ARTIGO ARTICLE

 

Fatores associados à cesariana entre mulheres de baixa renda em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

 

Factors associated with cesarean sections among low-income women in Pelotas, Rio Grande do Sul, Brazil

 

 

Denise S. Silveira; Iná S. dos Santos

Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do estudo foi investigar a associação entre as características das mulheres e do cuidado pré-natal na rede de Atenção Primária à Saúde de Pelotas com o tipo de parto. Realizou-se um estudo transversal, incluindo a estrutura dos serviços e o processo de atendimento. Foram estudados todos os centros de saúde da cidade e entrevistadas 712 mães. A taxa de cesarianas foi de 30,0%. Na análise ajustada, o risco de cesariana associou-se com características maternas (menor altura, menor número de gestações, gestação planejada, internações hospitalares e hipertensão arterial na gravidez). Entre as características dos serviços encontrou-se influência protetora do maior tempo de formado do médico pré-natalista e o cumprimento às normas do Programa de Pré-natal. As maiores taxas foram verificadas entre os hospitais universitários. Além da educação da mulher no pré-natal, o reconhecimento precoce e o manejo adequado da hipertensão arterial e das causas de hospitalização sugerem a possibilidade de abordagem pelo setor primário a fim de reduzir a taxa de cesarianas.

Cuidado Pré-Natal; Serviços de Saúde; Cuidados Primários de Saúde


ABSTRACT

The aim of this study was to investigate the association between patients' and prenatal care characteristics and cesarean section prevalence. A cross-sectional study including structural and process-of-care variables was conducted at primary health care facilities in Pelotas, Brazil. All health centers were selected and 712 mothers were interviewed. The observed cesarean rate was 30.0%. Adjusted analyses showed that cesareans were associated with maternal characteristics (short stature, few pregnancies, planned pregnancy, hospitalization, and high blood pressure). Among health services variables, the study detected a direct protective effect of time since graduation by the physician providing the prenatal care and compliance with Prenatal Care Program guidelines. Higher cesarean section rates were observed at university hospitals. To reduce the cesarean section rate, maternal education during pregnancy, early diagnosis, and proper management of hypertension and causes of hospitalization are possible strategies for approaching the problem in the primary health care sector.

Prenatal Care; Health Services; Primary Health Care


 

 

Introdução

A cesariana expõe as mães e as crianças a grandes riscos para a saúde 1,2,3,4. Tanto em países desenvolvidos (Estados Unidos, Inglaterra, Itália, Austrália e China), como naqueles em desenvolvimento (Brasil e outros países da América Latina), há um preocupante e rápido crescimento das taxas de cesariana, além do limite de 15,0% estimado pela Organização Mundial da Saúde como seguro para garantir bons resultados materno-fetais 3,5,6,7,8,9. Indicações clínicas não podem justificar esse aumento. De fato, entre os fatores de risco para a realização de cesariana, de consenso na literatura, estão o alto nível sócio-econômico, a alta escolaridade, o maior número de consultas de pré-natal, a primiparidade, o parto operatório prévio, o parto em hospital privado e o baixo risco gestacional 2,8,9,10,11,12,13,14.

Na atualidade, a cesariana tem sido aceita como uma maneira natural e segura de nascer, confortável para a mãe, significando cuidado de melhor qualidade, tanto para os profissionais de saúde, quanto para as mulheres e a sociedade 3,12,14,15. Os motivos de cesárea mais relatados por obstetras são a presença de sofrimento fetal e a desproporção feto-pélvica, intercorrências que englobam uma ampla variedade de diagnósticos, muitas vezes de avaliação subjetiva; outros motivos são a apresentação pélvica e cesariana prévia 2,9,11,16,17,18,19.

Outros fatores não médicos que interferem na decisão de fazer cesariana, principalmente entre mulheres de alto nível social, são a preponderância da conveniência para o médico sobre a preferência da mãe e o medo, por parte dos obstetras, de sofrer processos médico-legais 6,9,10,11,18,20. A estreita correlação entre o poder da mulher em negociar e determinar riscos e as taxas de cesárea tem sido também descrita 4,21,22,23. Da mesma forma, com o tempo, mulheres mais pobres tendem a adotar o padrão de comportamento das de nível mais alto, como de excelência, implicando taxas ascendentes entre esses grupos 6,14,24.

No ano de 1980, 31,0% dos nascimentos no Brasil ocorriam mediante cesariana. Em face deste quadro, como medida inicial de redução dos partos operatórios, o Ministério da Saúde instituiu um valor de repasse financeiro igual para o pagamento dos procedimentos médicos hospitalares, por ocasião do parto 10. Mesmo assim, analisando-se as proporções de cesariana a partir da implantação dessa política, observou-se uma tendência ascendente desse procedimento cirúrgico, contrária ao esperado (http://www.datasus.gov.br, acessado em 30/ Jun/2003). Em 1996, as taxas de cesariana alcançaram 36,4%, sendo, na época, as mais altas do mundo 2,3,25. Mais recentemente, o Ministério da Saúde estabeleceu em um pacto com as Secretarias Estaduais de Saúde um teto máximo para a realização de cesarianas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a partir do qual os hospitais não receberiam repasse de recursos.

O Rio Grande do Sul é um dos estados campeões da cirurgia no País, com taxa de 41,3% entre todos o nascidos vivos (Sistema Nacional de Informações de Nascidos Vivos — SINASC 1998-2000 — http://www.datasus.gov.br, acessado em 30/Jun/2003) e de 30,0% para os nascimentos do sistema público. No ano 2000, emitiu portaria comprometendo-se a diminuir a proporção de partos cirúrgicos pelo SUS em 1,0% ao ano, até atingir 25,0% em 2005 (Portaria nº 466, de 14 de junho de 2000 — http://dtr2001.saude.gov.br/ sas/PORTARIAS/PORT2000/PT-466.htm).

Em Pelotas, cidade de médio porte do sul do Brasil, cerca de 95,0% das mulheres fazem pré-natal e 99,0% dos nascimentos ocorrem em ambiente hospitalar. Os nascimentos são distribuídos entre os cincos hospitais do município, sendo dois universitários, dois filantrópicos e um privado, nos quais a proporção de parto operatório é variável. Em todos os hospitais, os partos são feitos ou supervisionados por médicos obstetras. No ano de realização deste estudo, 1998, encontrou-se uma prevalência média de 39,0% de cesariana no município. Em 2002, essa proporção foi de 38,9 %, sendo de 34,5% no hospital de maior volume de partos pelo SUS e de 89,6% no único hospital privado (SINASC 1998-2000 — http://www.datasus.gov.br).

Uma vez que muitos dos fatores de risco para o nascimento por cesariana já são conhecidos, que a influência do profissional que faz o parto está bem documentada e que a escolha da mulher assume papel importante sobre o modo de nascer, examinar a relação entre as práticas de cuidado pré-natal e o tipo de parto em nível de serviços básicos de saúde poderá ser útil para orientar estratégias que possam interferir sobre a atitude dos profissionais e, conseqüentemente, das mulheres. Assim, o objetivo desse estudo foi investigar a associação entre as características das mulheres e do cuidado pré-natal na rede de Atenção Primária à Saúde de Pelotas com o tipo de parto.

 

Metodologia

Utilizou-se o modelo proposto por Donabedian 26, tendo-se investigado características da estrutura dos serviços, do processo de cuidado e das mães usuárias da rede. Foi feito um estudo descritivo das características estruturais dos serviços de saúde existentes em 1998, além de um estudo transversal, para investigar características individuais da mulher e do processo de atendimento pré-natal, conduzidos de julho de 1998 a fevereiro de 1999 (estudo de resultado).

Na avaliação da estrutura, visitaram-se todas as unidades básicas da Secretaria Municipal de Saúde e Bem-Estar de Pelotas (SMSBE), situadas no perímetro urbano, onde se aplicou o "Instrumento de Avaliação para Centros e Postos de Saúde", do Ministério da Saúde do Brasil. A descrição detalhada do instrumento encontra-se em outra publicação 27.

De acordo com esse instrumento, quanto ao porte, diferenciam-se os serviços em Centro de Saúde (CS) 1, CS2 e CS3, pontuando-se as seguintes áreas: planta física; recursos humanos; recursos materiais; normas, atividades e procedimentos; sistema de referência. Diante da soma total de pontos, as unidades foram classificadas em ótimas, satisfatórias, precárias ou insuficientes. Foram investigadas, ainda, informações sobre o sexo, tempo de formado e especialidade dos médicos que trabalhavam nesses serviços e prestaram atendimento pré-natal às mulheres estudadas. Durante a entrevista domiciliar, confirmava-se com a mãe a unidade de saúde de realização do pré-natal e o nome do médico que fez o acompanhamento.

As características do processo foram obtidas por meio de entrevista domiciliar às mães (orientações para o parto dadas pelo médico, durante o pré-natal) e da análise da carteira de gestante (número de consultas, idade gestacional de início do pré-natal e data da última menstruação). A adequação do acompanhamento pré-natal foi avaliada combinando-se o número de consultas com a época do início do pré-natal (Índice de Kessner modificado por Takeda 28), sendo adequado com seis ou mais consultas e início do pré-natal antes de 20 semanas; inadequado com início do pré-natal após 28 semanas ou menos de três consultas, e intermediário nas demais situações.

As mães foram localizadas por intermédio do rastreamento dos registros de pré-natal, nos serviços da rede 27. As mulheres assim identificadas e residentes na zona urbana, no momento da entrevista, foram visitadas em domicílio. O questionário domiciliar foi aplicado por entrevistadores e coletou informações quanto a características sócio-econômicas (renda, bens de consumo, escolaridade e situação conjugal), demográficas (idade e cor da pele), história reprodutiva prévia (número de partos e intervalo interpartal), morbidades referidas (hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, ameaça de aborto, infecção do trato urinário e outras) e hábitos maternos (consumo de chimarrão e de cigarros no terceiro trimestre da gestação). A informação sobre o tipo de parto (desfecho de interesse) também foi obtida por meio dessa entrevista. A altura da mulher foi aferida com antropômetro, após treinamento e padronização das medidas. As informações sobre hospital do parto e duração da gestação foram obtidas dos registros de nascimento das crianças, através do SINASC.

Para o cálculo da amostra do estudo transversal, estimou-se uma prevalência de cesariana nos não expostos (gestantes com pré-natal adequado) em torno de 25,0%. Portanto, para um nível de confiança de 95,0%, poder estatístico de 80,0%, relação entre não expostos e expostos de 1:1 e risco relativo > 1.5, seria necessário uma amostra de 460 mulheres em pós-parto. Essa amostra foi acrescida de 30,0%, considerando-se possíveis perdas e controle de fatores de confusão, totalizando 598 mães.

Para a análise bruta e ajustada da associação entre as variáveis independentes e o desfecho, utilizou-se o modelo de Regressão de Poisson, com variância robusta, que estima diretamente as razões de prevalência e previne a superestimação das medidas de associação, nos casos em que o desfecho é altamente prevalente 29. O programa Intercooled Stata versão 6.0 foi usado na análise.

Por entender-se que exista uma organização hierárquica na relação entre as variáveis independentes e o tipo de parto, definiram-se quatro níveis para introdução no modelo (Figura 1): nível 1 (condições sócio-econômicas); nível 2 (demográficas, antropométricas e reprodutivas da mulher e estrutura do serviço); nível 3 (qualidade do pré-natal, morbidades e hábitos maternos na gestação); nível 4 (hospital do parto e duração da gestação). Foram incluídas na análise multivariada as associações significantes entre as exposições e o desfecho a um nível de p < 0,20, sendo mantidas aquelas com p < 0,05.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas e pela Secretaria Municipal de Saúde de Pelotas.

 

Resultados

Das 31 unidades de saúde localizadas no perímetro urbano, 26 realizavam atendimento pré-natal. Nesses serviços, durante os meses de maio a novembro de 1998, foram encontrados e revisados 839 registros de pré-natal, através dos quais localizaram-se as mães para o componente transversal do estudo. Foram excluídas 58 mulheres: 12 haviam mudado de domicílio para a zona rural, 42 para outros municípios e quatro que, apesar de terem sido captadas nos serviços investigados, realizaram a maior parte do pré-natal em outros locais. Logo, a amostra final para as entrevistas domiciliares foi de 781 mães, tendo-se encontrado 726. Excluíram-se desta análise as gestações terminadas em aborto (5) e os partos gemelares (9). O tempo médio de realização da entrevista domiciliar foi de seis meses após o parto, tendo variado de três a nove meses. Entre as 712 mulheres incluídas no estudo, encontrou-se uma prevalência de 30,0% de cesariana (n = 217).

A Tabela 1 apresenta as características individuais maternas. Considerando os indicadores do nível sócio-econômico, observou-se que a maioria (73,0%) pertencia aos estratos mais pobres da população (classe social D e E), e nenhuma delas foi incluída no mais elevado (classe A). Aproximadamente uma em cada cinco mães vivia em famílias com renda mensal de, no máximo, um salário mínimo vigente na época (US$ 125,00). Relataram não viver com marido ou companheiro 16,0%, e a média de escolaridade, entre aquelas com educação formal, foi 5,9 anos. Quanto às características demográficas maternas, 177 (25,0%) eram adolescentes, a maioria era de cor branca (71,0%) e a média de idade, 25 anos (± 6,59). Com relação à estatura, cerca de 11,0% das mães tinham menos de 150cm de altura, sendo a média da amostra de 157cm (± 6,09cm).

Considerando-se os fatores reprodutivos pré-gestacionais, 32,4% das mães eram primíparas. Entre essas, a proporção de cesariana foi cerca de 32,0% e, entre as demais, de 30,0% (p = 0,65). Comparativamente às multíparas, a taxa de cesáreas foi maior entre as primíparas com renda familiar mensal inferior a três salários mínimos (p = 0,005), naquelas com estatura menor de 150cm (p < 0,001) e entre as mães que apresentaram anemia (p = 0,02). Em contrapartida, a taxa de cesáreas foi menor entre as primíparas com maior escolaridade (p < 0,01), diabéticas (p = 0,002) e com idade gestacional no parto inferior a 37 semanas (p = 0,001). A média do número de gestações, incluindo a do atual estudo, foi de 2,7 gravidezes por mulher (± 1,89). Uma em cada três mulheres referiu ter tido o filho anterior ao atual em intervalo inferior a dois anos entre as gestações. A maioria (64,0%) relatou não haver planejado a gestação sob estudo. De acordo com a ocorrência de morbidades no transcurso da gestação, 12,0% referiram ter sido hospitalizadas pelo menos uma vez; 69,0%, ter tido anemia; 45,0%, infecção do trato urinário; 26,0%, pressão alta; 16,0%, ameaça de aborto, e 4,0%, diabetes mellitus. Os motivos de internação mais referidos foram problemas clínicos (27,0%), infecção do trato urinário (17,0%), ameaça de parto prematuro (17,0%), pressão alta (16,0%), sangramento vaginal (9,0%), dor em baixo ventre (7,0%) e doenças sexualmente transmitidas/AIDS (4,0%). Mais de um terço das mães (33,0%) fumou e 65,0% tomaram chimarrão pelo menos um dia por semana, no último trimestre da gravidez. De acordo com os dados do SINASC, 6,0% das gestações estudadas resultaram em recém-nascidos pré-termo.

Na análise bruta, observou-se uma tendência de diminuição na proporção de parto operatório à medida que a mãe pertencia a classes sociais menos favorecidas do que as classes B e C, mas esse efeito não se mostrou estatisticamente significativo. As associações entre o nível educacional materno e a presença de companheiro com o tipo de parto também não foram estatisticamente significativas. Entre as demais variáveis, constatou-se, na análise bruta, aumento da probabilidade de cesariana entre as mães de menor altura e entre as que referiram ter planejado a gestação. Em relação às mães de menor estatura, aquelas com 150cm ou mais de altura apresentaram um risco 38,0% menor de cesariana (RR = 0,62; IC95%: 0,48-0,82; p < 0,001). Para as mães que planejaram a gestação, o risco de parto operatório foi 31% maior do que o observado entre as demais (RR = 1,31; IC95%: 1,05-1,63; p = 0,02). Quanto maior o número de partos, menor o risco de cesariana (RR = 0,93; IC95%: 0,87-0,99; p = 0,03). As mães que se hospitalizaram pelo menos uma vez apresentaram um risco bruto de cesariana 72,0% maior do que as que não foram internadas. As mulheres que relataram infecção do trato urinário, pressão alta, ameaça de aborto e diabetes mellitus tiveram um risco maior do que as do grupo-controle de, respectivamente, 36,0%, 41,0%, 34,0% e 66,0%. O nascimento a termo esteve associado com um risco de cesariana 33,0% menor do que o observado nos nascimentos pré-termo.

Entre as variáveis representativas da estrutura dos serviços (Tabela 2), observou-se que 55,0% das mulheres se consultaram em unidades cuja estrutura para o cuidado pré-natal era satisfatória; 50,0%, em locais cujo cumprimento das normas do Programa de Pré-natal era ótimo ou satisfatório, e 58,0%, em serviços com sistema de referência também satisfatório. Os atendimentos foram prestados, na sua maioria, por médicas (90,0%), especialistas da área de ginecologia e obstetrícia (91,0%), com uma média de 15 anos (± 7,26 anos) de formados. Quanto ao hospital de nascimento, 32,0% dos partos ocorreram nos universitários. A avaliação da adequação do cuidado pré-natal, no critério Kessner/Takeda 28, mostrou que 58,0% das gestantes receberam atenção adequada. Uma proporção elevada de mulheres (71,0%) relatou não ter recebido qualquer orientação educativa para o parto durante a gravidez (Tabela 2). Entre as 195 mulheres que lembraram haver recebido alguma orientação, a taxa de cesariana foi de 36,0%. As orientações mais lembradas pelas mães incluíram: características do parto normal e da cesariana (39,0%), sinais de trabalho de parto (32,0%), incentivo à cesariana (11,0%) e incentivo ao parto natural (6,0%).

Na análise bruta do tipo de parto com as variáveis da estrutura, detectou-se efeito protetor sobre a ocorrência de cesariana para as mães que fizeram o acompanhamento da gravidez nos serviços com cumprimento ótimo às normas do Programa de Pré-natal (risco relativo 21,0% menor; p = 0,04). Observou-se ainda uma redução de 2,0% no risco de cesariana para cada ano de formado do médico pré-natalista e associação estatisticamente significativa entre o parto operatório e o hospital do nascimento, sendo o risco 50,0% maior nos universitários (p < 0,001). Com relação às variáveis do processo, as mães com pré-natal adequado apresentaram um risco bruto cerca de 2,4 vezes maior de cesariana do que as controle (p = 0,03). Entre as mulheres que relataram haver recebido orientações para o parto, o risco de cesariana ficou no limiar da significância estatística (p = 0,06), sendo 26,0% maior do que o observado para as demais.

Na análise multivariada, após controle para a idade materna e para as demais variáveis do mesmo nível, o efeito protetor da altura igual ou superior a 150cm, do maior número de gestações e do maior tempo de formado do médico sobre o risco de cesariana mantiveram-se inalterados. Nesse mesmo nível hierárquico, o risco de parto operatório entre as mulheres que planejaram a gestação em relação às do grupo-controle também não se modificou após ajuste para as variáveis de confusão. Quanto às variáveis relativas a morbidades no pré-natal e hábitos da mulher na gestação, após ajuste, mantiveram-se estatisticamente significativas somente as associações de risco entre cesariana e número de hospitalização e pressão alta referida. Quanto à hospitalização, observou-se tendência linear, com risco crescente de cesariana, de acordo com o número de internações. Assim, entre as mulheres que foram internadas pelo menos uma vez, o risco de cesariana foi 65% maior do que o observado entre as que não se hospitalizaram. Entre as mães que foram hospitalizadas duas vezes ou mais, o RR foi de 1,91 (IC95%: 1,30-2,81). Para as mulheres que referiram ter apresentado pressão alta durante a gravidez, o risco de parto operatório foi 35% maior do que entre as demais. Embora apresentando uma tendência semelhante à verificada na análise bruta, a associação entre a adequação do cuidado pré-natal e a cesariana perdeu a significância estatística na análise multivariada. Ajustado para as variáveis anteriores, o tipo de hospital onde ocorreu o parto manteve forte associação de risco com parto operatório. O risco ajustado de cesariana nos partos realizados nos hospitais universitários foi 47,0% maior do que nos filantrópicos. O modelo de análise final foi capaz de explicar 5,0% do risco de cesariana observado na amostra (R2 = 0,0462).

 

Discussão

A proporção de cesarianas encontrada no estudo (30,0%), o dobro da taxa máxima de 15,0% recomendada pela Organização Mundial de Saúde 5, sugere um uso abusivo da técnica na população em estudo. Porém, ao ser comparada à taxa geral do município, de 39,0%, e à verificada nos partos realizados exclusivamente pelo SUS, de 31,0%, no mesmo ano da pesquisa, foi significativamente menor que a primeira (p < 0,001) e semelhante à segunda (SINASC 1998-2000 — http://www.datasus.gov.br).

No atual estudo, não foi encontrada associação entre a maioria dos elementos da estrutura e do processo de atendimento ao pré-natal com o tipo de parto. As variáveis individuais da mulher assumiram o papel de maior influência. No que se refere ao maior número de partos, menor estatura e ocorrência de morbidades gestacionais, há consistência com a literatura 8,9,11,16,30,31. Tendo em vista que a amostra estudada era constituída pelo extrato mais pobre da população, as associações não encontradas das variáveis idade, escolaridade e nível sócio-econômico da mulher com parto operatório também são consistentes com os achados de outros autores 6,14,25,32. Além disso, nenhuma das mulheres entrevistadas esteve exposta ao risco de parto em hospital privado.

Uma das limitações do atual estudo foi não investigar a história de cesárea prévia no passado obstétrico das mães. Vários estudos detectaram associação entre cesárea atual e cesáreas prévias 2,9,11,16,17,18,19. Como conseqüência, a ausência dessa variável poderia confundir positivamente o efeito da morbidade materna sobre o risco de cesárea. É possível que as mulheres com cesariana prévia tivessem maiores prevalências das morbidades já nas gestações anteriores. Esse efeito de confusão, no entanto, não seria responsável pelo total efeito das morbidades, uma vez que estas se mostraram associadas com o risco de cesárea em outros estudos 9,11,16,19,30.

Uma segunda limitação foi não investigar a fase do trabalho de parto na admissão à maternidade. O estudo de D'Orsi et al. 19 detectou maior risco de cesárea entre mulheres com menos de três centímetros de dilatação do colo uterino por ocasião da baixa. Tendo em vista que as informações do atual estudo foram obtidas diretamente com as mães, nos domicílios, esse dado não estava disponível.

A associação encontrada entre o planejamento da gravidez e maior risco de cesariana pode ser entendida como uma expressão do comportamento das mães estudadas. De acordo com a literatura, assim como programaram a sua gestação, as mulheres com maior poder de influência podem também estar optando por cesariana, antes do nascimento, independente de indicação médica 9,14,21,22.

Na revisão bibliográfica, poucos estudos incluíram a investigação de fatores do atendimento pré-natal, sendo o mais utilizado o número de consultas na gestação, geralmente associado positivamente ao maior risco de cesariana 9,10,14. Apesar de os atuais achados serem coerentes com esse resultado (dados não descritos), optou-se por não utilizar esse indicador isoladamente, pois assim como as mulheres de maior risco podem consultar mais vezes, algumas gestantes podem ter poucas consultas devido a um nascimento prematuro ou porque foram encaminhadas para serviços de maior complexidade, perdendo-se as informações subseqüentes 33. Além disso, gestantes primigestas tendem a iniciar o cuidado mais cedo e a consultar mais vezes do que as multíparas 34. Ainda assim, os dois critérios, número de consultas e idade gestacional de início do pré-natal (Índice de Kessner/Takeda 28), são predominantemente quantitativos e podem sofrer influência do acesso ao serviço, do conteúdo do cuidado, além das características individuais da mulher, incluindo aquelas de caráter sócio-cultural. Ao combinarem-se esses critérios, a significância estatística do efeito do pré-natal adequado desapareceu na análise ajustada. Não é possível descartar o potencial efeito de confusão da ausência da variável "cesárea prévia", no modelo, sobre a associação entre a adequação do pré-natal e o risco de cesárea. Para tanto, seria necessário que a confusão fosse negativa. As mulheres com cesárea anterior poderiam ter recebido um pré-natal mais adequado que seus pares. Não encontramos na literatura estudos que tenham investigado a associação entre tipo de parto anterior e qualidade do pré-natal, tornando impossível prever a ocorrência desse viés.

Quanto à associação bruta com as medidas educativas, o fato de a informação haver sido coletada, em média, seis meses após o parto, implica ser possível o viés de memória. Mesmo assim, pode-se entender a potencial influência de risco para a ocorrência de cesariana de duas formas. Em primeiro lugar, o conteúdo das orientações pode estar expressando a preferência dos profissionais pelo parto operatório ou a falta de treinamento para abordar o assunto em defesa de outras formas de parto. Em segundo lugar, as mulheres respondentes poderiam ser de maior risco ou simpatizantes da cesariana.

O possível efeito protetor dos serviços onde se cumpriam as normas do Programa de Pré-natal de maneira ótima pode estar refletindo a influência mais do trabalho em equipe, do que o individual. Determinadas ações programáticas, como imunizações, controle nutricional e odontológico, envolvem o trabalho de outros profissionais além do médico, todavia não foram encontrados outros estudos para comparação. O conteúdo do cuidado médico é difícil de ser medido, o que poderia explicar a carência de investigações com essa abordagem 35.

Pesquisas conduzidas em hospitais, as quais investigaram a associação entre características do profissional e cesariana, a maioria incluindo obstetras, concluíram que a proporção de parto operatório era maior entre os recém-formados, do sexo masculino, e quando feito pelo mesmo médico do pré-natal 6,9,11,18. Essas investigações observaram também maior risco de cesariana para os nascimentos à luz do dia e às sextas-feiras.

No presente estudo, encontrou-se influência protetora do maior tempo de formado do médico do pré-natal contra o parto operatório. Uma explicação é que estes poderiam ser profissionais menos "medicalizados" ou que, embora obstetras, não estariam inseridos nos hospitais para a realização de partos. Se este achado se mostrar válido, será necessário investigar, com profundidade, em outros estudos, os possíveis mecanismos de seu efeito.

Convém destacar ainda que, entre as mulheres estudadas, como regra, o parto não foi realizado pelo médico pré-natalista. Considerando o local de nascimento, as maiores taxas foram encontradas entre os hospitais universitários, que poderão estar funcionando como centros de referência regional para gestações de alto risco. Estranhamente, no entanto, a prevalência de fatores de risco conhecidos para cesariana, como baixo nível sócio-econômico, idade maior de 34 anos, baixa estatura e relato de morbidades no período da gestação, não foram mais freqüentes nos hospitais universitários do que nos filantrópicos. Os resultados relatados por outros estudos são conflitantes 9,36.

A redução esperada da taxa de cesarianas em nosso meio possivelmente dependerá de uma série de fatores relacionados às mulheres e aos serviços de saúde. A atenção à gestante abre espaço para a formação de opinião entre as mulheres, o que, por sua vez, poderá influenciar a decisão final sobre o tipo de parto 1,13,21, 37,38,39. O esclarecimento sobre vantagens e desvantagens de todas as práticas existentes para o atendimento ao parto, principalmente para as mães de primeiro filho, pode diminuir o medo do parto vaginal, aumentar o entendimento dos riscos de uma cirurgia sem indicações médicas e, conseqüentemente, diminuir as cesarianas repetidas nesse grupo de mulheres 4,16,18,30. Informar e educar as mães sobre o parto requer uma política antenatal saudável e treinamento dos cuidadores 6,37.

Do ponto de vista dos serviços, esse estudo mostrou que, entre as variáveis que se associaram significativamente com a ocorrência de cesariana, pelo menos duas sugerem a possibilidade de abordagem pelo setor primário: a história de hipertensão arterial e de hospitalização durante a gestação. A primeira parece indicar que o cuidado pré-natal que identifique sinais precoces de pré-eclâmpsia e manejo adequado dessa condição poderá influir sobre a taxa de cesariana. O efeito protetor do cumprimento às normas do Programa de Pré-natal corrobora com essa assertiva. Da mesma forma, entre as causas das internações relatadas, há condições que, detectadas precocemente e tratadas no primeiro nível do cuidado, evitariam sua progressão.

 

Colaboradores

D. S. Silveira colaborou na aquisição dos dados. As duas autoras contribuíram na concepção e desenho do estudo; análise e interpretação; redação do artigo para submissão à publicação; revisão crítica do conteúdo do artigo após comentários do corpo editorial da revista à qual foi submetido; redação e aprovação final do artigo após correções.

 

Referências

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Endereço para correspondência
D. S. Silveira
Departamento de Medicina Social, Universidade Federal de Pelotas
Av. José Maria da Fontoura 1218
Pelotas, RS 96090-370, Brasil
denisilveira@uol.com.br

Recebido em 29/Ago/2003
Versão final reapresentada em 27/Fev/2004
Aprovado em 29/Mar/2004

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br