenção singular, importante para os casos em que os processos mórbidos já são presentes (Campos, 1992; Merhy & Franco, 2000).

Dessa forma, comentam esses autores, o PSF acaba por desarticular sua proposta transformadora, pois assim como a Medicina Comunitária e os Cuidados Primários em Saúde, não se propõe a atuar também na questão clínica, agindo como "linha auxiliar do Modelo Médico Hegemônico" (Merhy & Franco, 2000: 146). Isso significa dizer que o PSF separa as suas competências em relação àquelas da corporação médica, estabelecendo como sua, a saúde coletiva e da corporação, a saúde individual. Merhy & Franco apontam que essa atitude é vantajosa para o modelo neoliberal dominante de privatização da saúde, uma vez que delimita o campo de ação dos modelos de atenção.

Ao que parece, a implantação do PSF não tem seguido pari et passu a lógica descrita por esses autores. A ênfase do MS em incentivar o PSF como estratégia estruturante dos sistemas municipais de saúde, funcionando como principal porta de entrada do SUS, soma-se ao reconhecimento de diversos agentes públicos, no período mais recente, que sua adoção fortalece a integralidade da atenção à saúde. Mesmo as críticas anteriormente mencionadas referem-se, com maior ênfase, aos aspectos que tratam da forma como o Programa é estruturado e organizado. Vale dizer, os argumentos concentram-se na necessidade de o PSF vir a operar integrado à já existente Rede Básica Assistencial Local. Merhy & Franco (2000) assinalam que, no país, há em média 1 Unidade Básica de Saúde (UBS) para cada 5.424 habitantes, valor superior àquele recomendado pela Organização Mundial da Saúde (1 para cada 20 mil habitantes). Esse fato indica que a UBS, no Brasil, constitui instrumento importante a ser utilizado, quando se tem em vista a organização de um novo modelo assistencial.

De certa forma, essa proposta vem sendo considerada pelos gestores locais de saúde, representados pela figura dos secretários municipais de saúde no país. A maior parte dos PSF implantados opera em sintonia com as UBS. É certo que há diversas formas de atuação desse programa, pois é difícil imaginar que sua adoção seja igual em um país com municípios tão heterogêneos, que apresentam ofertas de serviços e capacidades técnica e administrativa diferenciadas. É fato que as dificuldades inerentes a essa heterogeneidade têm levado a que várias localidades adaptem o programa, incentivadas pelo MS, às suas realidades locais.

 

 

A NOB 96 e a lógica de transferência de recursos do governo federal para a atenção básica

 

A institucionalização do PSF ganha evidência significativa com a aprovação da portaria do MS (1996) denominada NOB 96 ­ Norma Operacional Básica do SUS de 1996. Dentre seu objetivo central de estimular o processo de descentralização/municipalização da saúde, essa Norma enfatiza a implantação do PSF, explicando ser ele parte de um conjunto de medidas e iniciativas que visam o fortalecimento da Atenção Básica, segundo os princípios e diretrizes do SUS. Segundo a NOB 96, esse programa é implantado quando os municípios, responsáveis pela execução preferencial das ações e serviços de saúde, aderem voluntariamente a um conjunto de responsabilidades e prerrogativas de gestão, seja na condição de gestão "Plena da Atenção Básica" ­ responsabilizando-se pelos serviços de atenção básica (clínica geral, pediatria, gineco-obstetrícia) ou "Plena do Sistema Municipal de Saúde" ­ responsabilizando-se por todos os serviços de saúde, incluindo os níveis de atenção de média e alta complexidade da saúde (MS, 1996).

O estímulo dado pela NOB 96 à implantação do PSF foi significativo: o número de equipes de saúde da família cresceu de 1.623, em 1996, para 3.147 em 1998 (Figura 1). Contudo, é preciso ressaltar que foi em maio de 1998 que os municípios passaram a receber o incentivo financeiro criado pela NOB 96 ­ Piso da Atenção Básica (PAB), inaugurando a modalidade de transferência per capita de recursos federais para os municípios. Esse incentivo foi determinante para o crescimento do número de equipes de saúde da família mencionado acima. Cabe lembrar que as transferências para Atenção Básica são realizadas por meio de repasse automático com base em um per capita de R$ 10,00/ano (PAB fixo); ou de transferências que visam incentivar determinados programas, tais como a saúde da família e agentes comunitários, integrantes do que se denominou de PAB variável.

A presença da instância federal na determinação da política de saúde é muitas vezes esquecida quando se analisa, de forma ligeira, sua participação financeira no total da despesa com saúde. Contudo, ainda que tenha havido uma diminuição da participação do governo federal no financiamento da saúde pública ­ de 77,7% no final da década de 80, para 53,7% em 1996 ­ ela não foi acompanhada da redução de sua presença na determinação da política, principalmente em nível da atenção básica (Marques & Mendes, 2000).

A despesa do MS é realizada servindo-se de duas formas: pagamento direto aos prestadores de serviços (relativos a internações hospitalares e atendimento ambulatorial) e transferências aos estados e municípios habilitados no SUS. Os pagamentos diretos, que absorviam 71,3% dos recursos federais em saúde no ano de 1997, caíram para 39% em 2000. Essa diminuição resultou no aumento da participação relativa das transferências: de 28,66% para 61%, respectivamente (Tabela 1), indicando que o governo federal priorizou essa forma de financiamento. As transferências são destinadas à Alta e Média Complexidade e para a Atenção Básica. Essa última é promovida e financiada pelos PAB Fixo e Variável. Os incentivos financeiros para o PSF integram o PAB Variável.

 

 

No período 1997-2000, a despesa com Média e Alta Complexidade aumentou de 28,7% para 36,4%. Em 2000, as transferências para a Atenção Básica absorveram 24,59% dos recursos, refletindo a implantação da NOB 96 a partir do ano de 1998, como já mencionado. Na Atenção Básica, 14,03% foram dirigidos ao PAB fixo, 10,19% ao PAB Variável e 0,37% aos demais programas (Tabela 1).

Comparando-se o ano de 2000 ao de 1999, verifica-se que, como seria de esperar, a redução dos pagamentos federais resultou tanto em aumento das transferências à Alta e Média Complexidade, como à Atenção Básica. É importante chamar a atenção para o fato de, na Atenção Básica, o PAB variável ter crescido sua importância relativa de 5,52% para 10,19%, enquanto o PAB fixo diminuiu de 15,54% para 14,03. É justamente na modalidade de transferência PAB variável que se insere o PSF. Como mencionado acima, o PAB variável é constituído de diferentes incentivos, que "premiam" os municípios que desenvolvem os diferentes programas.

Ademais, para se ter uma idéia da tendência de crescimento do PAB variável no ano de 2001, o montante orçado para o PSF foi largamente superado por sua execução, considerando o acumulado até setembro desse ano. Os recursos utilizados até esse mês suplantaram o orçado em 45% (Tabela 2).

 

 

Considerando a escassez de recursos sempre presente na área da saúde, pode-se dizer que a presença dos incentivos a partir de 1998 (estimulando os municípios a incorporar programas que lhe acrescentam receita financeira), significou o reforço do governo federal na formulação da política de saúde, especialmente no campo da Atenção Básica. Isso, em grande medida, impede que os municípios planejem uma política mais adequada às necessidades locais.

A NOB 96 ­ em que pese ser um importante instrumento na operacionalização da descentralização do sistema ­ ao incrementar as transferências diretas fundo a fundo no campo da atenção básica, pode estar se constituindo num obstáculo no avanço da construção de uma política de saúde fundada nas necessidades do nível local. Isto porque, ao criar o mecanismo de transferência para a Atenção Básica (PAB), rompendo com a lógica de repasse global para a saúde de forma integral (NOB 93 ­ MS, 1993), foi solo fértil para as políticas de incentivos financeiros que se seguiram posteriormente. Na prática, os municípios, ao receberem recursos para a Atenção Básica, acabam concentrando suas ações neste nível de atenção.

Pesquisa recente do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP), Universidade Estadual de Campinas, por meio de survey nacional com Secretários Municipais de Saúde, mostra que cerca de 80% dos entrevistados concordam que a implantação do PAB reorientou as ações da Secretaria Municipal de Saúde para a Atenção Básica. Esse resultado é praticamente homogêneo para todos os tipos de municípios, categorizados pela pesquisa por regiões do país, porte populacional, capacidade fiscal e tamanho da máquina administrativa do município (NEPP, 2001).

Vale notar que Bueno & Merhy (1997) afirmavam de forma contundente, que a NOB 96 iria inibir a autonomia do município, induzindo-o a adotar programas não definidos localmente.

A política de incentivo à implantação do PSF não é uma prerrogativa do MS. Sabe-se que alguns estados brasileiros, na busca de fomentar o nível de atenção básica como porta de entrada ao sistema, vêm, também, propiciando incentivos financeiros aos seus municípios para que esses implantem suas equipes de saúde da família. Nessa situação encontram-se nove Estados ­ Mato Grosso do Sul, São Paulo, Mato Grosso, Amapá, Paraná, Espírito Santo, Minas Gerais, Sergipe e Tocantins ­ em que pese adotarem diferentes critérios de repasse. Em alguns estados o repasse é dirigido somente a municípios mais pobres (rurais, com baixo valor do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), comunidades assentadas e quilombadas) e, em outros, ele não está atrelado às condições socioeconômicas, e sim à idéia de que a expansão da cobertura da população deve ser realizada segundo a criação de equipes de saúde da família, para todos os municípios. É importante dizer que a contribuição financeira dos Estados acaba, assim como a do MS, induzindo um tipo de política de saúde, quando esta deveria ser definida conforme as necessidades locais.

 

 

A NOAS e a Atenção Básica

 

Em janeiro de 2001, o MS, após inúmeras discussões com o CONASS e com o CONASEMS, aprovou a Portaria no 95, de 26 de janeiro de 2001, denominada Norma Operacional da Assistência à Saúde/SUS ­ NOAS-SUS 01/2001 (MS, 2001). Essa portaria tem como objetivo aprofundar o processo de regionalização como forma de "garantir o acesso a todas as ações e serviços de saúde necessários, otimizando os recursos disponíveis".

Essa norma busca avançar no processo de responsabilização dos gestores estaduais e municipais pela atenção integral aos seus cidadãos. Seu pressuposto é que a implementação do SUS depende da compatibilização de três princípios: a descentralização, com ampliação da responsabilidade dos municípios sob a gestão de seus sistemas de saúde; a regionalização, com ênfase no planejamento territorial a partir de uma abordagem supramunicipal e a hierarquização, por meio da estruturação de redes assistenciais resolutivas.

Contudo, de certa forma, essa portaria segue a mesma lógica descrita anteriormente, isto é, usa o financiamento como o principal instrumento da política de saúde. É seu objetivo que parte importante dos recursos federais destinados ao custeio da Assistência passe a ser transferida a estados e municípios, incentivando a ampliação das ações de Atenção Básica, a qualificação e responsabilização de microrregiões na Assistência à Saúde e a organização dos serviços de média e alta complexidade do setor. Nessa perspectiva, a garantia do acesso da população a todos os níveis de atenção à saúde deve considerar critérios de racionalidade na organização de redes de referência regionais.

É fora de dúvida que os municípios são heterogêneos, apresentando ofertas de serviços e capacidades técnica e administrativa diferenciadas. Também é verdade que as dificuldades inerentes a essa heterogeneidade levaram a que várias localidades iniciassem experiências pactuadas, envolvendo a divisão de responsabilidades e a partilha da gestão de unidades de saúde. Porém, sabe-se que em muitos casos essas iniciativas não foram bem sucedidas.

Uma forma assumida por esses pactos foi os consórcios intermunicipais. O Consórcio Intermunicipal de Saúde tem se apresentado, em diversas regiões do país, como o instrumento mais utilizado para a implementação do processo de municipalização da saúde e pode estar se constituindo na forma de racionalização na qual se encaixa o modelo de atenção à saúde. Contudo, alguns estudos apontam que os consórcios realizados mediante incentivos financeiros e promovidos pelos governos estaduais não se efetivaram, como é o caso do Estado de Minas Gerais (Guimarães et al., 1999). A contribuição financeira não se mostrou suficiente para sustentar o compromisso de ofertar serviços e ações de saúde regionalizados.

É certo que o avanço na implementação do SUS deve contemplar redes de referência regionais, com efetivo funcionamento e com resultado frente às necessidades de saúde da população. Contudo, desde maio de 1998, a plena operacionalização da NOB 96, mediante a criação de gestão polares (Plena da Atenção Básica e Plena do Sistema), que muitas vezes não expressam a heterogeneidade das redes de serviços das diferentes regiões do país, tem induzido diversos municípios a buscar a habilitação Plena do Sistema, mesmo contando com uma oferta de serviços que pouco difere da atenção básica. Se de um lado, o processo de habilitação se deu de forma cartorial, compreendendo apenas o cumprimento de requisitos formais que pouco respondem ao funcionamento dos sistemas municipais e tendo pouco impacto nas condições de saúde, de outro, a existência de apenas duas condições de gestão, não preenche a diversidade dos municípios nem sua inserção nas redes regionais.

Nesse quadro, a NOAS 2001 propõe-se a reorganizar as atividades assistenciais de forma regional. Isto é, se ela for utilizada para corrigir falhas na assistência e para apoiar as estratégias de mudança do modelo assistencial trilhadas por diversos municípios. Contudo, é importante que se considere algumas questões quanto à sua efetividade.

A aprovação da NOAS e o processo a ela associado, definido como "regionalização da saúde", em que pese promoverem modificações importantes nas relações entre os diversos gestores do SUS ­ estaduais e municipais, mantêm o fio condutor clássico de se viabilizar a política de saúde por meio do financiamento. São os incentivos financeiros (piso da atenção básica ampliada e limites financeiros para a média e alta complexidade), que continuam determinando a configuração das políticas de saúde e reforçando a centralização do sistema.

Além disso, a qualificação de cada microrregião de assistência à saúde está condicionada, dentre vários aspectos, à comprovação da Programação Pactuada e Integrada sob a coordenação do gestor estadual. Isto é, os limites financeiros para todos os municípios do estado já devem estar definidos, considerando a população própria e a referenciada. Para isso, os estados devem ter grande conhecimento da realidade loco-regional, podendo dimensionar a população referenciada e tendo larga capacidade de pactuação. Entretanto, não há como negar que todos os prazos estipulados pela NOAS para operacionalização desse processo de regionalização, não estão sendo cumpridos justamente pelo fato de demandar as condições mencionadas.

Dentre os vários fatores problemáticos da NOAS, destaca-se a ampliação das ações e serviços da Atenção Básica. Isso reforça a convicção daqueles que consideram que a concepção de descentralização tutelada pela esfera federal e operada pelo financiamento continua persistindo. A NOAS, ao ampliar o PAB, denominado PAB-Ampliado, e ao alargar a responsabilidade de atuação dos municípios nesse campo, procura atrelá-la ao mecanismo de recebimento de incentivo financeiro.

Os recursos adicionais são para garantir, especificamente, as áreas de saúde incorporadas pelo Departamento de Atenção Básica, descrito anteriormente. Essas áreas, que dizem respeito ao controle da tuberculose, à eliminação da hanseníase, ao controle da hipertensão arterial, controle da diabetes mellitus, à saúde da criança, da mulher e bucal, já eram objeto de ação dos municípios, mas se subordinavam à lógica do planejamento e da necessidade local. A alteração introduzida reforça seu comprometimento com essas ações. Mais do que isso, quando o MS estabelece um valor adicional ao per capita definido nacionalmente, está procurando preservar seu modus operandi (de fazer política de saúde por meio do financiamento) e reforçar e ampliar o campo da Atenção Básica.

É interessante destacar que os valores do PAB-Ampliado propostos pela Secretaria de Políticas de Saúde (SPS), órgão do MS responsável por sua definição, segue apenas a lógica de incrementos aos valores já existentes. Para se ter uma idéia, em reunião da Tripartite em julho deste ano, a SPS propôs: um adicional de R$ 0,50 ao PAB fixo de todos os municípios; o pagamento de incremento, em novembro de 2001, ao PACS/PSF. Além disso, nessa mesma reunião, propôs a destinação de R$ 150 milhões para aquisição de medicamentos do programa nacional de combate a diabetes e a hipertensão, e a unificação, em médio prazo, de diversos incentivos existentes na atenção básica em um único fundo de financiamento da atenção básica. Essas últimas proposições denotam, mais uma vez, embora se possa questionar se o volume de recursos destinados à compra de medicamentos do programa nacional de combate a diabetes e a hipertensão tenha sido suficiente ou não, a importância prioritária que o MS está atribuindo à Atenção Básica.

Ao que parece, há uma tendência por parte de alguns policy makers do MS em estimular a criação de um financiamento alargado e específico para a atenção básica. Há até quem defenda a necessidade de criação de uma subvinculação de recursos para a Atenção Básica, seja por meio da subdefinição de recursos já anteriormente estabelecidos como da saúde, seja no conjunto dos recursos destinados à Seguridade Social. Vale notar que o texto da Emenda Constitucional 29 (Brasil, 2001), no parágrafo segundo do artigo 7o diz que: "Dos recursos da União apurados nos termos deste artigo, quinze por cento, no mínimo serão aplicados nos municípios, segundo o critério populacional, em ações e serviços básicos de saúde, na forma da lei" (grifo nosso). Essa definição contudo, trata somente dos recursos da União, não dando conta dos recursos estatuais e municipais destinados à saúde.

 

 

Considerações finais

 

A política de saúde pública desenvolvida ao longo dos anos 90, apresenta como principal característica, a ênfase na Atenção Básica entre o conjunto de ações e serviços desenvolvidos pelo SUS.

De um certo ponto de vista, essa estratégia não é distinta daquela recomendada por agências internacionais e por programas de cunho neoliberal, que priorizam as despesas de baixo custo, de preferência focadas na população de baixa renda, não importando qual sejam os argumentos que animam essa recomendação. No Brasil, porém, a ênfase na atenção básica significa, antes de tudo, possibilitar que o conjunto da população seja atingido por esse nível de atenção, o que confere contornos diferentes daqueles subjacentes às propostas neoliberais. Para esse entendimento, basta lembrar que, ainda no início da década dos anos noventa, a condição sanitária era extremamente precária em grande parte dos municípios (80% menores que 10 mil habitantes), de maneira que sua população não era coberta pelo SUS. Levando isso em conta, quando o MS escolheu o PSF como porta de entrada no sistema, entendeu ser essa a melhor estratégia para garantir a universalização de, pelo menos, a Atenção Básica.

Essa preocupação, contudo, não exime o Estado brasileiro da responsabilidade de prover o conjunto das ações e serviços que integram os cuidados com saúde. Em outras palavras, o princípio da integralidade, que garante o acesso da população a todos os níveis da atenção à saúde, não pode, em nome da universalidade da Atenção Básica, ser "esquecido".

Tendo em vista a escassez de recursos, em um ambiente de superávits primários crescentes exigidos pelo Fundo Monetário Internacional, não é descabida a leitura de que a ênfase na Atenção Básica acabe por descuidar dos demais níveis de atenção à saúde. O "desfinanciamento" da alta e da média complexidade ­ sucateando a rede existente e/ou impedindo sua ampliação ­ não só impedirá que a população anteriormente não coberta pelo SUS tenha acesso aos cuidados integrais, como obrigará aquela ­ que atualmente tem acesso aos serviços e ações de Média e Alta Complexidade fornecidos pelo Estado ­ a buscar o setor privado de saúde. Isso na hipótese dessa população ter renda para assim fazer e de esses serviços terem qualidade adequada. De qualquer forma, somente a investigação mais acurada poderá determinar se, de fato, está ocorrendo o "desfinanciamento" da média e alta complexidade.

Por outro lado, não é menos preocupante o fato de os incentivos terem se tornado uma prática constante do MS a partir de 1998 ­ com a instituição do PAB ­ e dos municípios serem estimulados a incorporar os programas que lhes acrescentam receita financeira. Na medida em que esses recursos são vinculados aos programas incentivados pelo MS, como é o caso do PSF, não podendo ser redirecionados para outros fins na área da saúde, muitas vezes os municípios enfrentam situações onde falta o necessário até mesmo para manter sua rede de unidades básicas, quanto mais para os demais serviços de atenção à saúde. Isso é o reflexo da política tutelada da descentralização, que ao incentivar a despesa em determinados programas, impede que os municípios definam livremente sua política de saúde, introduzindo o paradoxo da existência da "pobreza" em um quadro de recursos "abundantes" e garantidos pelos incentivos.

 

 

Referências

 

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NEPP (Núcleo de Estudos em Políticas Públicas), 2001. Avaliação da Descentralização dos Recursos do Ministério da Saúde para a Gestão Plena da Atenção Básica: PAB, PSF/PACS, Combate às Carências Nutricionais, Assistência Farmacêutica Básica e Vigilância Básica. Relatório Final. Brasília: NEPP, Universidade Estadual de Campinas.        

SOUSA, M. F., 2000. Gestão da atenção básica: Redefinindo contexto e possibilidades. Divulgação em Saúde para Debate, 21:7-28.        

 

 

Recebido em 2 de maio de 2002
Aprovado em 20 de setembro de 2002

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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