EDITORIAL

 

A lenda urbana sobre internações devidas à falta de saneamento

 

 

"No Brasil, 68% das internações hospitalares devem-se à falta de saneamento". A frase encontra-se difundida em relatórios, publicações científicas e textos legais. O peso das condições de saneamento sobre o sistema de saúde está obviamente superestimado, considerando que a principal causa de internações no Brasil é, felizmente, o parto. Através da excelente página do DATASUS (http://www.datasus.gov.br), pode-se verificar que, para o ano de 2004, as causas ligadas ao parto e puerpério corresponderam a 23,0% dos motivos de internação, seguidos por doenças do aparelho circulatório e respiratório. As doenças infecciosas e parasitárias aparecem como quarta causa de internações, correspondendo a 8,4% do total de internações. Se consideradas as doenças classicamente classificadas como de veiculação hídrica, essa proporção diminui para 4,8%.

Uma busca na Internet usando os fragmentos principais da frase "falta de saneamento" e "% das internações", faz aparecer mais de quinhentos vínculos para páginas de diversas instituições e organizações com conteúdos semelhantes. A repetição da frase adquire contornos de lenda urbana quando examinado o padrão de disseminação da informação: o seu conteúdo assustador, a ausência ou imprecisão de fontes de informação, a falta de especificação do local e período de referência, bem como sua reprodução sistemática. Cabe, como estratégia de combate às lendas urbanas, indagar o que está sendo classificado como internações devido à falta de saneamento e mesmo o que está sendo chamado de falta de saneamento.

As chamadas doenças relacionadas ao saneamento congregam patologias tão diversas como a dengue, leptospirose, hepatite A, ascaridíase e outras, que possuem diferentes modos de transmissão. Uma característica desejável de um indicador epidemiológico é que identifique riscos que se possam mensurar e sobre os quais se possa intervir. Agregar dados sob o grande quadro de "doenças relacionadas ao saneamento" não contribui para a identificação de problemas e a intervenção sobre seus determinantes. É também lamentável que a circulação da falsa informação se verifique no Brasil, após anos de esforços para o aperfeiçoamento dos Sistemas de Informação em Saúde, disseminação de dados do SUS e construção e padronização de indicadores, por meio de iniciativas como a RIPSA.

Por outro lado, a maior parte da população urbana brasileira vem adquirindo acesso às redes de água e esgoto. Isso pode significar que hoje os problemas do saneamento no Brasil são outros, como o tratamento de esgotos, a destinação adequada do lixo e a proteção de mananciais. Nas grandes cidades brasileiras, a grande maioria dos domicílios encontra-se ligada à rede geral de abastecimento, sem que isso garanta a qualidade do suprimento de água.

O saneamento nas cidades e no campo permanece uma prioridade no Brasil. O saneamento é um direito de cidadania, um item de conforto e um fator de segurança e garantia de saúde para a população. Para que seja pleno não basta a instalação de redes, deve ser garantido o suprimento de água em quantidade e qualidade suficientes para o consumo. A construção de indicadores epidemiológicos adequados é primordial para o monitoramento desse serviço.

 

Christovam Barcellos
Departamento de Informações em Saúde, Centro de Informação Científica
e Tecnológica, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
xris@cict.fiocruz.br

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br