ARTIGO ARTICLE

 

Condição de vida e mortalidade infantil: diferenciais intra-urbanos no Recife, Pernambuco, Brasil

 

Living conditions and infant mortality: intra-urban differentials in Recife, Pernambuco State, Brazil

 

 

Maria José Bezerra GuimarãesI; Neusa Maria MarquesII; Djalma Agripino Melo FilhoII; Célia Landman SzwarcwaldIII

ICentro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Dr. Geraldo de Andrade 101, Recife, PE 52021-220, Brasil
IIHospital das Clínicas, Universidade Federal de Pernambuco. Av. Moraes Rego s/n, Recife, PE 50670-901, Brasil
IIIDepartamento de Informações em Saúde, Centro de Informação Científica e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ 21045-900, Brasil

 

 


RESUMO

Com o objetivo de caracterizar a mortalidade infantil do Recife, analisando desigualdades no risco de morte e sua relação com a condição de vida da população, realizou-se um estudo ecológico, de base censitária. Os dados sobre os 770 óbitos infantis e 27.965 nascidos vivos, referentes a 1995, foram obtidos em Declarações de Óbito e de Nascido Vivo. Indicadores provenientes do Censo Demográfico de 1991, sobre abastecimento de água, instalação sanitária, coleta de lixo, analfabetismo, anos de estudo, renda e densidade intradormitório, constituíram, por meio de análise fatorial, um indicador sintético da condição de vida de cada bairro. Com base nesse indicador, os bairros foram agrupados, segundo a técnica cluster, em quatro estratos. No estrato de melhor condição de vida, os coeficientes de mortalidade infantil, neonatal e pós-neonatal foram 23,94; 17,66 e 6,28 por mil nascidos vivos, respectivamente; e no de pior: 32,04; 20,24 e 11,80. De modo geral, detectou-se uma relação inversa entre a condição de vida dos estratos e a magnitude da mortalidade infantil por grupo etário e causa básica, revelando desigualdades ocultas nos indicadores médios da cidade.

Palavras-chave: Mortalidade Infantil; Indicadores Sociais; Condição de Vida; Indicadores de Saúde


ABSTRACT

The objective of this study was to show infant mortality differentials in different areas of Recife, analyzing the relationship between living conditions and mortality risk. An ecological study design compared infant mortality coefficients in 1995 with living conditions indicators obtained from the 1991 National Demographic Census. Information on the 770 infant deaths and 27,965 live births were collected from death and birth certificates. Information on water supply, sanitation, garbage collection, literacy, schooling, income, and overcrowding were used to establish a compound indicator for living conditions, constructed through factor analysis. The neighborhoods were then ordered according to the level of living conditions and grouped in 4 clusters, through hierarchical cluster analysis. Infant, neonatal, and post-neonatal mortality coefficients were 23.94, 17.66, and 6.28, respectively, for cluster I; and 32.04, 20.24, and 11.80 for cluster IV. In general, an inverse relationship was found between infant mortality and living conditions in clusters from Recife, revealing inequalities that are disguised when coefficients are expressed as averages for the entire city.

Key words: Infant Mortality; Social Indicators; Living Conditions, Health Status Indicators


 

 

Introdução

No Brasil, a acentuada desigualdade na distribuição de renda, no acesso aos recursos de saúde, no saneamento básico, na educação e em outros constituintes do padrão de vida da população, tem se revelado por meio de profundas diferenças no risco de morte dos diversos estratos sociais (Oliveira & Mendes, 1995; Simões & Monteiro, 1995).

Para a apreensão de diferenciais de mortalidade e de outros indicadores de saúde, a estratificação do espaço segundo a condição de vida da população tem sido recomendada (Castellanos, 1991; Paim, 1997; Possas, 1989). No tocante à mortalidade infantil, a observação de desigualdades em seus níveis é fundamental para a compreensão das relações entre saúde e condições sócio-econômicas e ambientais, além da disponibilidade, utilização e eficácia do sistema de atenção à saúde (Oliveira & Mendes, 1995).

Segundo estimativas referentes a 1990, a mortalidade infantil no Brasil situava-se em 45,3 por mil nascidos vivos (mil NV). Nesse ano, em Pernambuco, o coeficiente era de 67,0 por mil NV, próximo ao da Região Nordeste (63,1 por mil NV) (Simões, 1998). No Recife, esse indicador vem acompanhando a tendência nacional de declínio desde o início do Século XX, sendo, em 1994, de 33,5 por mil NV (SMS, 1997).

Este estudo tem como objetivo caracterizar o perfil da mortalidade infantil do Recife, em 1995, descrevendo e analisando, no espaço urbano desagregado em estratos de condição de vida, as desigualdades no risco de morte entre os menores de um ano. Visa a contribuir com o planejamento de políticas públicas direcionadas ao problema, capazes de reduzir iniqüidades.

 

Material e métodos

Os dados estudados foram relativos ao Município do Recife, capital de Pernambuco, situado na Região Nordeste do Brasil. O Recife possui área totalmente urbana de 219km², constituída por 94 bairros, onde vivem 1.346.045 habitantes (1996), com densidade demográfica de 6.440 habitantes/km² (IBGE, 1996). No estudo, do tipo ecológico e de base censitária, os coeficientes de mortalidade infantil, referentes ao ano de 1995, foram comparados com indicadores de condição de vida relativos ao ano de 1991. Os dados sobre os 770 óbitos em menores de um ano e os 27.965 nascidos vivos foram obtidos em Declarações de Óbito (DO) e em Declarações de Nascido Vivo (DNV), coletados nas Secretarias de Saúde do Recife e do Estado de Pernambuco.

Como forma de validação, os dados referentes ao município e ao bairro de residência constantes nas DO e DNV foram revisados, utilizando-se cadastros oficiais de logradouros da cidade (Secretaria Municipal de Finanças, Código de Endereçamento Postal e Cadastro de Assentamentos Populares). Detectaram-se 8,3% de óbitos e 1,7% de nascidos vivos residentes em outros municípios originalmente declarados como residentes no Recife. Entre os residentes na cidade, 22,1% apresentavam, em suas declarações, bairros não compatíveis com os fornecidos pelos cadastros oficiais de logradouros. Este procedimento foi, portanto, essencial para minimizar as possibilidades de viés. Porém, devido ao grande número de documentos (inicialmente 840 DO e 28.549 DNV), limitou o período de estudo da mortalidade infantil ao ano de 1995.

O Censo Demográfico de 1991 constituiu a fonte dos dados sobre condição de vida (IBGE, 1991). Para cada bairro, calcularam-se sete indicadores: proporção de domicílios (particulares permanentes) com abastecimento adequado de água (por meio de canalização interna de rede geral ou de poço ou nascente próprios), de domicílios com instalação sanitária adequada (por rede geral ou de fossa séptica), proporção de domicílios com coleta direta do lixo, proporção da população de 10 a 14 anos analfabeta, proporção de chefes de domicílios com 3 anos ou menos de estudo, de chefes de domicílios com renda mensal menor ou igual a dois salários mínimos e densidade intradormitório (média de moradores por dormitório). Esses indicadores constituíram um indicador sintético da condição de vida da população, segundo análise fatorial (técnica de componente principal). A análise fatorial reduz um grande número de variáveis a um menor número, que passam a ser denominadas de fatores. As variáveis que formam um fator precisam estar correlacionadas umas às outras para que o modelo seja apropriado. A técnica produz coeficientes de regressão (cargas ou loadings fatoriais) que indicam a relação entre o fator e cada variável original. Além disso, determina o porcentual da variância total explicado para cada fator extraído (Tabachnick & Fidell, 1996). Neste estudo, entre os fatores extraídos, selecionou-se o que explicou uma variância maior que 1 (autovalor > 1). Os valores do fator extraído (escores fatoriais) são estimados por regressão. Esse fator constituiu o indicador sintético de condição de vida (ICV).

Para a obtenção de estratos de condição de vida, o ICV foi submetido a uma técnica de agrupamento (hierarchical cluster analysis), visando a identificação de quatro aglomerados de bairros com similares condições de vida. A análise de cluster é uma técnica que se presta a esse objetivo, agrupando casos relativamente homogêneos de uma determinada variável (Norusis, 1990). O estrato I foi constituído pelos bairros de "elevada condição de vida"; o II pelos de "intermediária condição de vida"; o III pelos de "baixa condição de vida" e, finalmente, o IV pelos bairros de "muito baixa condição de vida".

Calcularam-se, para cada um dos estratos, os coeficientes de mortalidade infantil por mil nascidos vivos segundo grupo etário (neonatal e pós-neonatal) e causa básica. Para a determinação dos coeficientes de mortalidade, seguiram-se as recomendações do Washington State Departament of Health, onde para a obtenção de taxas estáveis, o número de eventos do numerador não deve ser inferior a cinco (WSDH, 2000). Este critério vem sendo utilizado por alguns autores, a exemplo de Turrell & Mengersen (2000), ao estudarem a mortalidade infantil em pequenas áreas urbanas da Austrália. Assim, os estratos III e IV foram agregados para o cálculo dos coeficientes de mortalidade por malformações congênitas, doenças infecciosas intestinais, broncopneumonias e demais causas. A determinação da causa básica das mortes seguiu as recomendações da 9a Classificação Internacional de Doenças ­ CID ­ (OMS, 1980), vigente no Brasil no período em que ocorreram os óbitos. Para descrição das desigualdades intra-urbanas da mortalidade infantil, determinaram-se as razões entre as taxas, adotando-se o estrato I como referência.

 

Resultados

A desigualdade de condição de vida e a estratificação do espaço urbano

Os indicadores sobre a condição de vida dos bairros apresentaram, entre os limites inferior e superior, uma diversidade de valores, expressando a heterogeneidade intra-urbana existente (Tabela 1). A proporção de domicílios com instalação sanitária adequada foi mais baixa que a de abastecimento adequado de água e a de coleta direta do lixo.

Em relação à densidade intradormitório ­ indicador que reflete a aglomeração intradomiciliar, principalmente noturna e, portanto, durante o período de maior convivência dos habitantes do domicílio no mesmo ambiente ­ detectou-se uma diferença de 121% entre o maior (3,1) e o menor (1,4) valor observado.

Em dois bairros, Pau de Ferro e bairro do Recife, a proporção da população de 10 a 14 anos analfabeta foi de 46,2% e 48,8%, respectivamente, representando cerca da metade da população adolescente precoce. Nos bairros Passarinho e Ilha Joana Bezerra, essa proporção chegou a 37,1%, e, em Guabiraba, a 28,8%. Nestes três bairros, cerca de quatro em cada cinco chefes recebiam menos de dois salários mínimos mensais. Para os bairros Alto José do Pinho, Alto José Bonifácio, Guabiraba, Bomba do Hemetério e Coelhos, entre 75% e 79% dos chefes de domicílio recebiam menos de dois salários mínimos.

Quanto à análise fatorial, inicialmente obtiveram-se os coeficientes de correlação entre os sete indicadores de condição de vida referentes aos 94 bairros (Tabela 2), todos significativos no nível 0,01. As correlações positivas variaram de 0,55 (entre coleta direta de lixo e instalação sanitária) a 0,95 (entre escolaridade e renda dos chefes dos domicílios) e as negativas, de -0,61 a -0,85. Este padrão de correlações contribuiu para que apenas um fator, com autovalor acima de um, fosse extraído, explicando 80,60% da variância total. Esse fator, representado por escores, compôs o ICV de cada bairro. As cargas ou loadings fatoriais entre o ICV e os sete indicadores que o constituiu foram positivas quando os valores ascendentes dos indicadores correspondiam à piora da condição mensurada (Tabela 3), sendo esta a orientação do fator sintético extraído. Os indicadores com maiores cargas fatoriais foram os relativos às características do chefe da família: anos de estudo (0,98) e renda (0,94). O indicador com menor carga, embora ainda elevada, foi referente à coleta de lixo (-0,78). Segundo os valores das cargas fatoriais, os indicadores relativos à educação, renda e aglomeração no dormitório explicaram melhor o fator extraído do que os indicadores referentes ao abastecimento de água, instalação sanitária e coleta de lixo.

 

 

De acordo com o fator extraído (ICV), enquanto expressão sintética dos indicadores relacionados à condição de vida, o bairro considerado em melhor posição foi Aflitos e o pior, o bairro do Recife (Figura 1). Os estratos de condição de vida foram constituídos por diferentes números de bairros. O estrato I, considerado de "elevada condição de vida", por 28 bairros. O II, com "intermediária condição de vida", foi o que apresentou maior número de bairros (34). O estrato III, com "baixa condição de vida", foi constituído por 26 bairros. Por fim, o estrato IV, com "muito baixa condição de vida", foi o que apresentou menor número de bairros (6).

A desigualdade intra-urbana da mortalidade infantil

Para o Recife, os coeficientes de mortalidade infantil, neonatal e pós-neonatal foram, respectivamente, 27,53, 18,84 e 8,69 por mil NV (Tabela 4). As afecções perinatais representaram a principal causa de morte infantil, com coeficiente de mortalidade de 14,95 por mil NV. As malformações congênitas, a segunda causa, com coeficiente de mortalidade de 4,08 por mil NV. As broncopneumonias e as doenças infecciosas intestinais apresentaram igual coeficiente de mortalidade (2,68 por mil NV).

O estrato I, de "elevada condição de vida", foi aquele que apresentou os menores coeficientes (Tabela 4): mortalidade infantil de 23,94 por mil NV, neonatal de 17,66 por mil NV e pós-neonatal de 6,28 por mil NV. Nesse estrato, os coeficientes de mortalidade em menores de um ano por afecções perinatais (14,22 por mil NV), broncopneumonias (2,09 por mil NV) e doenças infecciosas intestinais (1,35 por mil NV) também apresentaram os menores valores entre os estratos. O coeficiente de mortalidade por malformações congênitas de 4,19 por mil NV foi o segundo maior de todos os estratos.

No estrato II, de "intermediária condição de vida", conforme as Tabelas 4 e 5, os coeficientes de mortalidade infantil (27,15 por mil NV), neonatal (18,79 por mil NV) e pós-neonatal (7,37 por mil NV) foram, respectivamente, 13%, 6% e 33% superiores às taxas do I. Os coeficientes de mortalidade infantil por afecções perinatais (14,52 por mil NV), broncopneumonias (2,82 por mil NV) e doenças infecciosas intestinais (2,73 por mil NV) foram, respectivamente, 2%, 34% e 102% maiores do que aqueles observados no estrato I. A taxa de mortalidade por malformações congênitas (3,76 por mil NV) foi 10% menor do que a observada no estrato I.

 

 

O estrato III, de "baixa condição de vida", registrou coeficientes de mortalidade infantil (30,25 por mil NV), neonatal (19,46 por mil NV) e pós-neonatal (10,68 por mil NV) maiores do que os do I: 26%, 10% e 70%, respectivamente (Tabelas 4 e 5). Em relação às causas básicas de óbito infantil, o coeficiente de mortalidade por afecções perinatais (15,52 por mil NV) foi 9% superior ao observado no estrato I. Os coeficientes por malformações congênitas (4,43 por mil NV), doenças infecciosas intestinais (3,49 por mil NV) e broncopneumonias (2,92 por mil NV) foram calculados para o agregado dos estratos III e IV. As duas últimas causas apresentaram, respectivamente, valores para o agregado dos estratos III e IV 165% e 41% superiores aos observados no I.

Os coeficientes de mortalidade infantil (34,04 por mil NV), neonatal (20,24 por mil NV), pós-neonatal (11,80 por mil NV) e por afecções perinatais (20,24 por mil NV), observados no estrato IV, de "muito baixa condição de vida", foram, respectivamente, 34%, 15%, 88% e 42% maiores do que os do I (Tabelas 4 e 5).

Em síntese, à medida em que piorou a condição de vida nos estratos, observou-se um gradiente crescente dos coeficientes de mortalidade infantil, neonatal e pós-neonatal. Esse mesmo comportamento foi verificado para os coeficientes de mortalidade infantil por afecções perinatais, broncopneumonias e doenças infecciosas intestinais. O aclive mais acentuado ocorreu nas taxas do componente pós-neonatal e por doenças infecciosas intestinais. Em relação às malformações congênitas, não se observou o referido gradiente.

No Recife e em seus quatro estratos, predominou o componente neonatal da mortalidade infantil. Todavia, no estrato I, o componente neonatal foi 2,8 vezes maior do que o pós-neonatal; no II, essa razão foi de 2,2; no III, de 1,8 e no estrato IV, de 1,7 (Tabela 4). Quando piorou a condição de vida nos estratos, a participação do componente neonatal foi, portanto, diminuindo proporcionalmente.

As afecções perinatais constituíram a primeira causa de óbito em todos os estratos de condição de vida, seguidas das malformações congênitas. Nos estratos I e II, as broncopneumonias representaram a terceira causa de óbito e no III, a quarta. Nos estratos de "melhor condição de vida", I e II, as doenças infecciosas intestinais constituíram a quarta causa de óbito, enquanto que nos de "pior condição de vida", III e IV, ocuparam a terceira posição (Tabela 4).

 

Discussão

A abordagem da situação de saúde segundo condições de vida ainda apresenta limitações conceituais, metodológicas e técnicas, inclusive pela dificuldade de operacionalização de variáveis sociais (Silva Jr., 1995). Diferentes recortes da realidade podem ser obtidos, dependendo das variáveis de condição de vida selecionadas. Neste estudo, procurou-se operacionalizar o conceito de condição de vida por meio de um conjunto de variáveis inseridas no processo de reprodução social, de acordo com o proposto por Castellanos (1991), nas dimensões predominantemente ecológicas (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo e número de moradores por dormitório), de consciência e conduta (analfabetismo, anos de estudo) e econômica (renda). Por outro lado, as variáveis utilizadas têm sido freqüentemente associadas a indicadores sensíveis a alterações das condições de subsistência, como mortalidade infantil e expectativa de vida.

Ressalta-se, no entanto, que a magnitude dos diferenciais de mortalidade infantil, segundo estratos espaço-populacionais de condição de vida, está relacionada não somente aos procedimentos metodológicos adotados para sua apreensão, mas, especificamente, com a formação e a dinâmica de cada sociedade em particular. No Recife, o acúmulo desigual dos tempos, conforme expressão de Santos (1991), revela-se por intermédio de condições heterogêneas de vida entre os bairros da cidade. A ocupação e a apropriação do espaço pela população não ocorrem aleatoriamente, e sim, com base em um conjunto de condicionantes econômicos, sociais e culturais que tendem a conformar conglomerados com padrões semelhantes de condições de vida e, conseqüentemente, de saúde em determinadas unidades territoriais (Castellanos, 1991). Esta premissa tem no espaço urbano sua expressão mais evidente: uma cidade "produz" o lugar dos ricos, dos pobres e da indústria, bem como estabelece fluxos de circulação de bens e serviços (Barcellos & Bastos, 1996). O espaço urbano apresenta-se, portanto, marcado pela heterogeneidade, onde os grupos populacionais de suas diversas frações apresentam diferentes padrões de condição de vida e estão sujeitos a diferentes riscos de adoecer e morrer, como foi detectado neste estudo.

A unidade de análise em estudos de condição de vida, ou como denomina Castellanos (1991), unidade geográfico (espaço)-populacional, pela possibilidade de ser a unidade onde se operam os processos determinantes das condições de vida, onde se expressam os problemas de saúde e onde se desenvolvem ações de intervenção, deve ser a mais homogênea possível no seu interior. No entanto, cada unidade mínima de desagregação dos dados tem limitações inerentes quanto ao estudo das desigualdades espaciais. O bairro, usado neste estudo, representou uma importante desagregação espacial da cidade do Recife, sendo capaz de detectar diferenciais importantes nos indicadores relativos à condição de vida. Embora não se desconheça a presença de diferentes níveis de heterogeneidade interna, dependendo do bairro em questão, a focalização inicial nesta unidade de análise, que apresenta limites definidos, facilita o planejamento e a operacionalização de medidas que visem a diminuir as iniqüidades.

Em relação a outra unidade de análise utilizada neste estudo, o estrato, constituído por um aglomerado de bairros, seus indicadores, obviamente, são referentes a uma média da variação dos subgrupos que o compõem, onde, as diferenças internas, quando existentes, não são evidenciadas. A constituição de estratos mais homogêneos quanto à condição de vida, provavelmente apreenderia maiores desigualdades intra-urbanas da mortalidade infantil. Apesar dessa limitação, o estrato foi capaz de revelar importantes diferenciais da mortalidade infantil no Recife, evidenciando diferentes padrões do problema e sua estreita relação com a condição de vida da população.

Vários estudos têm demonstrado a importância de fatores ligados aos processos sociais ­ como educação, saneamento, renda, habitação e acesso a bens e serviços ­ na determinação da mortalidade infantil (Ayçaguer & Macho, 1990; Ferreira, 1990; Fischmann & Guimarães, 1986; Issler et al., 1996; Menezes et al., 1996; Victora et al., 1988). Os diferenciais intra-urbanos dos coeficientes de mortalidade infantil evidenciados neste estudo reforçam, em uma dimensão mais complexa de causalidade, a relação existente entre o risco de morte em menores de um ano e a condição de vida da população.

Além da perversa desigualdade intra-urbana da mortalidade infantil no Recife, a magnitude dos coeficientes da cidade e de seus estratos era superior à média de muitas capitais brasileiras, mesmo em anos anteriores ao estudado. São Paulo, por exemplo, em 1995, apresentava coeficiente de 23,78 por mil NV (Ortiz, 1998), semelhante ao apresentado no Recife, pelo estrato I, de "elevada condição de vida", porém distante daquele do estrato de pior condição de vida, que por sua vez situava-se próximo ao de Porto Alegre (33,9 por mil NV) em 1980 (Fischmann & Guimarães, 1986), e ao de Salvador (31,6 por mil NV) em 1988 (Paim & Costa, 1993).

A menor desigualdade apresentada pelo componente neonatal em relação ao pós-neonatal à medida em que piorou a condição de vida dos estratos, indica a diferenciação dos processos envolvidos na ocorrência da mortalidade infantil no espaço da cidade. A mortalidade pós-neonatal, mais sensível à melhoria da qualidade de vida e a determinadas intervenções na área de saúde, apresentou coeficientes menores em relação à mortalidade neonatal, porém diferenciais, entre os estratos, mais acentuados. Todavia, cabe ressaltar que nos diferenciais, embora pouco acentuados, das taxas de mortalidade neonatal, provavelmente estão embutidos fatores relacionados ao controle da gestação, à assistência ao parto e ao acesso aos recursos de assistência neonatal.

O coeficiente de mortalidade neonatal do Recife e dos estratos, em 1995, encontrava-se a uma distância considerável dos registrados em certos países latino-americanos no final da década anterior, como Cuba (8,1 por mil NV) em 1988, e Chile (9,1 por mil NV) em 1989. Esta distância é bem mais acentuada quando as taxas encontradas são comparadas com a de países desenvolvidos, referentes ao início da década de 1990: Estados Unidos (5,8 por mil NV), Reino Unido (4,3 por mil NV) e Japão (2,4 por mil NV), em 1992 (Leal, 1996). Em relação às taxas de mortalidade pós-neonatal, os níveis encontrados em todos os estratos, mesmo os de melhor condição de vida, são bastante elevados quando comparados aos de países onde as desigualdades sociais são menores e o acesso e a qualidade da atenção à saúde são melhores, como Cuba (3,83 por mil NV) em 1988 (Andrade, 1990).

Quanto às causas de óbito no primeiro ano de vida, as afecções perinatais ao representarem a principal causa em todos os estratos, refletem o peso dos óbitos neonatais na constituição da mortalidade infantil do município. A magnitude dos coeficientes apresentados e os diferenciais observados entre os estratos por este grupo de causas (42% mais elevada no estrato de pior condição de vida em relação ao de melhor) constituem um grande desafio para o enfrentamento dos níveis de mortalidade infantil e de suas desigualdades no Recife, exigindo investimentos específicos no setor saúde.

As broncopneumonias ainda representaram uma importante causa de morte no primeiro ano de vida no Recife, principalmente nos estratos de pior condição de vida (III e IV), cujos coeficientes de mortalidade chegaram a ser 41% maiores que no estrato de melhor condição de vida (I). A relação entre condições sócio-econômicas e os níveis de mortalidade por doenças respiratórias é conhecida de longa data. Alguns autores destacam a associação entre mortalidade por pneumonia em menores de 1 ano e condições sociais da família; em particular a aglomeração domiciliar e variáveis expressas por meio do baixo peso ao nascer, grau de instrução dos pais e renda familiar (César et al., 1997). Neste estudo, os diferenciais intra-urbanos encontrados no nível ecológico, refletem as referidas associações, enquanto expressões de condições heterogêneas de vida.

Quanto às doenças infecciosas intestinais, o coeficiente de mortalidade do Recife foi cerca de duas vezes superior ao do Município de São Paulo no ano de 1993 (1,4 por mil NV) (Monteiro & Nazário, 1995). Entre os estratos, diferentes realidades foram observadas, com razões de taxas bastante acentuadas: o risco de morte por doenças infecciosas intestinais chegou a ser 2,65 vezes maior nos estratos III e IV que no I. Os marcantes diferenciais intra-urbanos evidenciados no risco de morte por estas causas, refletem a forte relação das doenças infecciosas intestinais com as condições de vida do Recife, retratando um quadro de profunda desigualdade.

O perfil de mortalidade infantil do Recife e de seus estratos, com níveis mais elevados que a média de muitas cidades brasileiras e de alguns países latino-americanos, por um lado, e por outro, com marcantes desigualdades intra-urbanas, reflete as diferenças na conquista dos direitos de cidadania pelos vários setores da sociedade brasileira e, em particular, por aqueles residentes no Recife. Nos acentuados diferenciais de mortalidade pós-neonatal, por broncopneumonias e por doenças infecciosas intestinais, a situação intra-urbana de condição de vida, caracterizada por um quadro de iniqüidades, exerce papel fundamental. Por fim, ao demonstrar diferentes padrões intra-urbanos de condição de vida e de mortalidade infantil, este estudo evidencia que os indicadores médios do Recife ocultam importantes desigualdades.

 

Referências

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Recebido em 7 de agosto de 2002
Versão final reapresentada em 23 de janeiro de 2003
Aprovado em 9 de maio de 2003

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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