DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola

 

Debate on the paper by Maria Andréa Loyola

 

 

Antonio Carlos Egypto

Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual, São Paulo, Brasil. E-mail: egypto@uol.com.br

 

 

A medicina e as demandas sociais

O artigo de Maria Andréa Loyola coloca questões absolutamente pertinentes e atuais, que merecem ser amplamente debatidas, pela importância que têm. E que comportam diferentes perspectivas. Procurarei aqui expressar minha visão sobre o tema, ou melhor, sobre uma parte do que foi apresentado por ela.

A vida em sociedade está em constante mutação. Valores e normas morais vão se transformando na mesma medida em que as estruturas sociais o fazem. A sexualidade humana e as estruturas familiares acompanham esse movimento. Na verdade, estão no centro dessa história.

A família extensa, com os seus agregados, foi sendo progressivamente substituída pela família nuclear. Pai, mãe e filhos (cada vez em número menor), no modelo dominante heterossexual, é o que está no nosso imaginário hoje. É o conceito internalizado que temos de família. O que se distingue disso é comumente visto como desestruturação ou desagregação familiar.

Ocorre que as mudanças, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, adquiriram uma velocidade muito maior, já que as distâncias se encurtaram, a comunicação se dá de forma instantânea e os seres humanos se ajustaram a novas condições de vida e de produção, incorporando as novas possibilidades tecnológicas e ampliando sua liberdade.

Tudo isso produziu novas necessidades, modificou as relações, o modo de ver e pensar o mundo e naturalmente os desejos, conscientes ou inconscientes.

Como em todas as fases da nossa história, há uma parcela significativa de pessoas que não tem acesso a esse mundo chamado "pós-moderno". Não por acaso o presidente Lula começou seu mandato elegendo o combate à fome como a maior prioridade, em pleno século XXI. A população de baixa renda vive, portanto, esse processo de forma marginal e centrada em necessidades de sobrevivência primárias.

Mas a sexualidade e a família também mudaram aí. As famílias conduzidas só por mulheres, em grande número estão situadas nos extratos sociais empobrecidos.

Concretamente, as relações sociais e as relações entre os gêneros sofreram grandes transformações que demandam novas respostas. É aí, a meu ver, que se inserem os avanços da medicina.

Foi a mulher contemporânea, que saiu em busca do seu espaço público, que fez nascer a pílula anticoncepcional. E não a pílula que criou essa mulher.

A separação entre sexo e reprodução está sendo concretizada pela tecnologia reprodutiva e seus impressionantes avanços. Mas ela avança para atender a um desejo expresso pela sociedade, pelos novos homens e mulheres que a habitam e pelas novas perspectivas de vida familiar.

As famílias também incluem os filhos adotivos e de outros casamentos. É comum as crianças de classe média freqüentarem duas famílias. Por exemplo, a da mãe (só ou com o padrasto), de segunda a sexta-feira, e a do pai (só ou com a madrasta), nos fins de semana. Têm, assim, quatro genitores. Outras têm apenas um, como ocorre na chamada "produção independente" (ou no assim chamado "abandono do lar"). "Bebês de proveta" completam a vida de muitos casais. Mães convivem com filhos que foram desenvolvidos no útero de outra mulher. Existem tantas configurações familiares que não faz mais sentido usar o conceito de família. É preciso torná-lo plural e falar de famílias.

Quando for possível unir os núcleos de dois espermatozóides ou de dois óvulos, para gerar um ser, um casal homossexual poderá ter um filho biológico. Isso atende a uma grande expectativa dessas pessoas, que hoje buscam constituir sua estrutura familiar por meio da adoção de crianças, o que a legislação só admite em algumas poucas partes do mundo. Um filho biológico ajudaria também a instituir tal estrutura familiar na ordem legal? É possível. Ou a tecnologia estará disponível quando isso já tiver sido conquistado mais amplamente. De todo modo, não é essa tecnologia que vai criar a realidade das famílias homossexuais, que nem precisam de filhos (adotados ou biológicos) para existir.

Com o sexo dissociado da reprodução, ganha mais força a sua outra função ­ a de prover o prazer, freqüentemente minimizado ou ignorado em estudos e trabalhos. Não se trata de instituir a ditadura do orgasmo, via sexologia. Algo tão danoso quanto a repressão tradicional. Mas de reconhecer direitos e educar.

A orientação sexual nas escolas é uma conquista progressiva no Brasil. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação já a incorporaram. O que ela pretende? Produzir reflexão, promover a prevenção de problemas (doenças sexualmente transmissíveis/AIDS, gravidez indesejada na adolescência), enfatizando o direito ao prazer. E isso faz toda a diferença. O discurso científico tradicional fala de um corpo sem desejo, sem sensações ou sentimentos. Um corpo que não é de ninguém, onde a criança e o adolescente não se reconhecem. Um organismo, apenas.

Ao adotar um discurso não moralista, nem sexista, não é a terminologia médica que prevalece, mas uma percepção realista das relações humanas num mundo em mudança. Que pede uma linguagem mais objetiva e clara, evitando as palavras carregadas de valor. Só isso.

O século XXI certamente trará transformações na vida sexual e familiar muito maiores do que podemos imaginar agora, quando ele apenas se inicia. A ciência e a tecnologia, a medicina em especial, encontrarão novas alternativas para atender a este mundo em mudança, como tem acontecido até agora. Por outro lado, os problemas éticos que decorrem de todo esse processo serão objeto de resolução nas esferas política e legal, constantemente. Este é um processo histórico, sem volta. Não há o que lamentar.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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