ARTIGO ARTICLE

 

Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

 

Can court injunctions guarantee access to medicines in the public sector? The experience in the State of Rio de Janeiro, Brazil

 

 

Ana Márcia MessederI; Claudia Garcia Serpa Osorio-de-CastroII; Vera Lucia LuizaII

IDepartamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde, Brasília, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O crescente número de mandados judiciais impetrados contra a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, Brasil, buscando acesso a medicamentos ensejou a condução do estudo. Um desenho seccional foi utilizado para descrever as ações impetradas de janeiro de 1991 a dezembro de 2002, analisando-as frente à definição de competências dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Utilizou-se amostra estratificada de 389 ações, tendo como base o ano de início. Os resultados sugerem demora no julgamento das ações, sendo a maioria conduzida pela defensoria pública para usuários do SUS. Os medicamentos mais solicitados foram os de ação sobre os sistemas nervoso e cardiovascular, muitos de uso contínuo. Notou-se a oficialização de práticas prescritivas, com a inclusão de medicamentos freqüentemente solicitados nas listas de financiamento público, dificultando adesão ao uso racional de medicamentos. Medicamentos da competência de fornecimento dos municípios são solicitados ao Estado, que, por sua vez, falha no repasse. A aparente falta de esclarecimento dos autores e condutores das ações gera desgaste na relação executivo-judiciário e desvio dos recursos para ações coletivas de assistência farmacêutica.

Medicamentos; Defensoria Pública; Assistência Farmacêutica


ABSTRACT

There are increasing numbers of legal suits concerning access to medicines brought against the Rio de Janeiro State Health Department. The situation indicated the need for a study to clarify the underlying issues. A sample of 389 court suits from January 1991 to December 2001 (stratified by year) was used. A cross-sectional design was used to describe and analyze the legal suits in relation to the responsibilities defined under the Unified National Health System (SUS). Results suggest major delays in court decisions. Most suits are filed by the Public Defender's Office for users of the National Health System. The most frequent cases involve medicines for the cardiovascular and nervous systems, many of which involve continuous use. Prescribing practices are institutionalized through the inclusion of the most frequently prescribed drugs in public financing lists, which makes rational drug use difficult to achieve. Municipalities are not fulfilling their responsibility to supply medicines to users, and the State is thus encumbered with these responsibilities. However, the State does not adequately supply medicines to the municipalities. The apparent lack of awareness among both lawyers and clients generates stress between the Executive and Judiciary branches and limits the resources for collective pharmaceutical services.

Drugs; Public Defender Legal Services; Pharmaceutical Services


 

 

Introdução

No Brasil, com a homologação da Constituição Federal de 1988, define-se saúde como um direito universal a ser garantido pelo Estado. Com base nessa idéia, reformou-se o sistema de saúde pública brasileiro, implantado em 1990, pela Lei nº 8.080, sob o nome de Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como princípios a universalidade de acesso aos serviços, a integralidade da assistência, o controle social, a igualdade e a descentralização político-administrativa 1.

Valendo-se desses novos princípios de reestruturação da atenção à saúde, tornou-se necessário repensar a assistência farmacêutica. Após um processo de discussão envolvendo diferentes segmentos da sociedade, institui-se a Política Nacional de Medicamentos, pela Portaria Técnica do Gabinete do Ministro do Ministério da Saúde (PT/GM/MS) nº 3.916, de 30 de outubro de 1998 2. Esta Portaria tem, dentre seus objetivos, formular as diretrizes de reorientação do modelo de assistência farmacêutica, com a definição do papel das três instâncias político-administrativas do SUS.

Em 1999, com o objetivo de cumprir as diretrizes estabelecidas na nova Política Nacional de Medicamentos, iniciou-se o processo de descentralização da assistência farmacêutica no Estado do Rio de Janeiro.

Com tal reestruturação, era esperado que houvesse uma facilitação do acesso da população aos medicamentos, uma vez que as competências de cada nível de gestão foram definidas de modo a haver uma ação coordenada entre os três níveis. O nível de gestão municipal, aquele mais próximo da população, seria o responsável pela execução das ações, incluindo a dispensação de medicamentos essenciais, tanto aqueles adquiridos por ele próprio, quanto os fornecidos pelos outros dois níveis de gestão. À gestão estadual caberia a responsabilidade de organização e coordenação das ações de assistência farmacêutica dentro do Estado, além da responsabilidade específica quanto à dispensação dos medicamentos de alto custo (ou excepcionais). O gestor federal seria responsável pela regulação de todo o sistema, devendo providenciar os mecanismos de financiamento, bem como propor as diretrizes das ações a serem implantadas pelos estados e municípios 1,3,4.

Os registros de mandados judiciais na Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ) iniciam-se em 1991. Desse ano até 1999, o ritmo de entrada das ações é paulatino e as indicações direcionadas a algumas enfermidades. No entanto, a partir de 2000, percebe-se um grande aumento no número de ações impetradas contra a gestão estadual solicitando medicamentos para todos os tipos de indicações terapêuticas, inclusive de atenção básica 5. Ao final de 2002, somavam-se 2.733 ações judiciais contra o Estado.

O crescente número de ações enseja a necessidade de investigar o fenômeno, iniciando-se pela sua descrição. As dificuldades da população parecem evidenciar-se tanto no acesso aos medicamentos de atenção básica, quanto no desconhecimento sobre o papel de cada instância de gestão no processo, levando-a a manifestar mais intensamente seu poder de reivindicação. Essa situação pode estar no cerne do açodamento da SES/RJ por ações judiciais, pois o atendimento de muitas dessas ações não é de competência do nível estadual de gestão.

O presente trabalho tem como objetivo elaborar uma análise descritiva dos mandados judiciais para fornecimento de medicamentos a pacientes individuais, impetrados contra a SES/RJ, de janeiro de 1991 a dezembro de 2002, e discutir as possibilidades de explicação desse fenômeno.

 

Materiais e métodos

Realizou-se estudo seccional. Os dados relativos às ações judiciais impetradas contra o Estado do Rio de Janeiro entre 1991 a 2002 foram obtidos do arquivo documental e também do banco de dados de "Mandados judiciais contra o Estado do Rio de Janeiro pleiteando medicamentos para uso individual", ambos existentes na Superintendência de Assistência Farmacêutica da SES/RJ 5.

Para a seleção das ações, empregou-se uma amostragem aleatória estratificada por ano de início da ação 6. A amostra apresenta 389 ações, correspondendo a 14,0% do universo 7. Dentro de cada estrato foi mantida a mesma proporcionalidade (Tabela 1).

 

 

Os dados coletados visaram traçar um perfil dos mandados judiciais existentes. As variáveis de interesse escolhidas foram: o número do processo (determinado pelo Judiciário); o ano de início; o status da ação (julgada, não julgada ou encerrada por falecimento do autor); os medicamentos pleiteados, classificados com base no "Código Anatômico, Terapêutico e Químico" — código ATC 8; a participação dos medicamentos pleiteados em alguma lista de financiamento público (para aquisição); a condição patológica do autor pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 10ª Revisão (CID-10) 9,10; a unidade de atendimento (se hospital universitário, federal, estadual ou municipal, posto de atendimento de Secretaria Municipal de Saúde, clínica conveniada ao SUS, clínica não conveniada ao SUS e médico particular); o condutor da ação (defensoria pública, escritório modelo e escritório particular); o município de domicílio, o tipo de gestão do município de domicílio (gestão plena do sistema municipal — GPSM ou gestão plena de atenção básica — GPAB, de acordo com a Norma Operacional Básica — NOB/96) 3; e se a mesma ação foi também impetrada contra o município de domicílio do autor.

A análise foi realizada, inicialmente, calculando-se a freqüência simples de todas as variáveis, com o intuito de descrever as características principais dos mandados judiciais. A descrição das freqüências das variáveis demonstrou algumas características que podiam apresentar relação com outras variáveis estudadas, indicando a necessidade de cruzamento. Foram feitos os seguintes cruzamentos de dados: os 16 medicamentos mais freqüentes nas solicitações versus as condições patológicas dos pleiteantes; os medicamentos mais solicitados em cada estrato versus o ingresso desses medicamentos nas listas de financiamento público para aquisição. Além dos anteriores, os medicamentos pleiteados, categorizados pela sua inclusão em listas de financiamento público oficiais, foram cruzados com o tipo de gestão dos municípios de domicílio dos autores.

 

Resultados

Descrição das variáveis

Com relação ao status das ações analisadas, 87,9% (342) de todas as ações não haviam sido julgadas até o final do período estudado. Das restantes, 10,0% (39) foram julgadas e em 2,1% (8) houve o falecimento do autor. A análise por estrato não parece demonstrar lógica específica de julgamento por antigüidade. Ao contrário, parece haver uma concentração aleatória dos julgamentos nos anos de 1996 (33,3%) e 1997 (61,4%). Nos anos de 2001 e 2002, há um baixo percentual de ações julgadas (2,0 e 1,3%, respectivamente).

Quanto ao condutor da ação, 53,5% (208) das mesmas foram conduzidas pela defensoria pública; 20,3% (79) por escritórios de advocacia particulares; 6,7% (28) por escritórios-modelo e 19,5% (76) das ações não continham informação sobre os escritórios condutores. A análise por estrato demonstra que, a partir de 1999, há uma tendência de crescimento no número de ações conduzidas pela defensoria pública e uma diminuição importante daquelas conduzidas pelos escritórios modelo. No que tange à participação dos escritórios particulares, o número se manteve constante no período estudado.

Ao se analisar o tipo de unidade de saúde em que os autores das ações eram acompanhados, observou-se que 36,8% dos autores eram oriundos de hospitais universitários, 19,5% de clínicas conveniadas ao SUS, 11,1% de hospitais federais, 10,5% de postos de atendimento das Secretarias Municipais de Saúde, 10,5% de médicos particulares, 5,4% de clínicas não conveniadas ao SUS, 3,6% de hospitais municipais, 1,3% de hospitais estaduais e 1,3% sem informação sobre a origem do prescritor.

Considerando os municípios isoladamente, constata-se que quase 70,0% dos autores são domiciliados no Rio de Janeiro. Caso se considere o Grande Rio, que inclui os municípios da Baixada Fluminense (Belford Roxo, Duque de Caxias, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti), Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro, observa-se que quase 90,0% dos autores são domiciliados nessa região.

Tendo-se em conta a habilitação dos municípios, de acordo com a NOB/96 3, em municípios de GPSM e GPAB, e somando-se as porcentagens relativas ao número de mandados em cada tipo de município, observa-se que 82,0% das ações são de autores domiciliados em municípios habilitados na GPSM. Das demais, 11,3% são ações de autores domiciliados em municípios habilitados na GPAB. Cerca de 6,7% são ações que não fornecem qualquer dado sobre o município de domicílio do pleiteante.

A investigação empreendida para esclarecer se ambos — estado e município — seriam réus da mesma ação impetrada por autores domiciliados em municípios de GPSM, evidenciou que 50,2% delas eram impetradas contra ambos e 35,5% apenas contra o Estado. Do total de ações, 14,3% não continham essa informação.

Classificando os medicamentos solicitados de acordo com o código ATC 8 e relacionando os tipos pleiteados e os grupos principais da classificação, obteve-se que 21,0% fazem parte do grupo de medicamentos para o sistema nervoso (N); 17,5% para o sistema cardiovascular (C); 15,8% para o trato alimentar ou metabolismo (A); 13,0% são antiinfecciosos de uso sistêmico (J); 7,9% são antineoplásicos ou agentes imunomoduladores (L); 5,2% são medicamentos que atuam sobre o sistema respiratório (R); 4,1% são medicamentos que atuam no sistema hematopoiético (B), 4,1% no sistema músculo-esquelético (M); 3,4% são preparações hormonais sistêmicas — excluindo hormônios sexuais e insulina — (H); 2,1% classificam-se como medicamentos que atuam no sistema geniturinário — incluindo os hormônios sexuais — (G); 2,1% são medicamentos que atuam nos órgãos sensoriais (S); 1,4% são preparações dermatológicas (D); 1,4% fazem parte do grupo que inclui vários medicamentos não classificados nos outros grupos (V); e 1,0% é de medicamentos para parasitoses (P). A Tabela 2 mostra a classificação dos 16 medicamentos mais solicitados até o quinto nível do código ATC.

 

 

A doença por HIV não específica (B24 — classificação da CID-10) 9 era, até 1998, a condição patológica dominante nas ações; sua freqüência, entretanto, diminui, de superior a 90,0% (entre 1991 a 1998), para apenas 16,7% no ano de 1999 e 14,6% no ano de 2000. A partir de 1999, surge uma diversificação importante das condições patológicas dos pleiteantes. Em 2000, incluem-se a doença de Crohn, a hepatite viral crônica C e a doença renal em estágio final. Nos anos de 2001 e 2002, também figuram entre as condições patológicas mais freqüentes a hipertensão essencial e a doença isquêmica crônica do coração, condições de atenção básica.

Análise descritiva de possíveis relações entre as variáveis

A relação entre os pedidos dos 16 medicamentos mais solicitados e a condição patológica dos autores é apresentada na Tabela 3.

Ao serem separados os pedidos de medicamentos de acordo com o ano de início do processo, pode-se perceber claramente um padrão nos pedidos. Até 1998, observam-se, quase que exclusivamente, pedidos de anti-retrovirais, especialmente o Indinavir, o Saquinavir e a Zidovudina — e da Sulfassalazina, também usada na terapia de intercorrências da AIDS. A partir de 1999, pela variabilidade de condições patológicas entre os impetrantes das ações, ocorre uma grande diversificação com relação aos medicamentos pleiteados. No ano de 2000, os medicamentos mais solicitados são: Toxina botulínica A, Riluzol e Olanzapina. Em 2001, os medicamentos mais solicitados foram os Acetatos de ciproterona e de goserelina. Neste ano também se iniciam os pedidos de Hidrocloreto de sevelamer, Mesalazina e Peg-interferon. No ano de 2002, os medicamentos Hidrocloreto de sevelamer e Mesalazina são os mais pedidos. Além desses, no ano de 2002, aumentam os pedidos para os medicamentos Peg-interferon, Carbidopa + Benserazida e Infliximab.

A Tabela 4 apresenta os medicamentos sob financiamento público que são pleiteados nos mandados judiciais.

 

 

Discussão

Uma vez que a maioria das ações impetradas ainda não teve seu mérito julgado, continuam sendo cumpridas sem que haja uma correta avaliação da adequação do pleito. Esta adequação, do ponto de vista até então externado pelo Judiciário, parece envolver apenas as garantias constitucionais do cidadão; no entanto, aparentemente se ignora o ponto de vista clínico e as conseqüências sobre a saúde do indivíduo. Em algumas situações, o cuidado à saúde definitivamente não estará sendo resguardado pelo uso do medicamento pleiteado. Um exemplo é o pleito para o medicamento Gangliosídeo, cuja eficácia não está comprovada e que tem sido reiteradamente retirado do mercado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Resolução Executiva nº 2. http://e-legis.bvs. br/leisref/public/showAct.php, acessado em 01/Mar/2004), tendo seu fornecimento sido mantido sob recurso judicial, levando à necessidade de o órgão regulador criar normativas especiais para o uso do medicamento.

Percebe-se ainda que o problema quanto à falta de tempestividade no julgamento das ações tende a se agravar, tendo em vista o grande aumento do número de pedidos. Esta situação confirma as dificuldades do Judiciário em lidar com o julgamento dessas ações, tendência presente também nos primeiros anos de registro dos mandados, quando havia um número consideravelmente menor de pedidos. As ações impetradas naquela época também não foram julgadas tempestivamente. Cabe salientar ainda a possibilidade de falecimento de autores, ocorrido sem que a SES/RJ tenha sido comunicada. Neste estudo foi possível apenas a análise das notificações recebidas pela secretaria, o que representa um fator limitante. Ocorre, contudo, que a não-notificação das ocorrências conduz a SES/RJ a considerar a ação como não julgada, com a decorrente manutenção do atendimento ao pleito, contribuindo para menor eficiência na aplicação dos recursos da assistência farmacêutica estadual.

A análise por estrato, da variável condutor da ação, mostra que as perdas de informação quanto a esta variável, anteriores a 1999, foram muito altas. Isso se dá pelo fato de o arquivo documental de mandados judiciais da Superintendência de Assistência Farmacêutica da SES/RJ conter apenas os dados organizados adequadamente a partir daquele ano. Verifica-se que a grande maioria dos mandados é conduzida por escritórios de advocacia gratuita (defensoria pública e escritórios-modelo das universidades). Cabe ainda ressaltar que os escritórios particulares são, em grande parte, integrantes das associações de portadores de condições patológicas específicas ou de organizações não governamentais (ONG); esta constatação indica que grande parte desta assessoria também é gratuita, ainda que não pública. As informações dando conta da relativa constância quanto à participação de escritórios particulares parecem indicar que, pelo menos no período estudado, as ações judiciais pleiteando medicamentos não se configuram como mercado para a advocacia particular.

Nota-se que apenas 16,0% dos pedidos foram gerados por autores atendidos em unidades fora do SUS e que a grande maioria vem de unidades vinculadas ao sistema. Destas, os hospitais universitários são os principais geradores de pedidos. Esses hospitais são unidades que costumeiramente avaliam novas tecnologias; resultam, desse modo, em unidades prescritoras de fármacos ou de tratamentos inovadores. No momento em que os hospitais universitários prescrevem medicamentos ainda não padronizados pelo resto do sistema, mas não os fornecem, geram, de facto, uma demanda não atendida permanente. Esta situação predispõe o uso dos mandados judiciais como recurso ao acesso. Este achado está em concordância com observações realizada por outros autores 11.

A maioria dos autores das ações é domiciliada na região do Grande Rio (90,0%). É nesta região que coexistem a maior concentração populacional do Estado, uma maior concentração de unidades de atendimento à saúde e possivelmente maior acessibilidade aos mecanismos do Judiciário (defensoria pública, escritórios-modelo de universidades), favorecendo o acúmulo de ações.

Observa-se cerca de um terço delas (35,6%) sendo impetradas apenas contra o Estado do Rio de Janeiro. Quando isso acontece, o Estado será obrigado a atender à ação, mesmo que esta pleiteie medicamentos que sejam da competência de fornecimento do município. Cabe ressaltar que municípios habilitados na modalidade GPSM se comprometem a prestar atendimentos de baixa, média e alta complexidade a seus munícipes e aos não residentes, de acordo com as Programações Pactuadas Integradas (PPI) 3. Isto implica que, em se tratando de ações de munícipes de municípios habilitados na modalidade de GPSM, estas deveriam ser impetradas contra os municípios, o que não vem acontecendo. Tanto a informação acima quanto o fato de que metade das ações é impetrada contra ambos, Estado e município, indicam a falta de esclarecimento por parte da defensoria pública, principal condutor, sobre as competências de fornecimento.

Com relação aos medicamentos pleiteados, percebe-se que os três grupos mais demandados (sistema nervoso, sistema cardiovascular e trato alimentar ou metabolismo) incluem medicamentos de uso contínuo, ou seja, para o tratamento de condições crônicas. De modo geral, várias dessas condições são tratáveis pelo elenco da atenção básica. Pleitos dessa natureza podem indicar falta de acesso no município dos pleiteantes. Por outro lado, se o pleito é mal direcionado (como vimos acima), a instância ré será obrigada a fornecer, por toda a vida do indivíduo, ou até o julgamento da ação — que, como evidenciado, está longe de ser imediato — medicamentos que não são de sua competência.

Dos 16 medicamentos mais solicitados (Tabela 2), apenas 6 (Sulfassalazina, Mesalazina, Cloridrato de sevelamer, Acetato de ciproterona, Acetato de goserelina e Olanzapina) são medicamentos excepcionais, de competência de dispensação pelo Estado do Rio de Janeiro, dependendo da condição indicada pelo Ministério da Saúde 12,13. Os medicamentos Indinavir, Zidovudina, Estavudina, Saquinavir e Didanosina são medicamentos incluídos no Consenso Terapêutico do Programa Nacional de DST/ AIDS, adquiridos pelo governo federal, cabendo ao município de domicílio dos autores sua dispensação 14. Os medicamentos Captopril, Sulfametoxazol + Trimetropina, Furosemida e Espironolactona fazem parte do elenco estadual do Programa de Assistência Farmacêutica Básica, também cabendo ao município de domicílio dos autores a sua dispensação. Percebe-se, assim, que grande parte dos pleitos deveria estar sendo encaminhada para os municípios e não para o Estado. Este proceder implicaria também uma maior responsabilização das autoridades sanitárias dos municípios, intimadas a cumprir a lei.

Uma consideração importante quanto ao pleito dos autores é a avaliação das condições patológicas apresentadas. A avaliação da condição patológica é essencial, sobretudo em relação aos medicamentos excepcionais, que possuem sua dispensação condicionada à doença do paciente. Uma verificação da correta prescrição dos medicamentos é um dado importante para avaliar a real necessidade dos pedidos e a adequação da indicação terapêutica, dentro do marco do uso racional de medicamentos. Antecipação de tutela (ordem judicial obrigando o réu a fornecer medicamento antes do julgamento do mérito da ação) não leva em conta questões relativas à racionalidade do uso. A demora no julgamento das ações apenas agudiza a situação, podendo, potencialmente, trazer prejuízos aos pacientes, o que nos remete ao início desta discussão.

Nota-se que a prescrição de medicamentos está, com base nos poucos elementos de verificação descritos no texto dos processos, adequada, em termos gerais, às condições patológicas indicadas (Tabela 3). Há ressalvas, porém.

O medicamento Sulfassalazina é um antiinflamatório não esteroidal e sua indicação para pacientes com doença por HIV não específica pode ser decorrente de infecções associadas à condição patológica principal, não descritas no processo. Já o medicamento Captopril é um inibidor da enzima de conversão de angiotensina (ECA), usado no tratamento da hipertensão arterial sistêmica e da insuficiência cardíaca, dentre outras indicações 15. Em algumas ações, entretanto, a indicação arrolada não parece ser relacionada à condição patológica descrita. A indicação, nesse caso, caberia a uma possível condição patológica secundária à descrita para o autor, situação que evidencia a falta de adequada caracterização deste item na ação. Nesses casos, não é possível concluir sobre a racionalidade da indicação. Ainda que fosse solicitado parecer técnico quanto à racionalidade, a qualidade da informação seria um fator limitante.

O medicamento Sulfametoxazol + Trimetropina é uma associação de dois quimioterápicos com efeito sinérgico, pois atua por bloqueio seqüencial de duas etapas compreendidas na biossíntese bacteriana do ácido folínico 15. A indicação para microcefalia, condição descrita no banco, seria sustentável apenas no caso da condição patológica não estar adequadamente descrita. Persistem aí dúvidas quanto à racionalidade da indicação.

Tendo em vista o perfil de utilização revelado pelo banco de dados, em que 13,6% dos medicamentos pleiteados são para tratamento de agravos do sistema nervoso, e que destes pedidos o mais freqüente (9,9% do total) refere-se ao medicamento Olanzapina, faz-se necessária uma consideração quanto à sua prescrição. A indicação da Olanzapina, respaldada pela literatura corrente, depende obrigatoriamente da satisfação de duas condições: refratariedade ao tratamento com antipsicóticos convencionais e intolerância à Clozapina 15. Resta considerar se estas determinações foram cumpridas em todos os pleitos, o que não foi possível avaliar, pela ausência de dados na ação.

A análise enfocou apenas os 16 medicamentos de maior ocorrência nos mandados analisados. O pressuposto é de que esses medicamentos, por serem mais prescritos, sejam aqueles para os quais o clínico está mais atento quanto aos efeitos e às indicações. Mesmo dentre os 16 estudados, houve possível inadequação entre prescrição e indicação. Com relação aos medicamentos não avaliados, prescritos eventualmente e possivelmente não tão bem conhecidos, é evidente que a indicação pode não estar ocorrendo com base na melhor evidência científica. Confirmação desta hipótese depende de análise subseqüente.

O perfil das ações até o ano de 1999 indica pleito a medicamentos que já faziam parte de listas de financiamento público, mas ainda não eram regularmente fornecidos. A partir de 1997, ocorre a estruturação do Programa Nacional de DST/AIDS, com a distribuição gratuita dos medicamentos anti-retrovirais, facilitando assim o acesso da população a esses medicamentos. Nota-se, como conseqüência, menor número de processos judiciais pleiteando-os. Os medicamentos Toxina botulínica, Riluzol e Olanzapina já eram considerados como excepcionais desde 1996, mas a partir de sua inclusão na grade de dispensação da SES/RJ, em 2001, a incidência de mandados para esses medicamentos caiu de modo importante.

A dinâmica que determinava a intensidade dos pleitos não incluía a pressão sobre a composição das listas. A partir de 2000, o fenômeno de incidência de pleitos a medicamentos parece seguir uma seqüência diferente da anterior. Há uma relação entre o aumento dos pedidos de medicamentos por meio de mandados judiciais e a inclusão de medicamentos nas listas oficiais de financiamento. Observa-se que a seleção de medicamentos para inclusão em listas de financiamento leva à diminuição da incidência de ações judiciais pleiteando esses medicamentos.

Um exemplo claro é a atual lista de medicamentos excepcionais. Em 2000, iniciam-se pleitos para Mesalazina e Riluzol. No ano de 2001, mantêm-se pedidos de Mesalazina e Riluzol, e iniciam-se os pedidos de Peg-interferon e Hidrocloreto de sevelamer. Em 2002, acentuam-se os pedidos de Hidrocloreto de sevelamer, Mesalazina e Peg-interferon e surgem os pedidos de Levodopa + Benserazida, Infliximab, Sinvastatina e Rivastigmina. Na última revisão da lista de medicamentos excepcionais (PT/GM/ MS nº 1.318/02) 12 houve a inclusão de todos esses medicamentos no elenco do programa.

Das ações impetradas contra o Estado do Rio de Janeiro, apenas 31,4% dos pedidos solicitavam medicamentos excepcionais — de competência estadual de fornecimento (Tabela 4). Os demais 68,6% dos pedidos pleiteavam medicamentos que, apesar de apresentarem variados mecanismos de financiamento (medicamentos estratégicos, de atenção básica, de saúde mental), têm sua dispensação sob competência municipal, seja de municípios habilitados sob GPAB, seja de municípios sob GPSM 2,16,17. Os medicamentos sem mecanismos de financiamento explícitos, que representam 30,8% dos pedidos, devem ser financiados pelos municípios, de acordo com o seu nível de complexidade. Os municípios de GPAB devem financiar os medicamentos de atenção básica, enquanto os municípios de GPSM devem financiar os medicamentos de qualquer nível de atenção. Dos pedidos de medicamentos sem financiamento público explícito, 88,3% são de munícipes de municípios habilitados sob GPSM, o que remete a competência do fornecimento dos medicamentos a esses municípios. Os 8,0% de pedidos de medicamentos sem financiamento explícito pleiteados por munícipes de municípios habilitados sob GPAB devem ter seu nível de complexidade avaliado. Quando não forem de atenção básica, compete ao estado o auxílio ao município para o fornecimento. Destaca-se o fato de que nenhum município do Estado do Rio de Janeiro apresentou plano municipal de assistência farmacêutica ou contemplou a questão de forma explícita em seu plano municipal de saúde. Contribui também para esse quadro a superposição dos elencos públicos de financiamento de medicamentos pelas três esferas de governo, em que alguns itens são contemplados por todas as esferas enquanto outros itens da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) são órfãos de mecanismo formal de provisão 11.

 

Conclusões

Os mandados judiciais para fornecimento de medicamentos, no período de 1991 a 2001, parecem mostrar um caminho que se inicia pela busca do acesso aos medicamentos anti-retrovirais e passa pelos medicamentos excepcionais. Usuários desses medicamentos vêm demonstrando maior poder de organização e pressão por seus direitos. Nos últimos anos, no entanto, há incorporação dos medicamentos da atenção básica, o que pode ser indicativo da omissão das gestões municipais (a quem compete o fornecimento) e estaduais (a quem compete parte do financiamento).

Nota-se de modo importante, a indicação do estado como réu em pleitos que, de acordo com as normativas administrativas, deveriam ser direcionados às instâncias municipais. Esta situação tem como conseqüências a des-responsabilização dos municípios, a não-efetivação do SUS e a alocação indevida de recursos da Assistência Farmacêutica Estadual, comprometendo outras ações.

Os cidadãos, por outro lado, parecem totalmente desorientados no que tange aos pleitos. Compreende-se que a missão constitucional dos governos é de atender às necessidades da população; porém, a falta de esclarecimento, inclusive da defensoria pública, quanto à divisão de responsabilidade entre os gestores, parece não assegurar a melhoria de acesso aos medicamentos pelo cidadão além de impedir a concretização da descentralização.

Percebe-se, ainda, relativa despreocupação das instâncias condutoras e julgadoras das ações com as questões relativas ao uso racional dos medicamentos e os possíveis danos oriundos da má indicação e do mau uso. Além disso, a alternância entre medicamentos mais pleiteados no decorrer dos últimos anos, o que não se explica por "surto" de determinada condição patológica, leva a supor que essas tendências de utilização se devam à introdução de inovações terapêuticas (fato corroborado pelas inclusões nas listas de financiamento público) e ao descumprimento de protocolos clínicos pelos prescritores.

Entende-se que as questões aqui relatadas devam nortear ações que visem melhorar o relacionamento entre os poderes Judiciário e Executivo. A melhor organização do Executivo deve ser acompanhada de maior rapidez na avaliação dos processos pelo Judiciário, bem como sua atenção renovada aos pareceres técnicos dos mesmos. Com isso ambos contribuiriam fortemente para a segurança e bem-estar do indivíduo pleiteante e do restante da população, beneficiada coletivamente pela resultante melhor gestão dos recursos públicos.

 

Colaboradores

A. M. Messeder realizou a busca bibliográfica, coleta e análise de dados, discussão e redação do artigo. C. G. S. Osorio-de-Castro contribuiu com a revisão da análise de dados, revisão dos resultados, discussão e revisão do texto final. V. L. Luiza participou da revisão da análise de dados e revisão do texto final.

 

Referências

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2. Brasil. Portaria nº 176. Estabelece critérios e requisitos para a qualificação dos municípios e estados ao incentivo à Assistência Farmacêutica Básica e define valores a serem transferidos. Diário Oficial da União 1999; 11 mar.        

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7. Osorio-de-Castro CGS, Castilho SR. Diagnóstico da farmácia hospitalar no Brasil. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz; 2004.        

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9. Organização Pan-Americana da Saúde, Organização Mundial da Saúde. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. v. 1. São Paulo: Edusp; 1997.        

10. Organização Pan-Americana da Saúde, Organização Mundial da Saúde. Classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde. v. 3. São Paulo: Edusp; 1997.        

11. Luiza VL. Acesso a medicamentos essenciais no Estado do Rio de Janeiro [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro. Escola Nacional de Saúde Pública; 2003.        

12. Brasil. Portaria nº 1.318. Aprova a nova relação de medicamentos excepcionais e dá outras providências. Diário Oficial da União 2002; 23 jul.        

13. Secretaria de Assistência à Saúde, Ministério da Saúde. Protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas — medicamentos excepcionais. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.        

14. Coordenação Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde. Recomendações para terapia anti-retroviral em adultos e adolescentes infectados pelo HIV. http://www. aids.gov.br/final/tratamento/Consenso%20ARV%20adulto%20-%20vers%E3o%202001.doc (acessado em 20/Dez/2002).        

15. Bermudez JAZ, Oliveira MA, Wannmacher L, Osorio-de-Castro CGS, Cosendey MAE, Luiza VL. Fundamentos farmacológico-clínicos dos medicamentos de uso corrente no Brasil. São Paulo: Sonopress; 2002.        

16. Rio de Janeiro. Deliberação CIB-RJ nº 47. Aprova o Programa de Assistência Básica em Saúde Mental do Estado do Rio de Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 1999; 9 dez.        

17. Rio de Janeiro. Deliberação CIB-RJ nº 91. Aprova o Plano de Assistência Farmacêutica Básica do Estado do Rio de Janeiro. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 2001; 6 ago.        

 

 

Endereço para correspondência
A. M. Messeder
Coordenação Geral de Planejamento
Articulação e Gestão de Programas
Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos
Ministério da Saúde
Esplanada dos Ministérios
Bloco G, sala 830
Brasília, DF
70058-900, Brasil
ana.messeder@saude.gov.br

Recebido em 19/Abr/2004
Aprovado em 01/Out/2004

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br