RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Richard Miskolci

Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil. richardmiskolci@uol.com.br

 

 

A HORA DA EUGENIA: RAÇA, GÊNERO E NAÇÃO NA AMÉRICA LATINA. Stepan NL. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 228 p. (Coleção História e Saúde).
ISBN: 85-89697-05-3 

Em 25 de janeiro de 1918 foi criada a Sociedade Eugênica de São Paulo, a primeira organização do tipo na América Latina. Entre seus sócios estavam médicos influentes como Renato Kehl e, entre seus admiradores, figuravam intelectuais como Monteiro Lobato. Jeca Tatu, famoso personagem criado pelo escritor, resume em si uma imagem corrente na época sobre o brasileiro típico: um homem mestiço, preguiçoso e doente. As associações entre raça, gênero e nação são explícitas, mas demandam fontes históricas e perspectiva crítica para compreender o que levava pessoas como Lobato a verem na eugenia um antídoto para os males que afligiam a população brasileira.

É justamente a reconstituição histórica cuidadosa, que se vale de um olhar que vê a ciência como produto de circunstâncias sociais e políticas, que encontramos no livro de Nancy Leys Stepan A Hora da Eugenia: Raça, Gênero e Nação na América Latina, uma obra que, desde seu lançamento em 1991, tem influenciado muitos pesquisadores mundo afora e em particular aqui no Brasil; ainda que apenas agora receba a merecida tradução em português.

Autora de obras instigantes como The Idea of Race in Science (1982) e o mais recente Picturing Tropical Nature (2001), Stepan oferece um retrato abrangente e cuidadoso da eugenia em um território menosprezado pela maioria dos historiadores da ciência: a América Latina. Seu livro preencheu uma lacuna nos estudos sobre a eugenia por explorar a versão menos conhecida desse movimento científico e por o fazer na perspectiva construtivista (e sociológica) do conhecimento. Dessa forma, A Hora da Eugenia: Raça, Gênero e Nação na América Latina interessa tanto como estudo histórico desse saber polêmico em sua versão latina quanto por sua concepção da ciência como determinada pela história e pela sociedade em que se constitui.

Ao contrário do que muitos pensam, a eugenia não foi um saber desenvolvido e aplicado apenas na Alemanha nazista nem sepultado na lata de lixo da má ciência com a revelação dos horrores do Holocausto judeu após a Segunda Guerra Mundial (Nancy Ordover 1 mostra isso em seu estudo devotado à eugenia norte-americana e ainda sem tradução em português). Daí a importância de livros que façam frente a esse processo de esquecimento, ou melhor, de ignorância de uma ciência mais velha e mais presente do que talvez gostaríamos de constatar.

Durante muito tempo, a América Latina foi encarada como mera consumidora de idéias científicas produzidas nos países centrais. No caso da eugenia, prevalecia a impressão de que aqui não houvera um desenvolvimento dessa ciência nem a aplicação sistemática de práticas inspiradas por ela. Stepan, que desde a década de 1970 empreendeu pesquisas no Brasil, recusa essa imagem culturalmente construída nos países centrais do meio científico latino-americano como mero receptor e reprodutor de idéias estrangeiras. A pesquisadora de História da Ciência e da Medicina da Columbia University explora a forma como nossos cientistas incorporaram de forma seletiva as teorias eugênicas e as desenvolveram de acordo com os interesses do contexto social e histórico de seus países.

Ainda que seu foco seja a América Latina, Stepan apresenta uma boa introdução à eugenia desde sua emergência na Grã-Bretanha, em fins do século XIX, para então explorar como esse saber claramente comprometido com idéias políticas conservadoras, nacionalistas e racistas se dividiu em dois ramos. Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos formavam o ramo "duro" da eugenia, o qual se baseava na concepção de Mendel sobre a hereditariedade. Segundo essa concepção, a hereditariedade não sofria influência do meio e, portanto, a preservação da "pureza" de certas "raças" era uma necessidade para evitar o fantasma da degeneração.

Degeneração era um termo usado pela medicina social até o Holocausto para descrever tudo o que ela considerava um desvio da normalidade de fundo hereditário e sem cura. Suas supostas manifestações iriam desde estigmas físicos como estrabismo, orelhas imperfeitas, crescimento atrofiado até doenças mentais como histeria, pessimismo, apatia, impulsividade e completa falta de senso sobre o certo e o errado 2. Como observou Sander L. Gilman 3, o termo degenerado tornou-se o rótulo para o outro como essência da patologia, o fardo de uma condição congênita; logo, sem a menor possibilidade de cura e diante da qual nenhum esforço para a reverter valeria a pena. Deve-se sublinhar que degeneração e degenerado são termos que expressam o poder da eugenia e outros saberes e práticas congêneres, como a sexologia e a criminologia, de discriminarem aqueles que classificavam como inaceitáveis segundo seus padrões hegemônicos de identidade.

Na América Latina, região apontada por eugenistas europeus e norte-americanos como exemplo primário de degeneração racial, a incorporação das idéias e práticas eugênicas poderia incorrer na pura e simples aceitação de teorias sobre nossa inferioridade. Porém, ao contrário, aqui se deu a constituição de um ramo "macio" da eugenia, influenciado pelas teorias de Lamarck e, portanto, pela idéia de que a hereditariedade era determinada tanto por fatores internos (ou "raciais") quanto por fatores externos: a influencia do meio. Percebe-se assim a razão pela qual a versão dura resultou em práticas de controle da reprodução que chegaram até mesmo ao extermínio de grupos étnicos enquanto na América Latina a eugenia originou particularmente políticas públicas de higienização do espaço urbano e controle matrimonial.

Segundo Stepan, a América Latina "foi a única área do terceiro mundo ainda pós-colonial em que a eugenia foi assumida de forma mais ou menos sistemática" (p. 10). O exame das especificidades da eugenia latino-americana torna mais complexa a visão sobre esse movimento "científico", o qual, apesar das variações em cada país, manteve como constante o controle da reprodução humana.

A eugenia não era uma ciência stricto sensu, antes um projeto político-social que se apoiava em sua suposta cientificidade para justificar e implantar práticas sociais de controle da população, em especial os mais pobres: mulheres, crianças e categorias sociais estigmatizadas como negros, mestiços, prostitutas, homossexuais e portadores de deficiências físicas ou mentais (sobre a forma como idéias e procedimentos eugênicos levaram à internação de homossexuais em hospitais psiquiátricos consulte Green 4; a respeito do discurso médico e das práticas sociais voltadas contra as prostitutas veja Rago 5 e sobre procedimentos criminológicos de perseguição e controle da população mais pobre consulte Alvarez 6). A adequação dos indivíduos a um padrão de identidade nacional, de raça e gênero era o que estruturava as discussões dos eugenistas.

A história da eugenia latino-americana mostra como a elite branca via a atroz pobreza e a deplorável saúde dos mais pobres como algo a ser solucionado por meios técnicos que se assentavam em crenças biológicas sobre a origem de males social e historicamente criados. Essa elite endossava a ciência como modernidade cultural e buscava nela meios para lidar com problemas que, na verdade, só poderiam ser resolvidos por meio de transformações econômicas e sociais profundas. Assim, não é de se estranhar que saudassem a "nova ciência capaz de introduzir uma nova ordem social por intermédio do aperfeiçoamento médico da raça humana" (p. 57).

As técnicas mais conhecidas de "aprimoramento da raça" foram as adotadas pelos adeptos da eugenia mendeliana: esterilizações, segregação sexual compulsória e eutanásia. Na Argentina, no Brasil e no México predominou uma versão chamada "eugenia matrimonial", a qual enfatizou formas de controle baseadas em exames médicos e certificados pré-nupciais. O único país latino-americano a empreender a esterilização foi o México, enquanto na Argentina discutiu-se com seriedade a emissão de cartões de identidade biotipológica, os quais definiriam e imporiam a escolha de parceiros reprodutivos considerados compatíveis. O racismo e o pressuposto sobre o direito da ingerência estatal e/ou médica na vida sexual e reprodutiva dos indivíduos retratam o contexto social e histórico autoritário em que se desenvolviam tais idéias e, infelizmente, também políticas públicas.

O racismo ­ e a própria eugenia ­ variava de acordo com as circunstâncias de cada país. Como bem define Stepan, "raças não são entidades naturais preexistentes, mas grupos sociais produzidos por relações desiguais de poder e práticas discriminatórias" (p. 150). No Brasil, as relações desiguais eram produto de uma sociedade que, mesmo tendo se tornado formalmente república em 1889, manteve sua hierarquia imperial e colonial do passado. As práticas discriminatórias aqui se basearam e ainda se baseiam em uma forma particular de racismo fundado na "cor".

Diferentemente dos países europeus e norte-americanos em que vigora uma compreensão racial baseada na origem do indivíduo, no Brasil, por meio da ideologia do branqueamento, se instituiu o racismo de "cor". Aqui, alguém é avaliado racialmente por seu tom de pele e textura do cabelo em uma gradação que vai do mais ao menos branco, daí o que surpreende estrangeiros como nossa "confusão" entre raça e cor. Na perspectiva européia, éramos quase todos mestiços, mas na visão local tínhamos grupos brancos, pardos e negros. O fato é que ambas as formas de classificação se fundamentam em concepções biológicas para classificar grupos que, com certeza, têm sua condição social determinada pelas práticas discriminatórias historicamente construídas e sancionadas por uma divisão injusta de poder e riqueza em suas sociedades.

Percebe-se que o apelo das teorias eugênicas residia em sua proteção do status quo e na defesa de remédios científicos e tecnológicos para solucionar problemas sociais que demandavam mudanças estruturais profundas. No caso da América Latina, uma região em que as desigualdades sociais têm resistência secular, Stepan mostra que nossos eugenistas ignoravam fatores econômicos e sociais na criação de projetos de saúde pública que acreditavam que seriam capazes de modernizar seus países e os levarem ao desenvolvimento. Substituíam, desse modo, o racismo explícito e duro da versão mendeliana da eugenia pela melhora das condições de saúde e de saneamento, as quais se revelam uma versão menos racista e mais higienista do mesmo movimento "científico".

Monteiro Lobato mesmo fez questão de se retratar com relação à sua personagem emblemática sobre o cidadão brasileiro. Em O Problema Vital (1918), Lobato abandonou explicação da mestiçagem de Jeca Tatu como a responsável por sua condição de sujo, doente e preguiçoso pela de que ele poderia se regenerar com melhores condições de saneamento e vermífugos 7. Todavia, o saneamento como panacéia universal logo se revelou retórica política como bem ironizou Mário de Andrade ao mostrar seu anti-herói nacional, Macunaíma, subindo em um caixote e desferindo um discurso cuja mensagem principal era "pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são".

A eugenia em sua versão racista ou higienista jamais deixou de ser um discurso poderoso que prometia monitorar a identidade nacional e criar antídotos tecnológicos para problemas sociais. O primeiro intuito se realizou, ao menos em parte, nos países centrais, por meio da inferiorização e até extermínio de minorias étnicas e culturais. A segunda promessa permanece viva e ainda ronda, tal como um fantasma, as políticas de saúde pública e as pesquisas contemporâneas na área genética.

A Hora da Eugenia: Raça, Gênero e Nação na América Latina é um desses raros estudos que tornam uma reconstituição do passado uma forma privilegiada de iluminar enigmas do presente.

 

 

1. Ordover N. American eugenics ­ race, queer anatomy, and the science of nationalism. Minneapolis: Minnesota University Press; 2003.

2. Hawkins M. Social-Darwinism in European and American thought. Cambridge: Cambridge University Press; 1998.

3. Gilman SL. Difference and pathology ­ stereotypes of sexuality, race and madness. Ithaca: Cornell University Press; 1994.

4. Green JN. Além do carnaval ­ a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora da Unesp; 2000.

5. Rago M. Os prazeres da noite ­ prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo. São Paulo: Paz e Terra; 1991.

6. Alvarez MC. Bacharéis, criminologistas e juristas ­ saber jurídico e nova escola penal. São Paulo: Método; 2003.

7. Borges D. "Puffy, ugly, slothful and inert": degeneration in Brazilian social thought, 1880-1940. J Lat Am Stud 1993; 25:235-56.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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