DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Maria Andréa Loyola

 

Debate on the paper by Maria Andréa Loyola

 

 

Daniela Riva Knauth

Departamento de Medicina Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: knauth@portoweb.com.br

 

 

No artigo Sexualidade e Medicina: A Revolução do Século XX, Maria Andréa Loyola aponta um dos grandes paradoxos da atualidade no que se refere à sexualidade e reprodução: ao mesmo tempo em que as novas tecnologias médicas permitem romper com o modelo tradicional de família e seus equivalentes papeis de gênero (dissociando sexo de reprodução por meio dos métodos contraceptivos e tecnologias reprodutivas), subordinam a sexualidade, os "direitos" e desejos individuais à nova ordem médica. Assim, aquilo que aparentemente representa um avanço no sentido do reconhecimento da diversidade sexual e familiar e, portanto, do caráter eminentemente social destas, é, na verdade, um fortalecimento da perspectiva e do controle biomédico sobre a sexualidade e a reprodução.

Alguns trabalhos sobre o tema, como os de Novaes & Salem (1995) e Strathern (1995), demonstram que a "autorização" tanto jurídica quanto médica para o uso das novas tecnologias ainda seguem os padrões tradicionais de gênero. Assim, a possibilidade aberta por estas tecnologias de prescindir do masculino e mesmo da sexualidade para a procriação (como no caso das mulheres virgens que desejam engravidar), continua a ser percebida pela esfera médica e jurídica como uma ameaça à ordem social. E, apesar de suas infinitas possibilidades, as novas tecnologias médicas continuam a serviço da ordem social tradicional e do capital. Não podemos esquecer que ao propagar o discurso de que a reprodução não está mais presa aos ditames da biologia ­ como por exemplo, a idade para a primeira gravidez ­ a medicina, ao mesmo tempo que estimula as mulheres a investirem em sua carreira profissional, vende seus "produtos", visto que as chances destas mulheres necessitarem de técnicas médicas para engravidar aumentam também com a idade. É dessa forma que muitas mulheres que optam por retardar seu projeto reprodutivo, pensando em liberar-se das pressões sociais e biológicas, acabam "presas" à medicina, com um custo econômico e emocional bastante elevado.

É interessante notar que embora as técnicas de reprodução assistidas tenham interferência sobre a esfera da sexualidade, outras tecnologias médicas disponibilizadas nos últimos anos, não mencionadas no artigo, visaram diretamente este domínio. Este é o caso, por exemplo, das cirurgias de mudança de sexo e, recentemente, do Viagra e seus equivalentes (inclusive as novas versões destinadas às mulheres). Em ambos os casos, a solução para os problemas de sexualidade e mesmo de gênero é dada por meio de uma intervenção sobre o biológico, reforçando o argumento da autora. No caso das cirurgias de mudança de sexo ­ que talvez aponte para a busca do "gênero" destacada no texto como um dos desafios da sexualidade para este século ­ é curioso constatar que apesar do transexualismo ser considerado um "distúrbio de gênero", a única solução proposta e aceita é a reversão do biológico. Ou seja, a verdade sobre o gênero continua a ser o sexo, que no caso dos transexuais deve ser corrigido. Assim, a mudança do nome nos documentos de identificação (carteira de identidade e passaporte) ­ elemento que poderia solucionar parte dos constrangimentos aos quais os transexuais são submetidos ­ só é possível com base no laudo médico que atesta a mudança da genitália (Zambrano, 2003). A identidade de gênero, embora seja um fator fundamental para o diagnóstico da transsexualidade, permanece insuficiente para a identificação do sujeito.

No que concerne os novos medicamentos para os problemas de "disfunção erétil", como o Viagra, várias questões são colocadas. A primeira é, novamente, a solução de um problema sexual através de uma pílula. A sexualidade aparece restrita ao funcionamento dos órgãos sexuais e, portanto, como um problema individual e não relacional. Outra questão colocada por estes medicamentos é a eleição da atividade sexual como a fonte da felicidade e da juventude. E aqui, como no caso da reprodução assistida, o medicamento representa a vitória da ciência e da medicina contra os efeitos da natureza. O idoso, além de ter de permanecer jovem (por meio da prática de atividades físicas), deve manter-se sexualmente ativo. É interessante notar que embora este discurso tenha sido originalmente voltado ao público masculino, já aparece uma nova versão, inclusive de medicamentos, dirigida às mulheres. E embora vários indicadores, como os índices de consumo, já indiquem o sucesso destes medicamentos junto ao público, pouco sabemos sobre suas formas de apropriação e significação.

O que nos resta questionar é em que medida todas essas possibilidades geradas pelos avanços na área médica são capazes de influenciar e determinar o modelo de sexualidade de cada sociedade. Pensando no caso da sociedade brasileira, esta discussão parece restringir-se aos segmentos médios e altos. Não apenas porque o acesso a essas tecnologias é limitado a esses grupos, mas sobretudo porque nos segmentos populares o modelo hierárquico ou tradicional da sexualidade é ainda aquele que prevalece. E, se fenômenos como a monoparentalidade, separações, famílias chefiadas por mulheres etc., são bastante freqüentes, o modelo de família nuclear tradicional ainda permanece como o ideal a ser buscado. Nesse sentido, seria ainda possível falar nos termos de uma "revolução do século XX"?

 

NOVAES, S. & SALEM, T., 1995. Recontextualizando o embrião. Estudos Feministas, 3:65-88.

STRATHERN, M., 1995. Necessidade de pais, necessidade de mães. Estudos Feministas, 3:303-329.

ZAMBRANO, E., 2003. Trocando os Documentos: Um Estudo Antropológico sobre a Cirurgia de Troca de Sexo. Dissertação de Mestrado, Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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