RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Claudia Bonan

Instituto Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

 

 

VISÕES DO FEMININO: A MEDICINA DA MULHER NOS SÉCULOS XIX E XX. Ana Paula Vosne Martins. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. 288 pp.
ISBN: 85-7541-048-2

Foi com grande interesse que li Visões do Feminino: A Medicina da Mulher nos Séculos XIX e XX, de Ana Paula Vosne Martins. Nas últimas décadas, muito se tem escrito sobre o papel dos modelos explicativos das ciências biomédicas e dos processos históricos impulsionados pelos seus agentes na conformação da matriz sócio-cultural, política e institucional das sociedades modernas. Nesse campo de estudos, alguns autores tornaram-se referência obrigatória como, por exemplo, o francês Michel Foucault e o brasileiro Jurandir Costa. A obra aqui apresentada candidata-se a ser uma das monografias de referência nesse campo de investigações, tanto pela especificidade de suas contribuições, sua abordagem teórico-metodológica e suas teses, como pelas novas indagações que projeta.

Visões do Feminino: A Medicina da Mulher nos Séculos XIX e XX soma-se aos programas de pesquisa que se dedicam à questão de como o corpo, a sexualidade e a reprodução tornaram-se objetos privilegiados para forças sociais que emergiram com a modernidade, como pensadores sociais dos séculos XVIII e XIX, estrategistas do Estado nacional e representantes das ciências biomédicas. Seus pontos de partida são o estudo da formação de um discurso científico sobre a diferença sexual e da constituição da ginecologia e da obstetrícia como especialidades médicas na Europa e no Brasil, e busca compreender como a "ciência sexual" e a "medicina da mulher" foram forças centrais na construção e legitimação do imaginário moderno da diferença radical entre homens e mulheres, ou mais exatamente, da alteridade feminina radicada inexoravelmente em seu corpo.

Na leitura de Martins vemos como, no século XIX, com o triunfo da biologia e a ascensão do poder médico, consolidou-se um novo modo de pensar as distinções de gênero: as diferenças corporais se instalaram progressivamente como referência do feminino e do masculino. No sexo biológico, médicos, biólogos, anatomistas e fisiologistas viram a origem de uma irredutível diferença entre homens e mulheres expressada não somente na ordem físico-anatômica, como também em uma ordem moral e social. Em seu afã de definir a "mulher", eles promoveram um intenso debate público sobre a domesticidade e a inferioridade das mulheres, a vocação maternal, a sexualidade perigosa, o pudor feminino, a pouca aptidão para a política e as ciências etc., contribuindo para fundamentar a exclusão das mulheres da esfera da cidadania e a negação de sua autonomia e subjetividade. Enquanto o corpo feminino se tornava objeto de um discurso normativo altamente eficiente, os médicos se consolidavam como poder político e artífices de primeira linha na construção das instituições modernas: as ciências, a família burguesa, o Estado nacional etc.

As relações entre saber médico e corpo feminino têm sido objeto de estudo de vários autores fora e dentro do Brasil e há uma razoável bibliografia sobre a temática. Em nosso país, não são inexistentes, porém ainda são poucos os estudos que nos oferecem análises sociohistóricas e antropológicas extensas, combinando revisão bibliográfica e análise de fontes primárias, como teses de medicina, arquivos de hospitais e escolas médicas e revistas médicas. Esse fato também realça a relevância do livro que ora apresentamos.

Com maestria, Martins dialoga com várias vertentes da literatura que têm se debruçado sobre o tema da construção moderna do corpo feminino, inclusive o pensamento crítico feminista e o campo de estudos de gênero. Longe de qualquer explicação simplista e com grande rigor metodológico, a autora transita entre a literatura e os dados sociohistóricos primários, percorrendo um itinerário com núcleos de argumentos articulados e desenvolvendo sua tese central: a instituição do corpo feminino como objeto do discurso médico-científico e sua transformação em lugar de prático de intervenção de seus agentes geraram "um processo de gerenciamento dos corpos femininos sem precedentes até meados do século XIX". Para a compreensão do fenômeno, ela reconstitui analiticamente processos políticos dinâmicos, influenciados por múltiplas causas e condições históricas. Ao lermos Visões do Feminino: A Medicina da Mulher nos Séculos XIX e XX, somos introduzidos nos meandros da constituição do campo político onde se disputam os significados da diferença sexual e do corpo feminino, e temos um cenário complexo de seus vários componentes: os atores sociais, suas origens, relações e interações, conflitos, alianças e oposições, agendas e estratégias; os marcos interpretativos que lhes orientam e os elementos ideológicos e valorativos de seus discursos; os diferenciais de poder entre eles; os espaços políticos e institucionais que ocupam e sua interlocução com outros campos de debate político. Os contextos políticos, sociais e culturais que emolduraram esses processos também são cuidadosamente apresentados, permitindo um entendimento das estruturas de oportunidades e condicionamentos que os atores históricos encontraram e como novos conhecimentos e práticas foram incorporados reflexivamente, transformando as instituições tradicionais e dando passo às instituições modernas.

O livro está estruturado em oito partes. Na Apresentação, Martins expõe a problemática de seu estudo, situando-a não apenas nos primórdios das sociedades modernas como também demonstrando sua pertinência para a compreensão das dinâmicas da modernidade contemporânea. Os modos como processos de temporalidade distintas influenciam a contemporaneidade é sintetizado da seguinte maneira: "queremos apontar para a semelhança entre a representação moderna da mulher-corpo e a representação médico-científica produzida pelos saberes que foram objeto deste livro, mesmo porque as imagens e os mecanismos de controle sobre a mulher hoje não são apenas produtos do mercado — fazem parte de uma história da produção de saberes e práticas sobre o corpo feminino, cujas origens estão em outros domínios: as ciências biológicas e a medicina da mulher".

No primeiro capítulo, Gênero, Ciência e Cultura, a autora discorre sobre o nascimento da ciência moderna, fundadora de uma nova forma de ver e explicar o mundo natural e humano, instituindo como método a observação empírica, a experimentação e a classificação e nomeação das coisas, e revolucionando as bases epistemológicas do conhecimento, que passa a ser concebido como um processo objetivo, fundado em princípios dicotômicos como a separação observador e a realidade, a cultura e a natureza, a mente e o corpo, a razão e a emoção. Na linguagem e na ideologia da ciência moderna, essas dicotomias estão fortemente associadas àquela do masculino/feminino e implicadas nas formas modernas de estruturação simbólica, normativa e institucional das distinções de gênero. Na parte intermédia do capítulo, vemos como cientistas e médicos do século XIX constituíram a diferença sexual como objeto de conhecimento privilegiado, questionando o modelo da homologia sexual das tradições anteriores — para as quais a mulher era um "homem imperfeito" na ordem hierárquica do cosmos — e instituindo um discurso sobre a diferença sexual radical, no qual o "diferente" é a mulher e a diferença está inexoravelmente ligada ao seu corpo. A última parte, analisa como as ciências biomédicas se dedicaram a fazer um inventário minucioso da diferença feminina e a produzir um saber sobre a "essência da mulher" e as implicações desse processo histórico na reordenação das relações de gênero e na vida das mulheres.

O segundo capítulo, A Ciência Obstétrica, trata dos processos de constituição da obstetrícia como conhecimento prático e disciplinar no século XIX, e do crescente papel político e moral que os médicos adquiriram na construção da nova ordem social. Analisa-se a transformação histórica do parto de um evento social ligado à cotidianidade das mulheres em um evento médico e hospitalar, envolvendo disputas entre os saberes médico-científicos e os saberes tradicionais a respeito da gestação e do parto e, claro, interações, conflitos e negociações entre médicos e parteiras. Para o avanço da ciência obstétrica também foi necessário vencer interdições e resistências advindas dos costumes tradicionais e das autoridades paterna e religiosa. Estavam em jogo, ao mesmo tempo, a definição de novos campos e competências profissionais, a conquista de confiança e adesão da clientela, e o estabelecimento do papel político e cultural dos médicos na organização das novas sociedades. Médicos obstetras se somaram ao projeto de construção da nação e participaram ativamente na elaboração das políticas públicas do Estado, disponibilizando seus conhecimentos sobre a capacidade reprodutiva feminina e a "natureza da mulher". Os significados da introdução dos instrumentos obstétricos e da transformação dos métodos de investigação clínica do corpo feminino são também objetos de reflexão da autora. Enfim, a análise se dirige ao papel histórico cumprido pelas ciências obstétricas em dar significados práticos ao modelo biológico das diferenças sexuais, atualizando em um campo de conhecimentos práticos e disciplinares a visão da especificidade da natureza feminina e da vocação maternal da mulher.

O terceiro capítulo, A Ciência da Mulher, aborda a constituição da ginecologia como especialidade médica e seu papel na construção das representações modernas da sexualidade e do corpo feminino. Se os fenômenos relacionados à capacidade reprodutiva feminina haviam sido o foco da ciência obstétrica, a "ciência da mulher" — como foi definida a ginecologia no século XIX — tomou como objeto de conhecimento e intervenção médica a sexualidade e os órgãos sexuais femininos. Com seu advento, aprofundou-se a idéia da diferença sexual radical das mulheres e conformou-se definitivamente um campo de práticas médicas diferenciado, para uma categoria diferenciada de clientes: as mulheres. Na primeira parte do capítulo, vemos como "a ginecologia se constitui no século XIX tendo como referência essa imagem da mulher submetida ao império de seus órgãos genitais". Para esses médicos, os órgãos sexuais determinariam a natureza nervosa, frágil e inconstante da mulher e sua predisposição a doenças e perturbações mentais, moldando assim suas capacidades sociais. A sexualidade feminina foi representada como perigosa e paradoxal, oscilando entre a ausência de desejo — definido como a normalidade — e o desejo excessivo — fator de perturbações físicas, psíquicas e morais. Independente de como se manifestavam, procurava-se uma etiologia sexual para as doenças das mulheres, pois estas estariam inequivocamente determinadas por seu sexo. Na segunda parte, analisa-se o papel dos cirurgiões na constituição da ginecologia como especialidade médica e as disputas pela delimitação de campos e competências profissionais que envolveram também médicos obstetras, parteiras, curandeiros e leigos. Aqui também são analisados os significados da transformação dos métodos de exame do corpo feminino e da introdução dos instrumentos ginecológicos modernos, e vemos como esses médicos abriram caminhos em meio a objeções morais, pudores, questionamentos éticos, medos e desconfianças.

A Obstetrícia e a Ginecologia no Brasil é o título do quarto capítulo que trata de compreender como médicos brasileiros se engajaram nas discussões sobre a diferença feminina e como a obstetrícia e a ginecologia se organizaram em nosso país.

Na primeira parte do capítulo, o foco recai sobre as condições em que se organizam o ensino médico no Brasil, no decorrer do século XIX, buscando entender o contexto político, cultural e institucional em que se desenvolve a formação de médicos obstetras e ginecologistas, e a estruturação dessas especialidades. Na segunda parte, a autora analisa teses produzidas por estudantes das escolas médicas do Rio de Janeiro e de Salvador no século XIX que tiveram como objeto de estudo a mulher. Vemos como, afinados com o debate europeu, os médicos brasileiros se debruçaram não apenas sobre questões propriamente clínicas, mas também se engajaram nos debates sobre a natureza feminina e suas especificidades, imbuídos do espírito de terem uma missão a cumprir na construção de regras e normas em uma nova ordem social, em especial, no que diz respeito ao gênero, à raça e às estruturas familiares.

No quinto capítulo, O Médico de Senhoras e Clínica das Mulheres, analisa-se o desenvolvimento do interesse dos médicos pelo parto e pelas doenças ginecológicas no Brasil, a redefinição das distintas competências entre médicos e parteiras, a formação da clientela, as grandes polêmicas e questões éticas e morais que geraram debates acalorados entre os médicos, envolvendo muitas vezes também médicos legistas, políticos, intelectuais e a opinião pública, e a organização das instituições hospitalares voltadas para as mulheres. Através desses ângulos analíticos também vemos como o processo de constituição da medicina de senhoras e da clínica das mulheres envolveu não somente a organização de um campo profissional e a aquisição e aplicação de conhecimentos técnicos e científicos, mas também a elaboração e legitimação de um sistema articulado de idéias e valores que interliga domesticidade feminina, maternidade, família e pátria.

A Mulher no Discurso Médico e Intelectual Brasileiro é o sexto capítulo. Com base em publicações médicas não especializadas e de outros intelectuais do século XIX, a autora analisa como conhecimentos médico-científicos e o pensamento social e filosófico da época se articularam reflexivamente, especialmente quando o objeto em questão era "a mulher". A ideologia da maternidade foi um elemento central na estruturação do projeto de reforma social que reunia médicos e intelectuais e a educação feminina em um objeto privilegiado da narrativa literário-científica. Nessa literatura, a tematização da diferença feminina articula preceitos da ciência da diferença sexual e um programa pedagógico para os corpos e mentes femininas. Para exercer seu papel na nova ordem social, a mulher deveria ser instruída e saudável, seja para desempenhar-se como boa mãe e esposa, seja para cumprir sua missão para com a nação como "formadora de homens", os novos cidadãos. Na última parte do livro, Conclusão, a autora sintetiza o percurso de seu estudo e suas conclusões principais.

A leitura de Visões do Feminino: A Medicina da Mulher nos Séculos XIX e XX é fluida e prazerosa e pode interessar a públicos distintos. Especialmente, o livro tem amplo potencial pedagógico para professores, alunos e pesquisadores do campo da saúde coletiva e das ciências humanas e sociais, assim como para profissionais de saúde envolvidos na gestão e na assistência.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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