CARTAS LETTERS

 

Infecção, soropositividade e doença: qual a diferença?

 

Infection, seropositivity, and disease: what is the difference?

 

 

Filipe Dantas-Torres

Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Senhor Editor,

O artigo Leishmaniose em Cães Domésticos: Aspectos Epidemiológicos de autoria de Silva et al. 1, publicado em Cadernos de Saúde Pública no volume 21, número 1, de janeiro-fevereiro do presente ano, trata de aspectos importantes relacionados à leishmaniose visceral canina, o que, por sua vez, diz respeito à história natural da leishmaniose visceral americana, uma vez que os cães são apontados como principais reservatórios domésticos da infecção por Leishmania (Leishmania) chagasi (= L. infantum), o agente etiológico da doença.

O trabalho traz à tona a antiga questão dos métodos sorológicos (IFA e ELISA) que são utilizados, a meu ver, erroneamente, como critério diagnóstico definitivo da infecção em cães, no Brasil. Do mesmo modo, os autores chamam atenção para a subestimação das taxas de infecções em cães, quando da utilização de tais técnicas sorológicas. Recomendam ainda, a utilização da técnica Western blot (WB) para detecção de antígenos específicos, tais como o peptídeo 68,5kDa, citado como parâmetro para eliminação de cães em áreas onde a leishmaniose visceral americana é endêmica.

Entretanto, alguns equívocos conceituais e metodológicos necessitam ser comentados para que os resultados desse trabalho, importante no âmbito do Programa de Controle da Leishmaniose Visceral, no Brasil, não sejam interpretados erroneamente.

Peguemos como exemplo um trecho do início da discussão, na página 326: "uma alta prevalência (25,0%) de cães infectados pela LVA". Primeiramente, os 25,0% a que os autores se referem foi a soropositividade obtida por meio da IFA, e não a infecção, como está escrito no trecho. Poderíamos predizer, pela presença de anticorpos anti-L. (L.) chagasi, que os referidos cães estariam infectados? Não necessariamente. A possibilidade de reações cruzadas, na IFA ou no ELISA, já é fato sobejamente demonstrado em nosso meio. Adicionalmente, anticorpos maternos podem ser transferidos para a prole, sem que a infecção o seja. Logo, afirmar que os cães soropositivos na IFA estejam, necessariamente, infectados é um erro corriqueiro que nós, pesquisadores, não podemos mais cometer, no Brasil.

No mesmo trecho, e em outro na mesma página, os autores afirmam: "infectados pela LVA". Um erro conceitual. Quem se infecta, se infecta pela L. (L.) chagasi, tornando-se, eventualmente, soropositivo e/ou doente. Esse conceito parece mais claro quando estamos nos referindo à AIDS, por exemplo. O indivíduo se infecta com o vírus HIV (infecção), podendo ou não, desenvolver a AIDS (doença).

Não obstante aos pequenos erros conceituais, aqui exemplificados, os autores chegaram a conclusões precipitadas sobre alguns dos resultados, que careceriam de maiores detalhamentos estatísticos em se tratando da epidemiologia, uma ciência eminentemente quantitativa. Por exemplo, se fazem ausentes no texto os cálculos da sensibilidade, especificidade e, não menos importante, dos valores preditivos, necessários para avaliar o real desempenho das técnicas diagnósticas IFA e WB, utilizadas no estudo.

Registro ainda, a falta de discussão de alguns resultados importantes. Também na discussão, no último parágrafo da página 326, observemos o trecho: "cães que no início têm títulos baixos e após algum tempo passam a apresentar títulos altos (> 160), em geral permanecendo assintomáticos". Que os cães podem apresentar oscilações no título de anticorpos anti-L. (L.) chagasi, isso sabemos. Por outro lado, o fato de alguns animais assintomáticos apresentarem títulos > 160, necessitaria de uma discussão mais aprofundada, pois tal fato não condiz com a literatura. Em geral, títulos altos estão, quase sempre, associados à doença. Tal fato deve-se à exacerbação da resposta imune humoral, gerando a formação de grande quantidade de complexos imunes (antígeno-anticorpo) circulantes, que por sua vez irão resultar, em última instância, em lesões em vários órgãos e/ou sistemas.

De fato, tais equívocos não tiram o mérito científico do trabalho em questão. Entretanto, servem como exemplo para futuras publicações sobre o tema, revelando não só a necessidade de definir claramente as variáveis a serem abordadas, respeitando os velhos paradigmas (ou então, propondo novos), mas também a importância de não desvincular, dos resultados, a estatística; um dos eixos principais da epidemiologia moderna.

 

 

Endereço para correspondência
F. Dantas-Torres
Departamento de Imunologia
Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães
Fundação Oswaldo Cruz
Av. Moraes Rego s/n
Recife, PE 50670-420, Brasil
filipe.vet@globo.com
fdt@cpqam.fiocruz.br

Recebido em 29/Mar/2005
Aprovado em 28/Abr/2005

 

 

1. Silva AVM, Paula AA, Cabrera MAA, Carreira JCA. Leishmaniose em cães domésticos: aspectos epidemiológicos. Cad Saúde Pública 2005; 21:324-8.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br