RESENHAS

 

 

Romeu Gomes

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. romeu@iff.fiocruz.br

 

 

NU & VESTIDO: DEZ ANTROPÓLOGOS REVELAM A CULTURA DO CORPO CARIOCA. Miriam Goldenberg (organizadora). Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. 414 pp.
ISBN: 85-0106-260-X

O título Nu & Vestido, como observa a organizadora, foi inspirado na obra O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss. Tanto numa quanto noutra obra, as díades (nu/vestido e cru/cozido) não são pensadas apenas como estados de vestimenta e alimento, respectivamente, mas servem também como referências facilitadoras para classificar pessoas, coisas, estilos de vida, sentimentos, rituais, crenças e valores. Essas díades são espaços privilegiados para se refletir acerca da oposição entre natureza e cultura.

Os corpos das pessoas são a temática central do livro. Corpos que se cobrem, se descobrem e encobrem, dentre outros aspectos, traços identitários pessoais e grupais, construídos socialmente.

Como o próprio subtítulo indica, dez antropólogos, brasileiros e estrangeiros, distribuem-se em nove estudos em que se propõem a desvendar a cultura do corpo carioca. Apesar de os autores focalizarem sua análise na Cidade do Rio de Janeiro, no final do século XX e início do século XXI, suas interpretações se deslocam dos casos e ganham tal densidade que conseguem ultrapassar os limites espaciais e temporais, promovendo uma polissemia corporal.

Os estudos, em ordem de capítulos, com os seus focos e respectivos autores se configuram da seguinte forma: (1) a valorização e a transformação do corpo (Goldenberg & Ramos); (2) imagens identitárias cariocas (Gontijo); (3) a corpolatria com busca dos (h) alteres-ego (Malysse); (4) os corpos sob o efeito dos anabolizantes (Sabino); (5) a cirurgia plástica no universo de beleza do Rio de Janeiro (Edmonds); (6) o corpo e a classificação da cor numa praia carioca (Farias); (7) a relação entre estética e política (Fry); (8) o corpo da bruxa num leitura moderna (Osório) e (9) a construção de masculinidade a partir da vestimenta do homem (Dutra).

São nove estudos que procuram: descrever etnograficamente especificidades dos corpos cariocas, interpretar etnologicamente tais singularidades e ensaiar uma reflexão que, juntos ou separados, podem servir para uma teoria antropológica do corpo em geral. Dentre os estudos, a título de ilustração, podem ser destacados o primeiro e o terceiro.

No primeiro estudo, Goldenberg & Ramos, têm como foco a valorização e a transformação do corpo, tomando como ponto de partida a referência da ideologia do body building expressa na "cultura da malhação". Seguem sua análise passando pelo corpo (des) coberto, observando que nem sempre o nu se associa a ser indecente e vestido a ser decente. Muitas vezes, o nu pode ser menos indecente do que certas vestimentas ou formas físicas. Continuando essa reflexão, assinalam que, dentro da moral da "boa forma", o corpo sem marcas indesejáveis, a exemplo das rugas, e sem excessos, como a gordura, mesmo nu, pode ser considerado decentemente vestido. Os autores, na última parte do seu estudo, analisam a valorização do corpo nas camadas médias do Rio de Janeiro, observando que o corpo pode se tornar um valor que tanto identifica um indivíduo como parte de um grupo quanto o diferencia de outros. Concluem que o corpo pode sintetizar três idéias que se articulam entre si: insígnia ou emblemas, grife ou moda e prêmio ou medalha.

O terceiro estudo, de autoria de Malysse, antropólogo francês, se destaca pela exposição metodológica clara e densa, servindo como referência para se desenhar estudos etnográficos. Colocando-se, primeiramente, na situação de turista, esse autor analisa as interações sociais como encontros entre os corpos, demarcados por contatos com o outro e com si próprio. Segue textualizando a construção corporal nas academias, a moda corporal como expressão de si, a relação corpolatria-cordialidade e o corpo como expressão de arte. Por último, Malysse, retomando o título de seu estudo, acentua que no universo da corpolatria, o corpo se traduz em alter ego e o ego se mede pelo peso dos halteres erguidos no cotidiano.

Esses dois estudos e os demais que compõem a obra vêm ao encontro de um empreendimento, que continua atual, de se pensar a relação entre corpo e sociedade. Castro (2003) aponta uma das implicações dessa relação que é a do redesenhamento do corpo em busca da definição de identidades e do desenvolvimento de projetos do self. Para a autora, nesse redesenhamento ora o indivíduo se sobrepõe à sociedade, ora o inverso ocorre.

Essa reflexão pode ser ampliada se for tomada como referência a modernidade tão bem descrita por Giddens (2002). Nesse cenário, como assinala esse conhecido sociólogo inglês, o corpo, cada vez menos visto como uma "entidade", se constrói reflexivamente pela experiência de ser. Segundo ele, em meio às esferas da reprodução biológica, da engenharia genética e da intervenção médica, o corpo pode ser visto como uma questão de escolhas e opções. Ancorada ainda nesse autor, a discussão pode ganhar maior densidade de análise na medida em que aspectos do corpo são pensados em sua relevância para o eu e para a auto-identidade. Assim, a aparência, a postura corporal, a sensualidade e os regimes a que o corpo se submete podem ser categorias analíticas para se interpretar a inserção dos corpos nas interações da vida cotidiana.

Outro desdobramento que a leitura da obra em tela pode proporcionar, articulada com a análise de outros autores, é uma maior compreensão do corpo como metáfora. Entendendo esse conceito à luz de (Bourdieu, 2002), como transferências analógicas de esquemas, pode-se considerar que o corpo tanto serve para falar da sociedade como esta pode ser utilizada para dele tratar.

O livro Nu & Vestido: Dez Antropólogos Revelam a Cultura do Corpo Carioca, organizado por Mirian Goldenberg, devido à sua riqueza, pode suscitar outros diálogos com outros textos das ciências sociais. Com ou sem esses diálogos, sua leitura em si pode ser importante para todos os profissionais de saúde que buscam múltiplos olhares sobre o corpo humano. Com base em um olhar ampliado, tanto no ato de vestir como no de despir, é possível fugir de uma prática em que os corpos são considerados apenas como uma matéria inerte, excluídos de sua subjetividade e de seus significados (Silva, 2001). Esse não reducionismo se torna viável à medida em que se articule a visão anatomofisiológica com a dimensão simbólica que o corpo pode assumir na doença e na saúde, prestando atenção às narrativas corporais que se constroem reflexivamente entre personagens, enredos e cenários.

 

BOURDIEU, P., 2002. Esboço de Uma Teoria da Prática, Precedido de Três Estudos de Etnologia Cabila. Oeiras: Editora Celta.

CASTRO, A. L., 2003. Culto ao Corpo e Sociedade: Mídia, Estilo de Vida e Cultura de Consumo. São Paulo: Annublume/Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

GIDDENS, A., 2002. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

SILVA, A. M., 2001. O corpo no mundo: Algumas reflexões acerca da expectativa de corpo atual. In: A (Des)Construção do Corpo (J. C. Granado, org.), pp. 11-33, Blumenau:Edifurb.

 


 

Francisco M. Salzano

Departamento de Genética, Instituto de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. francisco.salzano@ufrgs.br

 

 

EPIDEMIOLOGIA E SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Carlos E. A. Coimbra Jr., Ricardo Ventura Santos & Ana Lúcia Escobar (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ABRASCO, 2003. 257 pp.
ISBN: 85-7541-022-9

O presente livro divulga contribuições apresentadas em uma oficina de trabalho denominada Saúde e Epidemiologia das Populações Indígenas no Brasil, realizada durante o V Congresso Brasileiro de Epidemiologia, promovido pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) em 2002. Ele pode ser considerado como uma seqüência e atualização de coletâneas anteriores realizadas pelos organizadores (Coimbra, 1991; Santos & Coimbra, 1994; Santos & Escobar, 2001). Um exame a esses trabalhos anteriores revela que embora muitos autores apareçam em todos, há também uma sucessão de outros especialistas, o que demonstra a vitalidade dos estudos e pesquisas que estão sendo desenvolvidos na área. Na verdade, essas investigações podem ser separadas em dois períodos bem marcados, antes e depois que Carlos E. A. Coimbra Jr. e Ricardo Ventura Santos iniciaram e desenvolveram seu programa de estudos entre esses povos.

As contribuições ao livro foram preparadas por 28 autores, que trabalham em número equivalente de instituições tanto universitárias como de assistência à saúde, distribuídas por 12 cidades de nove unidades da federação, localizadas entre aproximadamente 30º de latitude sul (Porto Alegre) até próximo da Linha do Equador (Manaus). Isto possibilitou ampla representatividade tanto entre estudiosos como com relação aos grupos indígenas estudados. Os assuntos cobertos foram também bastante abrangentes, envolvendo aspectos mais específicos, como a saúde bucal, mas também nutrição em diferentes faixas etárias, inclusive em idosos; detalhes epidemiológicos relacionados a doenças infecciosas e crônico-degenerativas (por exemplo, diabetes mellitus, alcoolismo), bem como estatísticas sobre internações hospitalares, e programas de saúde individualizados e sua logística, como a questão da formação de agentes de saúde, o financiamento das atividades e a distritalização das decisões.

O desenvolvimento da pesquisa biomédica tornou claro que não há mais lugar para posições ingênuas (expressadas por muitos ativistas políticos), de que basta a introdução de uma série de medidas intervencionistas em grupos etnicamente diferenciados para a solução de seus problemas de saúde. Por outro lado, conservacionistas extremos chegam até a preconizar a abolição completa da chamada "medicina científica", com o isolamento desses grupos e a manutenção estrita de suas práticas curativas tradicionais. Esta posição é claramente antiética, pois resulta na negação, a esses povos, de todos os benefícios que a medicina desenvolveu ao longo dos séculos para o bem-estar da humanidade como um todo. O que é necessário é o exame caso a caso de cada comunidade, tendo em vista as peculiaridades de seu ambiente físico, biótico e sociocultural, e por meio de uma interação harmônica com a comunidade montar programas de bem-estar físico e psíquico.

A enunciação de uma política como a indicada é, naturalmente, bem mais fácil do que a sua implementação. Testemunha disto é a história do contato e convivência, nem sempre pacífica, dos nativos americanos com os colonizadores que por aqui aportaram a partir do século dezesseis. Esta história é monotonamente similar ao longo de todo o continente. Após o contato, esses grupos nativos, muitas vezes pequenos e isolados, são expostos a agentes patogênicos aos quais as suas histórias de vida não os havia preparado. O resultado é uma mortalidade espantosa, que pode inclusive levar ao seu extermínio. Em casos mais favoráveis há, no entanto, após a catástrofe, um período de lenta e posteriormente mais acelerada recuperação. Essa recuperação demográfica, no entanto, é apenas um dos aspectos do problema. Grupos de caçadores-coletores estão geralmente muito bem adaptados ao seu ambiente. A mudança brusca para uma prática agriculturalista e uma atualização intempestiva com a sociedade capitalista e industrial geralmente os condena a uma vida de semipárias, de pobreza marcante, na interface entre o rural e o urbano.

Um grande número de pessoas bem-intencionadas tem tentado reverter este quadro. No começo do século 20, foi criado o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) substituído posteriormente pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que tinha como um dos seus objetivos o tratamento adequado da saúde indígena. A partir de 1999, foram implantados Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), com o reconhecimento explícito de que havia a necessidade de tratamento diferenciado para esses grupos. Apesar de todas as siglas no entanto, o quadro que é revelado pelo livro sob exame é desalentador. A maioria dessas comunidades apresenta condições de saúde equivalentes ou piores do que as das camadas menos favorecidas da sociedade brasileira. Enquanto as doenças infecto-contagiosas não estão sob controle, sobrepõe-se às mesmas o espectro de novas ameaças, como a obesidade e entidades clínicas como a diabetes mellitus, que já são problemas agudos em nativos da América do Norte.

Para a superação deste quadro negativo há a necessidade de esforços conjugados das entidades assistenciais, governamentais e não-governamentais, com a comunidade acadêmica universitária. Mas é óbvio que a questão da saúde indígena está intimamente vinculada a todos os terríveis problemas econômicos e sociais que atualmente afligem a população brasileira como um todo. Financiamento adequado, mobilização e organização de quadros funcionais competentes, e colaboração íntima com os líderes comunitários são indicações óbvias para a solução do impasse. O livro em referência e as outras obras mencionadas, assim como os programas de apoio que elas descrevem, mostram os caminhos que devem ser trilhados. Cabe aos governantes e a outras entidades de apoio aos movimentos indígenas levar em consideração todo este conjunto de doutrinas e ações, para a concretização de uma qualidade de vida apropriada para os primeiros colonizadores de nosso continente.

 

COIMBRA Jr., C. E. A., 1991. Saúde de populações indígenas. Cadernos de Saúde Pública, 7:449-605.

SANTOS, R. V. & COIMBRA Jr., C. E. A., 1994. Saúde e Povos Indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

SANTOS, R. V. & ESCOBAR, A. L., 2001. Saúde dos povos indígenas no Brasil: Perspectivas atuais. Cadernos de Saúde Pública, 17:258-445.

 


 

Olga Maria Bastos

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

PROGRAMAS DE SALUD REPRODUCTIVA PARA ADOLESCENTES. LOS CASOS DE BUENOS AIRES, MEXICO D.F. Y SAN PABLO. Mónica Cogna (coord.). Buenos Aires: CEDES, 2001. 289 pp.
ISBN: 950-9572-19-5

Como conseqüência do aumento do número de gravidez na adolescência, assim como do maior número de adolescentes infectados pelo HIV nas duas últimas décadas, é preciso que se busquem iniciativas em diversas áreas do conhecimento, que possam contribuir para a diminuição desta prevalência. Vários são os fatores envolvidos nestes agravos, e o setor saúde assume um importante papel na sua prevenção, que pode ser obtida por meio da discussão sobre saúde sexual e reprodutiva.

A publicação organizada por Mónica Cogna traz contribuições a este debate, atualizando-o e contextualizando-o. Ela apresenta as características e a análise de diferentes serviços que atendem adolescentes, com o enfoque na promoção de saúde e na prevenção de gravidez não desejada e de doenças de transmissão sexual.

Foram selecionadas para estudo de caso, serviços de três cidades das Américas: Buenos Aires, Cidade do México e São Paulo. Em cada uma delas, escolhidos dois, considerados pelas pesquisadoras os mais representativos e/ou interessantes para o trabalho, sendo que, muitos, estavam vinculados a universidades.

Na metodologia da pesquisa foram analisados os documentos oficiais dos países e das cidades sobre a política de saúde para adolescentes, assim como a proposta de atenção dos serviços destinados a este grupo. Cada país contou com uma pesquisadora específica. Elas apresentam uma descrição do espaço físico, a dinâmica da atenção, o material educativo disponível e as categorias profissionais envolvidas no atendimento. Esses profissionais foram entrevistados, assim como os usuários dos serviços.

A apresentação dos serviços de cada cidade é feita em capítulos separados, com a utilização da mesma metodologia. Na última parte do livro a organizadora faz uma análise comparativa tanto entre os serviços como entre as cidades.

Nesta pesquisa, com cunho avaliativo, buscaram-se indicadores de qualidade que contemplassem a saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes, como por exemplo, a realização de práticas educativas para os adolescentes que chegassem para atendimento nos serviços avaliados e a distribuição de material educativo.

Os vários tópicos que as pesquisadoras abordam convergem para avaliar se existe uma adequação das políticas de saúde nacional e regional, e dos serviços pesquisados, aos compromissos assumidos nas Conferências do Cairo e de Beijing. Tanto a Plataforma de Ação da Conferência Internacional Sobre População e Desenvolvimento (CIPD) realizada no Cairo em 1984, quanto a Plataforma de Ação da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, no ano de 1995, incluem referências sobre a saúde reprodutiva dos adolescentes. Nestes encontros foi feito um alerta quanto ao descuido dos serviços de saúde reprodutivo em relação a esta população, orientando que deveriam ser facilitadas informações e acesso aos serviços. Nestes, se discutiria a sexualidade dos adolescentes, seja individualmente numa consulta ou em grupos educativos, de modo que obtivessem informações que possibilitassem se proteger contra gravidez não desejada e de doenças de transmissão sexual.

Na análise do sistema público de saúde, nos três locais pesquisados, ficam evidentes os problemas decorrentes da globalização, considerada por Cogna como geradora do processo de exclusão social. Em todos existiram cortes financeiros, com impacto para o setor saúde, manifestado, principalmente, pela progressiva escassez de recursos humanos e materiais.

Foram detectados eixos comuns entre os serviços dos diferentes países, tais como o reconhecimento da importância da integralidade da atenção ao adolescente, que não deve ser atendido somente na sua queixa. Consideram que, independente do motivo que gerou a consulta, este momento deve ser aproveitado para abordagem de questões prevalentes neste grupo. A maior parte dos serviços trabalha a sexualidade somente com o enfoque de risco, mas um deles critica esta abordagem, sugerindo que o deve se trabalhar com vulnerabilidades.

As autoras apresentam críticas aos serviços pesquisados, apontando algumas estratégias para otimizar a atenção integral e, efetivamente, se conseguir alcançar a saúde sexual e reprodutiva. Dentre suas sugestões encontram-se a valorização do adolescente como sujeito de direitos, o reforço do protagonismo juvenil, a concepção da integralidade como uma prática, e não somente uma filosofia. Também recomendam que os homens adolescentes sejam mais envolvidos nesta discussão e que se faça uma referência mais clara à perspectiva de gênero.

O trabalho organizado por Mónica Cogna pode incentivar novas pesquisas, de tal forma que contemplem um maior número de serviços. Mas, desde já podem servir de norte aos profissionais que atendem adolescentes. O reconhecimento das críticas feitas à forma como a atenção é prestada, assim como das sugestões apresentadas pelas autoras, poderão repercutir na otimização da atenção a este grupo da população. Uma atenção que contemple de modo eficaz a saúde sexual e reprodutiva dos adolescentes, contribuirá para a diminuição do índice de agravos decorrentes de práticas sexuais não seguras.

 


 

Ligia Maria Vieira-da-Silva

Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil

 

 

PROMOÇÃO DA SAÚDE: CONCEITOS, REFLEXÕES E TENDÊNCIAS. D. Czeresnia & C. M. Freitas (organizadores). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. 176 pp.
ISBN: 85-7541-024-5

A promoção da saúde pode ser considerada como a síntese de desenvolvimentos teóricos nucleares e de movimentos práticos estratégicos do campo da saúde coletiva. Daí a dupla relevância do conjunto de ensaios reunidos por Dina Czeresnia & Carlos Machado Freitas.

O livro introduz o leitor a questões centrais relacionadas com o tema que convidam ao debate. O primeiro deles, relativo à natureza do conceito de saúde, enquanto conceito vulgar, questão filosófica ou conceito científico traz novos insights e provoca algumas reflexões. Com perspectivas distintas, Dina Czeresnia, Naomar Almeida Filho e Sandra Caponi retomam as análises de Canguilhem sobre a saúde, particularmente aquelas desenvolvidas na conferência ministrada por este autor em 1988 na Universidade de Strasbourg, onde são discutidos o conceito de saúde como conceito vulgar e a questão filosófica aparentemente diferente de um conceito científico.

Canguilhem, naquela conferência, mais que defender sistematicamente uma tese como em O Normal e o Patológico faz, segundo ele próprio, algumas reflexões sobre a saúde com base nas contribuições de diversos outros filósofos como Leibniz, Diderot, Kant, Descartes e Nietzsche. A partir de uma carta de Descartes a Chanut ele problematiza a possibilidade da saúde ser vista como a verdade do corpo invertendo a formulação cartesiana. Além dessa idéia, Canguilhem retoma alguns eixos do seu pensamento desenvolvido no livro O Normal e o Patológico, acerca da saúde como capacidade dos indivíduos serem normativos diante da vida. Ele próprio faz um alerta se, na sua tentativa de elucidar um conceito, não correria o risco de ser tomado por uma elocubração? Se interroga se, em buscando na filosofia ajuda para fortificar sua proposição de tomar a saúde por um conceito ao qual a experiência vulgar confere sentido de uma permissão de viver para o bom proveito do corpo, não estaria ele desprezando a medicina enquanto disciplina mais adequada para tratar desse objeto? Lembra que o corpo subjetivo, sentido como um poder e também como um entrave tem tido algumas relações com o corpo tal como o saber médico o representa e trata. Mesmo nos dias de hoje, o corpo, segundo o povo, incorpora a ideologia da profissão médica das especialidades e é, por esse motivo, um corpo dividido. Ao admitir, como recupera Sandra Caponi do pensamento de Canguilhem, que, ao tomar como objeto o corpo subjetivo, uma coisa é tentar livrar-se da tutela da medicina e a outra é que o reconhecimento da saúde como verdade do corpo no sentido ontológico implica pensá-la do ponto de vista da ciência, ou seja, pensar a verdade do ponto de vista lógico.

O fato de a saúde ser uma noção vulgar e questão filosófica, não impede que a mesma possa ser objeto de construção científica. Na perspectiva epistemológica de Bachelard e Bourdieu, entre outros, os conceitos científicos são construídos contra o senso comum, embora tendo de levar em conta essas "primeiras noções" Dentre os modos de ruptura com o senso comum está a análise lógica dos conceitos com o que a filosofia pode e deve contribuir. Como bem aponta Dina Czeresnia, sem a questão filosófica "não há como lidar com pontos obscuros que se apresentam quando se procura dialogar e fluir entre as diferentes dimensões que caracterizam a complexidade da saúde".

A crítica de Naomar, no capítulo sobre a "Holopatogênese", à limitação da teoria de Canguilhem diante dos desenvolvimentos paradigmáticos da ciência contemporânea é bastante pertinente. Eu acrescentaria que a dificuldade de Canguilhem em encontrar uma disciplina científica que tomasse por objeto a saúde, estava no fato de que suas análises se baseavam na medicina experimental de Claude Bernard e na fisiologia de Starling do início do século XX. O filósofo-médico Canguilhem, tinha uma percepção da higiene como ela se constituiu no século XVIII, ou seja, como disciplina médica com conotações morais e que pretendia regular a vida dos indivíduos.

Analisar tanto a "higiene" como a "saúde pública" como movimentos de recomposição das práticas sanitárias decorrentes de diferentes articulações entre sociedade e Estado no campo da saúde, como o fazem Paim & Almeida-Filho no livro A Crise da Saúde Pública e a Utopia da Saúde Coletiva, ajuda a entender os sentidos históricos tanto da higiene do século XVIII como da Saúde Pública do século XIX. Nessa perspectiva é que o uso do termo "saúde pública" como um conceito que se refere ao campo geral da saúde no âmbito coletivo não é adequado.

A saúde passa a ser objeto da ciência exatamente com a constituição do campo da saúde coletiva enquanto campo científico e campo de práticas a partir da década de 70, na América Latina. Esse movimento é contemporâneo dos processos e fatos ocorridos em âmbito internacional, relacionados com a produção de conhecimento e práticas voltadas para a promoção da saúde, muito bem analisados por Paulo Buss no capítulo Uma Introdução ao Conceito de Saúde Pública. Trata-se de fato de um leitura obrigatória para quem desejar situar-se em relação à constituição histórica dos movimentos pela promoção da saúde.

O enfoque político e técnico operado pelo movimento da promoção da saúde e ocorrido no plano internacional, tem muitas interseções com o movimento latino-americano de constituição da saúde coletiva, bem como com a Reforma Sanitária Brasileira, como Paim e Freitas revelam. As diversas conferências internacionais articulam o mundo acadêmico com aquele dos serviços de saúde e com os movimentos sociais. A publicação da coletânea Porque Algumas Pessoas são Saudáveis e Outras Não, coordenada por Evans em 1997, no Canadá, reflete esse esforço de pensar de forma multidisciplinar a saúde visando a ação social.

Um outro tema visitado de formas diferentes pelos autores diz respeito ao conceito de risco. O risco aparece como "perigo", como "probabilidade", no sentido estatístico dado pela epidemiologia e como conceito "construcionista" em tipologia usada por Castiel. Nesse sentido, o alerta de Ayres é adequado na medida em que freqüentemente o conceito de risco é substituído acriticamente pelo de vulnerabilidade. Esse autor analisa o processo histórico de constituição do conceito de vulnerabilidade procurando evidenciar seu potencial para a redefinição das práticas de saúde. Associa o conceito de risco epidemiológico à definição do problema de saúde e à intervenção sobre o mesmo. Já Caponi discute, o que, na sua opinião, seria a "promoção da saúde como abertura ao risco" na perspectiva de que a promoção da saúde deve ir para além do controle sanitário sobre os riscos individuais e mesmo aceitar a existência dos mesmos. Paim, por sua vez, considera como uma das características da proposta da Vigilância da Saúde a busca da operacionalização do conceito epidemiológico de risco. Esse movimento não seria contraditório com a reorganização das práticas sanitárias a partir da recomposição do processo de trabalho, das suas relações sociais e técnicas e das relações interpessoais entre agentes e usuários, de forma a captar as especificidades culturais e as dimensões subjetiva e singular do processo saúde-doença nos sujeitos concretos.

As relações entre os indivíduos e a sociedade também são retomadas sob diversos ângulos. Buss considera como conservadora a perspectiva da promoção da saúde que remete para os indivíduos a responsabilidade de tomarem conta de si próprios, em contraposição à perspectiva progressista que enfatiza a responsabilidade do Estado na implementação de políticas públicas saudáveis. Já Czeresnia, considera que um dos aspectos fundamentais da idéia da promoção é o estimulo à autonomia e problematiza este conceito nas suas relações com as representações científicas e culturais do conceito de risco. Há ainda a preocupação expressada por Caponi de que os programas de promoção da saúde reproduzem os programas higienistas e sua ambição de controle sobre a vida dos indivíduos. Para Castiel, a noção individualista de "identidade" ancora-se na tradição filosófica ocidental, ao contrário daquela dominante nos povos e culturas não-ocidentais onde a singularidade dos indivíduos é vista como envolvida em redes sociais. Esse autor, recorrendo ao mito e à metáfora como estratégia de análise, problematiza a dimensão individual das propostas da promoção à saúde ao interior das complexas redes sociais existentes no terreno da comunicação nas diferentes culturas e espaços sociais. Nesse sentido, estabelece um diálogo com a formulação de Norbert Elias, desenvolvida no seu livro A Sociedade dos Indivíduos, segundo a qual, a história é sempre a história de uma sociedade, mas uma sociedade de indivíduos. Essa formulação nos ajuda a refletir sobre a aparente contradição entre o indivíduo e a sociedade. Ou seja, que as possibilidades de manobra dos indivíduos dependem da estrutura e das características históricas da sociedade na qual eles vivem.

Esse debate remete às teorias sobre as práticas sociais: se movidas pela ação racional, se determinadas pelas estruturas ou se influenciadas por disposições, produto da história incorporada nos inconscientes – o habitus no sentido de Bourdieu? Há que se buscar integrar diferentes perspectivas na compreensão de objeto tão complexo. Assim, indivíduo e sociedade se articulam e se inter-relacionam numa sociedade dos indivíduos. Da mesma forma ocorre com o processo saúde-doença nas suas manifestações singular e coletiva, e com as estratégias voltadas para a promoção da saúde. Essa dupla dimensão do fenômeno em tela impõe desafios teóricos e práticos para a saúde coletiva – campo onde a tensão e complementaridade entre a teoria e a prática, entre a ciência e a política estão sempre presentes e para a qual o livro Promoção da Saúde: Conceitos, Reflexões e Tendência, aporta significativa contribuição.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br