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Maria Andréa Loyola

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil. E-mail: maloy@uerj.br, loyola@ism.com.br

 

 

Antes de mais nada, quero agradecer aos editores de Cadernos de Saúde Publica pela oportunidade que me ofereceram ao colocar este artigo em debate. É gratificante vê-lo discutido por pessoas altamente qualificadas, cujos comentários enriquecem meu texto e contribuem para fortalecer a idéia de um olhar mais amplo sobre a sexualidade na sociedade em que vivemos. Nesse sentido, considero o objetivo de meu trabalho em grande parte atingido. Os comentários falam por si próprios e por isso vou me limitar a esclarecer algumas dúvidas levantadas e a enfatizar contribuições que me pareceram especialmente importantes para ampliar minha reflexão.

Inicialmente, lembraria que a busca de prazer por intermédio do sexo e uma sexualidade desvinculada da reprodução (ainda que limitemos seu conceito a aquele de pulsão sexual) são tão antigas quanto a existência do homem e da mulher. A associação e dissociação entre essas duas dimensões da atividade humana são de fato uma construção social, mas tal constatação não explica nem como nem porque elas ocorrem. A construção social é um processo permanente e inerente às sociedades humanas e notadamente às sociedades que perpetuam suas criações por meio da escrita. O construtivismo por si só não constitui uma garantia contra o essencialismo, e, muitas vezes, serve-lhe de disfarce; sobretudo quando associado ao individualismo e ao subjetivismo metodológico. Ele só tem sentido quando dotado de algum valor heurístico, ou seja, quando contribui para esclarecer os fatos, processos, contextos que justificam os conteúdos e significados das construções que pretendemos explicar ou desejamos entender.

Assim, acredito que ao contrário do que propõe Ana Cristina Santos, apoiando-se em Giddens, a sexualidade humana historicamente dependeu muito mais da criatividade do que de nossa herança natural; e não acredito que ela seja atualmente mais "emancipada e emancipatória" do que foi no passado. O que me parece novo é a aceitação social (ou legitimação) de uma sexualidade voltada exclusivamente para o prazer, como lembra muito bem a comentarista, e de modelos mais variados para atingi-lo (o que não quer dizer que eles nunca existiram). Aliás, seria interessante mapear essas diferentes formas de sexualidade que justificam o uso plural que alguns pesquisadores vêm fazendo do termo ­ sexualidades. Isso poderia nos ajudar a pensar o próprio conceito de sexualidade ou seja, a esclarecer a que estamos nos referindo quando usamos essa palavra: formas diferentes de relação entre os sexos, orientações sexuais distintas, técnicas diferentes de obtenção do prazer, freqüências distintas ou intensidades variadas das relações sexuais, identidades de gênero, etc.

Me parece igualmente pertinente a observação de Santos de que a "orientação sexual não tem de constituir necessariamente um elemento de diferenciação no sentido estrito da relação entre medicina, novos modelos familiares e sexualidades". Mas acho prudente acrescentar que entre os médicos e seus clientes homo e heterossexuais essa diferenciação existe: nem sempre o médico está disposto a apoiar o surgimento de famílias formadas em torno de "sexualidades não tradicionais".

A Sérgio Carrara devo esclarecer que se deixei a impressão de que coloco a sexologia e a medicina no mesmo nível, trata-se de uma falsa impressão. Me parece, ao contrario, que é o próprio comentarista que toma "a sexologia como porta-voz da medicina ou como veículo imediato da medicalização". Já em 1982, Béjin intitula um dos artigos em que me apóio para discutir o papel dos sexólogos ­ Crespúsculo dos Psicanalistas, Manhã dos Sexólogos ­ para mostrar, menos o esvaziamento dessa área pelos psicanalistas em proveito dos médicos (que dela nunca se afastaram e aos quais vieram se juntar outros profissionais não estritamente médicos), mas para enfatizar a criação de um novo discurso sobre a sexualidade, cujo modelo não é mais o da psicanálise. Carrara tem razão quando aponta o lugar subalterno que a sexologia ocupa na hierarquia médica (como os psicanalistas não médicos no campo da psicanálise). Mas isto não invalida o fato de que é a medicina, e não outra disciplina qualquer, que legitima o discurso dos sexólogos. Carrara fez uma leitura absolutamente correta de meu texto quando afirma que "poderíamos (...) pensar a atual medicalização do prazer (...) como uma intensificação de um processo presente desde o século XIX, mas como parte de uma inflexão mais ampla a que assistimos no campo da saúde como um todo e que tem implicado, como no caso das doenças mentais, uma biologização mais completa do humano", e perguntando-se se "tal processo não possuiria uma forte conexão simbólica com a valorização da juventude e com as promessas de superação dos limites do corpo que vemos emergir por toda parte?" Poderíamos nos perguntar também que disciplinas contribuíram para construir essa conexão ? E, a quem cabe em última instância respondê-la ? Ainda que concorde com a oportuna observação de Elizabeth Meloni Vieira, de que é sempre bom lembrar que a medicina nem sempre cumpre o que promete, não posso deixar de lembrar também que, até o presente momento, somente a medicina por meio de tratamentos legitimados por ela (cirurgia plástica, medicamentos antienvelhecimento, indústria cosmética e de modelagem do corpo, como nutrição e musculação, etc.), ou crenças religiosas e esotéricas, podem responder a essas expectativas, muitas vezes de forma nefasta, como em alguns casos de prolongamento da vida.

Por fim, Carrara indaga porque o prazer sexual assim radicalmente autonomizado (da reprodução) deveria necessariamente cair sob controle médico. Esta questão ainda que pertinente só tem sentido quando se estabelece uma relação direta entre ator e discurso disciplinar. Felizmente, algum ou muito prazer estará sempre fora de controle. Mas no que diz respeito à norma (leia-se estímulo) não necessariamente são os médicos que exercem esse controle. Além deles próprios, uma multiplicidade de atores ­ sexólogos, psicanalistas, psicólogos, epidemiólogos, cientistas sociais, assistentes sociais, pedagogos, etc. ­ vêm se encarregando dessa tarefa. Mas ainda hoje, é a medicina apoiada na matemática, e cada vez mais, no direito (como nos casos dos ditos direitos e abusos sexuais) que oferece o discurso mais eficaz para esse controle; ou seja, o argumento "cientificamente" incontornável da "natureza" reforçado pelo da "repetição" e da "jurisprudência".

Mas quem melhor responde a essa questão é o próprio Foucault, como enfatiza Helena Altman em seu comentário: "a medicina moderna é uma medicina social, fundamentada em uma certa tecnologia do corpo social (...) A importância do sexo como foco de disputa política deve-se ao fato de ele se encontrar na articulação entre os dois eixos de orientação do biopoder que se desenvolve a partir do século XIX: o investimento político na vida e na qualidade de vida das populações. Assim, a sexualidade foi investida e tornou-se chave da individualidade, dando acesso à vida do corpo e à vida da espécie, permitindo o exercício de um biopoder sobre a população, a sociedade e a reprodução".

Altman chama a atenção para um ator muito importante nesse processo de medicalização e controle estatístico pela informação da sexualidade: a escola. "Esse controle é operado, geralmente, por professores ­ ligados, na maioria das vezes, à área da biologia ­ ou por vezes, por outros especialistas, como médicos, sexólogos, ou psicólogos"... "O trabalho educacional atualmente desenvolvido sobre este tema sofre forte influência dos campos da medicina e da epidemiologia. Dados estatísticos e demográficos sobre a epidemia de AIDS entre jovens, sobre crescimento de casos de gravidez entre adolescentes e sobre comportamento sexual, são apontados como justificativas e fundamentam a realização de trabalhos de orientação sexual" nas escolas (expressão que vem substituindo nos últimos anos a de educação sexual.

Caberia acrescentar ao elenco de atores "disciplinares" da sexualidade de caráter institucional, para manter a expressão de Foucault, além da mídia, por meio da qual os sexólogos atuam há bastante tempo (Loyola, 1982), as Organizações Não Governamentais (ONGs) cujas atividades giram em torno das sexualidades, dos sexos e dos gêneros: saúde reprodutiva, direitos sexuais, educação sexual, sexualidade do adolescente, orientação sexual, sexualidade na terceira idade que de uma forma ou de outra, mesmo quando têm como objetivo explícito contraporem-se ao discurso médico e/ou epidemiológico acabam por reforçá-lo.

É o que nos faz ver Silvana Inês Weller, em seus comentários quando focaliza o tema da "saúde da mulher". Ela chama a atenção também para um pressuposto fundamental do processo da medicalização que é importante enfatizar: sua "capacidade de intervir eficazmente nos problemas (às vezes enfermidades) vinculados à reprodução". Reprodução da vida mas também da sociedade, uma vez que ela intervém de forma eficaz também politicamente, como quando exclui ou inclui determinadas mulheres do acesso à saúde. Weller sugere, ainda, embora não explicitamente, que a eficacidade do controle médico sobre a sexualidade pode ser maior no caso da medicina preventiva do que da curativa, o que me parece absolutamente correto. Esta relação entre controle da sexualidade e medicina preventiva e curativa é problematizada também por Carlos Eduardo Estellita Lins, que se interroga sobre a relação entre o uso do conceito/noção da sexualidade, controle da sexualidade pela medicina e mutações que vêm operando no seio da própria medicina. O desenvolvimento e aprofundamento dessa relação seria de grande utilidade para os estudos sobre medicalização em geral e sobre medicalização da sexualidade em particular.

Antônio Carlos Egypto chama a atenção para um problema crescente da vida moderna, ou seja, para as mutações que ocorrem no seio da própria família: "as famílias incluem os filhos adotivos e de outros casamentos; é comum as crianças de classe média freqüentarem duas famílias e terem assim 4 genitores; outros têm apenas 1, como na reprodução independente (...); mães convivem com filhos que foram produzidos no útero de outra mulher, etc. Existem tantas configurações familiares que não faz mais sentido usar o conceito de família. É preciso torná-lo plural e falar de famílias". Resta saber se estamos lidando de fato com famílias diferentes e não apenas com formas diferentes de constituir o mesmo tipo de família, isto é, com famílias que não obstante a presença/ausência de um ou mais de um de seus membros tradicionais, seguem ou mantêm entre si, um mesmo modelo de relação.

A Carmita H. Najar Abdo devo dizer que não entendo porque o fato de meu texto basear-se em pesquisas realizadas no Rio (mas não apenas aí) constitui, a priori, uma limitação. Segundo ela, "tal ocorrência, no entanto, acaba por se traduzir em uma realidade parcial que não pode ser considerada como uma tendência." E, continua: "neste sentido e a título de ilustração lembramos as palavras da polêmica professora americana de arte, C. Paglia (1992), a qual entre tantos autores, médicos ou não ­ discute diversos aspectos dessa reconhecida revolução do século XX: 'a natureza ­ violenta, caótica, imprevisível, incontornável ­ faz o homem diferente da mulher e não há como consertar essa desigualdade por códigos de convivência social ou moral. A igualdade política para as mulheres, ainda que desejável e necessária, não irá remediar a distinção entre os sexos, que começa e acaba no corpo".

Apesar de ser necessário saber se a busca de igualdade política para as mulheres tem como objetivo remediar essa diferença, (coisas que não me parecem necessariamente ligadas, nem como uma doença, uma falta, um defeito ou um mau funcionamento do corpo feminino a ser superado) se coletivamente, a observação de Paglia é correta, individualmente isso é possível, como ilustram as cirurgias de mudança ou de redesignação do sexo apontadas pela própria comentarista. Essas cirurgias reivindicadas pelos transexuais masculinos e femininos levam os indivíduos a fazer coincidir ou a adaptar uma identidade sexual, ou melhor, uma forma sexual à uma identidade genérica, de gênero, como bem explicita Daniela Knauth que também chama a atenção para este ponto. Estamos lidando com um problema de gênero, de ordem eminentemente cultural mas que só pode ser corrigido por uma intervenção biológica no sexo (genitais e hormônios), e que paradoxalmente contraria ou põe em xeque a própria definição médica de sexualidade, explicada pela combinação de cromossomas da qual os atributos de gênero são "naturalmente" derivados (Corrêa, 1998).

Por fim, um outro aspecto importante sobre a medicalização da sexualidade, destacado por Knauth diz respeito ao uso do Viagra (e equivalentes) destinados a prolongar a vitalidade sexual (e, portanto, a juventude de homens e mulheres). Para ela, o uso do Viagra, além de ser mais uma das inúmeras soluções medicamentosas ou farmacológicas aos distúrbios sexuais de origem orgânica (no caso dos idosos nem poderíamos falar de distúrbios) faz com que a sexualidade apareça restrita ao funcionamento dos órgãos sexuais e, portanto, como um problema individual e não relacional. Ou também, podemos acrescentar, como um problema estritamente biológico, químico ou mecânico e não pulsional; como um desejo frio, diria Tort (1992), ou como um problema derivado de uma situação em que a máquina substitui a fantasia; ou melhor, em que à maquina humana engendrada pelos biólogos se substitui ao desejo fantasmático dos psicanalistas. Em suma, e para encerrar, estamos lidando com uma nova forma de fantasia sobre o sexo ou com o fim de nossas fantasias sexuais? Ou talvez quem sabe com o fim de nossas fantasias sexuais sobre a sexualidade?

 

Referências

BÉJIN, A., 1982a. Crépuscule des psychanalystes, matin des sexologues. In: Sexualités Occidentales (P. Ariès & A. Béjin, ed.), pp. 159-177, Paris: Seuil.

CORREA, M. V., 1998. Sexo, sexualidade e diferença sexual no discurso médico. In: A Sexualidade nas Ciências Humanas (M. A. Loyola, org.), pp. 69-91, Rio de Janeiro: Eduerj.

LOYOLA, M. A., 1982. Estudo da Atuação das Instituições Sociais no Processo de Reprodução Humano. São Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

TORT, M., 1992. Le Désir Froid ­ Procréation Artificielle et Crise des Repêres Symboliques. Paris: La Découverte.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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