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A frugalidade necessária: modelos mais contemporâneos

 

 

Renato Veras

Instituto de Medicina Social/Universidade Aberta da Terceira Idade, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. veras@uerj.br

 

 

Apesar do rápido processo de transição demográfica, muitos ainda pensam que somos um país de jovens. Ainda não é clara a percepção social de que o Brasil está envelhecendo aceleradamente, com projeções indicando que já em 2020 teremos a sexta maior população idosa do mundo, correspondendo a 32 milhões de pessoas. Quando verificamos fatos que mereceram de forma recorrente grande espaço na imprensa brasileira na última década, como por exemplo, em 1992, o movimento intitulado "a luta pelos 147% dos aposentados", ou as 102 mortes de idosos, em 1996, ocorridas na Clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, ou a recente regulamentação dos Planos de Saúde e a criação da Agência Nacional da Saúde Suplementar (ANS), notamos que estes acontecimentos não são associados à ampliação numérica do grupo etário dos idosos e às suas conseqüentes transformações no interior da sociedade.

Um exame mais atento do envelhecimento humano indica que seus efeitos são muito maiores e mais profundos do que se imaginava. O envelhecimento populacional é, hoje, um proeminente fenômeno mundial. Tem ocorrido de forma muito rápida e intensa nos países em desenvolvimento, gerando preocupações quanto às suas repercussões em ambiente de pobreza por acarretarem pressões para transferência de recursos na sociedade, colocando desafios para o Estado, os setores produtivos e as famílias. Portanto, esse crescimento não se expressa apenas no maior número de velhinhos andando no calçadão de Copacabana, mas em uma mudança substancial nas áreas da saúde e previdência, na organização dos espaços urbanos, em uma nova estruturação do mercado de trabalho e mesmo na vida familiar.

O grande mérito do artigo de Carlos Dimas Ribeiro & Fermin Roland Schramm é colocar em debate um dos importantes dogmas do sistema de saúde no Brasil, que é a universalidade do sistema, ou seja, que o sistema deve fornecer todos os serviços disponíveis a todos que precisem e, portanto, deve haver um mecanismo que dê conta de financiar todas as demandas. Em uma sociedade tão heterogênea e desigual como a nossa, na qual diferentes doutrinas, valores e princípios morais se fazem presentes, as necessidades são obviamente diferenciadas e, por conseguinte, a alocação de recursos ou a justiça sanitária do direito à saúde deve ser balizada por outros critérios, como o de poder decidir o que fornecer e para quem. Segundo os autores do artigo, esta percepção da complexidade da sociedade tem contribuído para florescer uma "cultura dos limites". Em outras palavras, é cada vez mais aceito o fato de os recursos para o financiamento do sistema de saúde, quer públicos ou privados, em qualquer país do mundo, serem escassos e finitos e as demandas crescentes.

No Brasil esta situação se agrava devido à rápida explosão demográfica do grupo etário dos idosos e ao fato de o sistema de saúde atual ter sido concebido para atender à demanda da saúde materno-infantil, razão pela qual não responde satisfatoriamente às exigências resultantes do envelhecimento populacional. Essa mudança demográfica leva a um aumento da pressão sobre o sistema de saúde, ampliando os seus custos, em conseqüência da elevação da utilização de serviços, de medicamentos e de tecnologias caras e complexas. Além do impacto econômico, são incalculáveis as repercussões individuais, familiares e sociais em uma sociedade em processo de envelhecimento.

O dilema para o gestor do sistema de saúde está dado no texto da Constituição, ao garantir a saúde como "um direito de todos e um dever do Estado". A questão, portanto, é como se pode respeitar as leis "universalistas" frente à escassez de recursos disponíveis, o que leva a alguma forma de priorização, ou de "focalização" das ações. O suposto antagonismo entre universalização e focalização é trabalhado de forma correta e bastante didática no artigo, ao demonstrar que os conceitos devem ser integrados numa concepção dialética de justiça, entendida como "igualdade" de princípio e "focalização" de fato, o que corresponde a "justiça com eqüidade".

Esta discussão é extremamente pertinente pelo fato de que apesar de a imensa maioria dos autores da saúde coletiva defender os princípios universalizantes do sistema de saúde brasileiro, todos sabem que os recursos tendem a ser cada vez mais escassos, que a ampliação das doenças crônicas, em conseqüência do aumento do número de idosos, será cada vez mais acentuada e, portanto, a única alternativa possível seria a redução dos desejos e necessidades. Sabemos que defender esta tese é algo difícil para os profissionais de saúde, particularmente para quem lutou e conquistou os princípios que norteiam o capítulo da saúde na Constituição brasileira.

Desse modo, para não se passar uma proposta de retrocesso, ou não se colocar numa visão niilista, creio que a saída deva ser travada no campo da substituição do paradigma biomédico por um paradigma ampliado e mais contemporâneo. Talvez o foco deva ser voltado para a discussão do modelo assistencial e em novas modalidades de cuidado, com vista a melhorar a qualidade do atendimento e diminuir os custos dos procedimentos. O modelo assistencial baseado na atuação de múltiplos especialistas, no uso intensivo de exames complementares e na estrutura hospitalar, está esgotado.

Quanto mais médicos, exames e intervenções, maior a probabilidade de iatrogenia e a conseqüente piora do quadro de saúde do usuário. O modelo de múltiplas escolhas não é apenas mais caro, mas também pior do ponto de vista da relação paciente-médico e da resolubilidade dos problemas de saúde. Torna-se necessário discutir o monitoramento das doenças crônicas, que pode ser visto como um dos instrumentos para um novo modelo. É sabido que uma pequena parcela de pacientes consome mais da metade dos recursos de todo o universo de usuários. Esses indivíduos, por estarem doentes no momento, ou acometidos por várias doenças crônicas, devem ter um acompanhamento diferenciado, pois suas doenças e seus custos fazem com que eles fujam do padrão dos demais usuários. A identificação e o cuidado pormenorizado desses pacientes não só aumentariam as chances de melhora de sua qualidade de vida como também reduziriam os custos.

Embora uma gestão mais eficiente leve, de fato, a uma redução de custos, monitorar e acompanhar um paciente de mais idade e com múltiplas patologias, de modo a impedir a evolução e a deterioração do quadro mórbido, nada mais é do que o exercício da boa e correta prática médica.

Os estudos vêm demonstrando que ações de saúde mais resolutivas devem constituir um eixo central na reformulação dos sistemas de saúde. Todas as práticas que consigam "frear" a cronificação de doenças e que impeçam ou diminuam a hospitalização trazem como resultado uma dupla conquista: controle da doença e redução de custos. Uma política de saúde de fato sintonizada com as demandas contemporâneas deve dar ênfase à manutenção da capacidade funcional e aos programas de prevenção, investindo em metodologias para a detecção precoce de doenças, no monitoramento das doenças crônicas e num sistema médico personalizado, entre outras medidas, em vez de, por inércia, seguir o modelo da demanda espontânea, que tem no hospital a peça central do sistema.

Com a emergência dos idosos, cresce a importância da internação domiciliar, dos centros de convivência, da ênfase a doenças de grande peso social, como os problemas cognitivos, ou de alta prevalência, como hipertensão e diabetes. Ou seja, a diminuição dos custos talvez só poderá ocorrer se houver uma mudança de paradigma. Para tal precisaremos requalificar os profissionais de saúde, que não estão plenamente habilitados para este novo desafio, que é o de monitorar, acompanhar, prevenir e reabilitar, em vez de apenas curar. As doenças crônicas exigem uma nova postura. Talvez esse seja um caminho a ser trilhado.

Sem discordar dos autores, talvez a frugalidade necessária deva ser o convencimento das autoridades de saúde, para que o sistema tenha como foco a tecnologia do conhecimento e da informação em lugar da tecnologia das máquinas. A indagação que alguns leitores podem estar fazendo, após a leitura do artigo de Ribeiro & Schramm, é como o setor de saúde no Brasil pode ser tão anacrônico e resistente a mudanças. A possível conseqüência desta defasagem certamente será a deterioração dos serviços de saúde nos próximos anos. A hora é de mudança e de sensibilizar os dirigentes mais atentos para a necessidade urgente de novos modelos.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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