RESENHAS BOOK REVIEWS

 

Dirce Guilhem

Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil

 

 

DOUBLE STANDARDS IN MEDICAL RESEARCH IN DEVELOPING COUNTRIES. Ruth Macklin. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. 288 pp.
ISBN: 05-21-54170-0

A filósofa Ruth Macklin dedica-se ao estudo da bioética desde o seu surgimento como disciplina. Reconhecida por seu trabalho como professora, pesquisadora e escritora, seus textos têm sido utilizados como referência por muitos estudiosos dessa área. Torna-se importante salientar que uma das primeiras obras publicadas aproximando o campo das moralidades ao da medicina — intitulada Moral Problems in Medicine, de 1976 — contava com sua participação como autora. Dois fatos importantes lhe concedem a legitimidade para defender a utilização de um único standard em pesquisas: ter participado ativamente no desenvolvimento da bioética durante os últimos trinta anos e, mais do que isso, ter tido a oportunidade de participar como protagonista no processo que culminou com as recentes modificações de documentos internacionais que, hoje, utilizamos como referências éticas para a condução de pesquisas nos mais variados âmbitos.

Em seu mais recente livro, Macklin se preocupa em apresentar, refletir e posicionar-se frente ao debate internacional e as controvérsias atuais relacionadas ao campo das pesquisas biomédicas multinacionais. Está claro que grande parte da discussão sobre essa temática emergiu em função dos dilemas decorrentes das possíveis respostas a duas perguntas que se seguem. A primeira delas: as pesquisas biomédicas deveriam ser conduzidas em países do Terceiro Mundo quando elas poderiam ser perfeitamente realizadas nos Estados Unidos ou na Europa?; e a segunda: é aceitável que os padrões éticos adotados em países industrializados sejam modificados ou flexibilizados quando os mesmos realizam pesquisas em países em desenvolvimento ou, ainda, em países pobres? Partindo da constatação de que a utilização de duplo padrão gera duplo standard em pesquisa — um para países ricos e outros para pobres —, a autora aborda essas questões de forma aprofundada e faz uma defesa enfática de que a presença de um "... duplo standard em pesquisas médicas é uma situação eticamente inaceitável...".

Para defender a sua posição, a autora discute diferentes pontos da temática, embasando sua argumentação em um vastíssimo referencial bibliográfico e em exemplos paradigmáticos. Porém, o fio norteador que permeia os oito capítulos que compõem a obra é, seguramente, a defesa de uma cultura de direitos humanos e de justiça distributiva, não somente para os sujeitos de pesquisa, mas, também, para as comunidades e países nos quais esses estão inseridos. A defesa de um único standard em pesquisa tem como ponto de partida a Declaração de Helsinque e sua correlação com artigos de outros documentos e regulamentações internacionais. Apresenta um trabalho minucioso sobre quais seriam os pontos positivos e as possíveis lacunas desses documentos. Demonstra que a presença dos mesmos nem sempre é capaz de transcender ao circuito de fragilidades a que estão expostas pessoas e países em um contexto econômico e social extremamente desigual.

No entanto, Macklin acredita que é possível realizar investigações multinacionais respeitando e protegendo a dignidade e os direitos dos sujeitos envolvidos. Para isso, a concepção de direitos humanos precisaria sobrepor-se aos documentos existentes e ser adotada de fato por países, comunidades e, porque não, pelas empresas e instituições que detêm o poder econômico para a condução das pesquisas. Em suas palavras: "... a principal justificativa para se adotar uma análise ampliada de direitos humanos na condução de pesquisas biomédicas, epidemiológicas e sociais é que esta demonstra ser uma condição necessária para tornar possível o desenvolvimento de programas que preencham as necessidades de saúde de diferentes populações ao redor do mundo...". Ou seja, esse posicionamento contribuiria para que houvesse uma distribuição mais justa e eqüitativa do conhecimento proveniente das pesquisas também para as populações de países que participaram das mesmas.

O conceito de justiça distributiva — uma das linhas condutoras para os argumentos apresentados em todo o livro — apresenta-se através de uma defesa contundente de que patrocinadores e pesquisadores têm uma obrigação moral para com os sujeitos de pesquisa, não apenas no decorrer dos estudos, mas, também, após a finalização dos mesmos. Está claro que eles devem assumir compromisso formal no sentido de que as pessoas que obtiveram benefícios com a utilização da medicação durante a pesquisa continuem a recebê-la até que a mesma esteja acessível ou disponível através dos serviços de saúde do país. Na sua opinião, a responsabilidade de patrocinadores e pesquisadores ultrapassa o locus de realização das investigações, estendendo-se às comunidades e aos países que contribuíram para que medicamentos e produtos exitosos fossem desenvolvidos. Segundo a autora, é "... uma violação do princípio de justiça em pesquisa que os sujeitos de países em desenvolvimento assumam todos os riscos associados à mesma, sem que a população envolvida receba os benefícios de produtos bem-sucedidos que surgiram como resultado desse processo...". Fica evidente, portanto, o seu posicionamento em defesa não apenas dos sujeitos, mas, também, das comunidades a que pertencem essas pessoas e onde são considerados como membros interativos e interdependentes.

O questionamento sobre a utilização de um duplo standard em pesquisas e seu estatuto antiético é retomado quando se discute o problema de acessibilidade a medicamentos em países pobres e em desenvolvimento. Essas duas situações são apresentadas em sua mais íntima relação. A partir do momento em que grande parte das populações de países pobres não tem acesso a tratamentos básicos de saúde, a realização de estudos placebo-controlados torna-se uma alternativa tentadora. A justificativa se daria em função de que "... as pessoas que não estão envolvidas como sujeitos de pesquisa não têm possibilidade de acesso à medicação efetiva...". De forma contrária, porém, é preciso ter em mente que se "... o desenho metodológico de uma pesquisa específica é considerado antiético para ser conduzido em um país industrializado, de forma similar, o mesmo desenho será considerado antiético se for utilizado para um país pobre ou em desenvolvimento...". Isso implica que a utilização de placebo em pesquisas, de forma alguma, deve ser condicionada pelo estado de vulnerabilidade econômica e social de sujeitos e países e, conseqüentemente, pela sua falta de acesso a medicamentos essenciais.

Nesse sentido, Macklin aposta em parcerias entre diferentes instituições e atores — públicos, privados e organizações não-governamentais — para tornar acessíveis as consideradas drogas essenciais a um número cada vez maior de pessoas. Acredita que a indústria farmacêutica exerce um papel fundamental no campo da medicina e da saúde, mas não pode atuar isoladamente. Em função disso, torna-se cada vez mais importante considerar a possibilidade de devolução de benefícios para as comunidades que participam das pesquisas que essas financiam. Um dos caminhos apontados para se conseguir preços mais eqüitativos diz respeito ao estabelecimento de negociações prévias à realização dos estudos. Esses acordos representariam um esforço no sentido de que a indústria pudesse fornecer medicamentos a preços mais acessíveis ou, até mesmo, fazer doações de drogas desenvolvidas a partir das pesquisas realizadas. Macklin cita alguns exemplos positivos já implementados, como é o caso da Medicines for Malaria Ventures (MMV) e da Global Alliance for Vaccines and Immunization (GAVI), que estão conseguindo desenvolver pesquisas e disponibilizar medicamentos e vacinas a preços diferenciados. Defende, de forma contundente, que "... as barreiras impostas pela World Trade Organization são impeditivas para que países em desenvolvimento possam ter acesso a medicamentos mais baratos. Mesmo no caso dos genéricos ou de cópias de medicamentos patenteados, essas barreiras necessitam ser fortemente questionadas e derrubadas, já que representam uma franca violação dos tratados internacionais de direitos humanos...".

Nessa mesma linha de pensamento, a autora resgata a importância que assumem os Comitês de Ética em Pesquisa como instâncias fundamentais para a proteção dos sujeitos que participam de estudos biomédicos. Alguns pontos merecem atenção especial: (1) composição e capacitação dos membros do Comitê: torna-se imprescindível a presença de pessoas com formação em metodologia, em ética e bioética, e de membros da comunidade, entre outros; (2) independência efetiva em relação aos pesquisadores que ingressam com protocolos a serem avaliados; (3) capacidade para avaliar os possíveis conflitos de interesse provenientes da realização de uma pesquisa; (4) responsabilidade no que se refere a definir se os objetivos da pesquisa proposta atendem as necessidades de saúde da comunidade ou do país; (5) análise detalhada da relação risco-benefício de forma a proteger os sujeitos ou as comunidades de qualquer tipo de exploração; (6) estabelecimento de acordos prévios: indicar e promover aqueles que melhor favoreçam as pessoas e os países envolvidos após o término dos estudos.

Embora a avaliação inicial, anterior à realização da pesquisa, seja fundamental para a salvaguarda dos sujeitos, essa não resolve os problemas que surgem durante a realização da mesma. O trabalho de um comitê ultrapassa esse momento, devendo estabelecer as regras e responsabilizar-se pelo monitoramento efetivo dos estudos até a sua finalização. Isso permitiria verificar se os procedimentos propostos estão sendo cumpridos, se o processo de obtenção do Consentimento Informado respeita os direitos dos sujeitos e, ainda, se existem desvios ou possíveis fraudes, sejam elas econômicas, procedimentais ou relacionadas aos dados coletados.

Uma outra questão apontada por Macklin é concernente ao léxico utilizado nos documentos, o que pode desencadear dúvidas sobre o que seria eticamente aceitável no contexto das pesquisas clínicas. Como exemplo, ela cita o termo "standares éticos" — que está relacionado aos princípios éticos que norteiam as pesquisas — e que pode ser confundido com "standares de cuidado" — um conceito que provém da prática médica clínica — e, ainda, com "standares procedimentais" — que diz respeito às normas e aos procedimentos. Por isso, aponta a necessidade de compreender-se claramente o que significa cada um desses conceitos, pois a sua utilização equivocada poderia contribuir para a consolidação de desigualdades no contexto de pesquisas multinacionais por parte dos países ricos em relação aos países pobres.

A proteção das pessoas vulneráveis é sempre uma preocupação ao longo de todo o seu livro, principalmente nos países onde as pessoas possuem baixo nível educacional, dificuldade de acesso a serviços básicos de saúde e praticamente inexiste tradição e conhecimento sobre o que significa participar de pesquisas e quais as possíveis diferenças entre cuidados médicos e pesquisas clínicas. O Termo de Consentimento Informado é apontado como uma das importantes salvaguardas para a sua proteção. Um consentimento que tenha as informações necessárias e acessíveis para que as pessoas possam compreender o processo, os procedimentos, os objetivos e as garantias que lhes correspondem, respeitando os contextos culturais nos quais essas pessoas estão inseridas. Seguramente, diferentes nuances e procedimentos se sobrepõem — como, por exemplo, Consentimento Informado e Comitês de Ética em Pesquisa — como instrumentos de proteção aos sujeitos, evitando a sua própria exploração ou a exploração de situações desafortunadas, como a realização de estudos em momentos de epidemia.

Ruth Macklin termina seu livro com um capítulo destinado à defesa de um único standard em pesquisa. Ela enfatiza que "... a adoção de princípios éticos universais é necessária, mas não é uma condição suficiente para que uma proposta de pesquisa seja eticamente aceitável. É necessário, também, adesão incondicional ao princípio de justiça, o terceiro princípio ético fundamental...". Isso significa que se torna impossível falar de um único standard se esse princípio não for apropriado e colocado em prática por todas as pessoas e instituições envolvidas em investigações. E enfatiza que "... um caminho para introduzir um mesmo padrão ético para países industrializados e em países em desenvolvimento não foi (ainda) proposto...". Cabe a nós lutarmos para que "... a manutenção de um mesmo padrão ético para pesquisas não frustre os empreendimentos nessa área, mas possa contribuir para assegurar que a avaliação feita em um futuro próximo não condene a corrente era como uma daquelas que aceitou e endossou duplos standards na ética em pesquisa...". Cada um de nós tem, portanto, que assumir a sua parcela de responsabilidade no sentido de contribuir para que o único standard em pesquisa se transforme, de fato, em uma realidade concreta.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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