DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Delma Pessanha Neves

 

Debate on the paper by Delma Pessanha Neves

 

 

Gilberto J. Paz Filho

Departamento de Clínica Médica, Hospital de Clínicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. g.paz@uol.com.br

 

 

Segundo o DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, editado pela American Psychological Association 1), os transtornos decorrentes do uso de álcool são classificados de acordo com o padrão em que a substância é utilizada. Entretanto, no artigo em debate, diversos termos são usados em referência ao ato de consumir álcool como "o beber", "a embriaguez", "o alcoolismo", sem no entanto abordar as variâncias que envolvem o uso de álcool. O termo correto, mais abrangente, seria "transtorno por uso de álcool", que subdivide-se em dependência, abuso, intoxicação e abstinência. É importante fazer tal diferenciação, pois o padrão de consumo não se assemelha, trazendo repercussões variadas. De relevância para o debate em questão, dependência deve ser diferenciada de abuso. À diferença dos critérios para dependência de substância, os critérios para abuso de substância não incluem tolerância, abstinência ou um padrão de uso compulsivo, incluindo, ao invés disso, apenas as conseqüências prejudiciais do uso repetido. O abuso de álcool, bem como a dependência, é decorrente de um padrão mal-adaptativo do seu uso. Inicialmente, o abusador pode manter-se nessa categoria por tempo indeterminado. Quando desenvolver tolerância, abstinência ou uso compulsivo, passará a preencher os critérios de dependência. Sociedades que tem apenas "embriaguez" como problema, necessariamente têm freqüência considerável de abuso de álcool, mas nem sempre de dependência. Sendo assim, o termo correto para "embriaguez" é "abuso de álcool", e para "alcoolismo", "dependência", ambos classificados como doença. Sendo assim, o indivíduo que se "embriaga" repetidamente, ou seja, abusa do álcool sem, no entanto, desenvolver tolerância, abstinência ou compulsão, é tão doente quanto aquele que é "alcoolista", ou seja, dependente. A utilização de termos que se enquadram na definição de acusação ("bebedores, alcoólatras, bêbados"), que não estejam entre aspas, é inadequada e é reconhecidamente cultural e não-acadêmica. Tais termos devem ser evitados pois contribuem mais ainda para a marginalização do abusador e do dependente do álcool.

O diagnóstico dos transtornos do uso do álcool, ao contrário do que muitos podem supor, é difícil fora de um meio específico, como grupos de auto-ajuda. A isso atribuem-se os tabus sociais, que ao mesmo tempo incentivam o consumo eventual de álcool e marginalizam os abusadores e dependentes, fazendo com que esses indivíduos optem por esconder ou omitir sua situação. Sob o ponto de vista médico, depender do relato espontâneo do indivíduo quanto à sua condição leva ao subdiagnóstico da doença. Além disso, supor que um indivíduo seja abusador ou dependente com base apenas no contexto social em que está inserido é uma "acusação", ou seja, não-científica e passível de erros. Para a identificação de tais transtornos existem diversos instrumentos sob a forma de questionários, amplamente utilizados e com graus de sensibilidade, especificidade e praticidade variados 2. Dentre esses questionários, citam-se: AUDIT, TWEAK, MAST e CAGE. Cada um deles tem sua particularidade, porém todos baseiam-se nos critérios do DSM-IV. O mais prático é o CAGE, composto por quatro questões, possuindo boas sensibilidade e especificidade, podendo ser usado como método de triagem 3.

Epidemiologicamente, os transtornos de uso de álcool afetam cinco vezes mais homens do que mulheres. Homens são acometidos em idade mais precoce, mas uma vez portadoras do transtorno, as mulheres têm uma progressão mais rápida da doença. Aproximadamente metade dos homens e um terço das mulheres americanas já engajaram num padrão arriscado de consumo de álcool, seja esporádico ou diário. A longo dos últimos anos, as pessoas têm iniciado o consumo de álcool cada vez mais cedo, o risco de dependência tem aumentado e o padrão de uso de álcool e dependência entre as mulheres têm se tornado semelhantes aos dos homens.

Enquanto objeto de estudo, os transtornos de uso de álcool, se não forem considerados doença, podem ser subestimados e a análise resultante, não fidedigna da realidade. Isso pode ocorrer devido ao fato de que deixarão de ser abordados aspectos referentes àqueles indivíduos que consomem álcool de maneira patológica mas que não o admitem. Por isso, deve haver o enfoque dos transtornos de uso de álcool não somente sob o ponto de vista social, psicológico e biológico, mas também patológico 4. Questionários específicos para seu diagnóstico devem ser aplicados quando uma população for estudada, a fim de corretamente identificar aqueles que são portadores da doença, evitando o vício de seleção da amostra. Sendo assim, é feito o "diagnóstico" e não a "acusação".

 

1. American Psychological Association. DSM IV ­ Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4a Ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.

2. National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism. Assessing alcohol problems: a guide for clinicians and researchers. Washington DC: National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism; 1992.

3. Liskow B, Campbell J, Nickel EJ, Powell BJ. Validity of the CAGE questionnaire in screening for alcohol dependence in a walk-in (triage) clinic. J Stud Alcohol 1995; 56:277-81.

4. Mersy DJ. Recognition of alcohol and substance abuse. Am Fam Physician 2003; 67:1529-32.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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