EDITORIAL

 

Os fantasmas da autoria

 

 

Há muito que se convive com profissionais de redação que prestam seus serviços a celebridades pouco afeitas à caneta mas que, talvez por vaidade, desejam ver publicada sua "autobiografia". Também os políticos não costumam redigir seus próprios textos e discursos, buscando os préstimos de profissionais da escrita. Recorrer aos serviços desses profissionais, também conhecidos como ghostwriters (ou "escritores-fantasma") é, portanto, prática corrente, em torno da qual não há muita contestação, desde que adstrita às esferas política ou comercial. Por outro lado, dificuldades em lidar com a "autoria-fantasma" (ou ghost authorship) surgem com grande impacto, inclusive na mídia, quando estas adentram o meio científico-acadêmico.

A autoria é central à credibilidade do sistema acadêmico-científico contemporâneo. Nas áreas básicas mais competitivas, a autoria de um artigo está diretamente relacionada à primazia do autor sobre uma dada descoberta, o que em muitos casos envolve o pagamento de royalties. É por meio do reconhecimento da autoria em teses e dissertações, artigos publicados em revistas especializadas ou livros, que as instituições conferem títulos acadêmicos e que agências de fomento pontuam os currículos de pesquisadores, avaliam cursos e, em última instância, definem promoções, gratificações e financiamentos.

Principalmente durante a segunda metade do século XX verificou-se a expansão de um novo tipo de "autor", o co-autor. Relativamente raro até então, os trabalhos em co-autoria tornaram-se a regra em muitos campos, inclusive nas ciências da saúde. Face às implicações éticas e jurídicas de tal expansão, inúmeras associações científicas internacionais preocupam-se com a definição de autoria e de co-autoria, deixando claro que aqueles que figuram na lista de autores devem ter participado de parcela expressiva da análise dos dados e da redação do trabalho. Frisam ainda que os autores, independente de sua posição na lista, devem ser capazes de assumir publicamente responsabilidade pelo trabalho como um todo. Portanto, autores são candidatos não somente a colher os louros advindos de um trabalho científico (prêmios, promoções etc.), como deverão assumir responsabilidade ética e jurídica pelo mesmo caso surja alguma contestação. O alicerce desse sistema rui com a autoria-fantasma.

Infelizmente, há indícios de que a prática está em franca expansão. Através de uma rápida busca na Internet é possível recuperar um número surpreendente de profissionais especializados e, até mesmo de pequenas empresas de autoria-fantasma, que anunciam seus préstimos, inclusive para a redação de teses e dissertações. Em um desses sites lê-se: "Working with a ghostwriter is a great way to ensure that your message gets out and comes across clearly. This solution can help you meet deadlines and grasp opportunities, without sacrificing other priorities and commitments".

Outra situação insólita é aquela de autoria-fantasma associada ao que poderíamos chamar de "empréstimo de autoria". Um caso recente envolveu uma médica de uma prestigiada universidade norte-americana que foi procurada por uma empresa de comunicação contratada por um laboratório farmacêutico para que "assinasse" um artigo reportando os resultados de testes sobre uma nova droga. A pesquisadora denunciou o caso, o que gerou ampla repercussão, inclusive no Brasil (Folha de S. Paulo 2005; 15 Abr:A16-7).

Essas situações expõem as enormes fragilidades que, no atual contexto, envolvem a figura do autor e o conceito de autoria. O conhecido mote "publicar ou perecer" nunca esteve tão presente. Dada a complexidade do quadro, assegurar a lisura do processo de produção do conhecimento científico, em todas as suas etapas, é tarefa que não pode ser delegada a apenas alguns poucos guardiões da academia. Os integrantes de bancas de exames públicos, dos conselhos das revistas científicas e membros dos comitês assessores das agências financiadoras desempenham papel central nesse processo, devendo buscar identificar a autenticidade da autoria dos trabalhos sob análise.

 

Carlos E. A. Coimbra Jr.
Editor

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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