RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Afonso Dinis Costa Passos

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil. apassos@fmrp.usp.br

 

 

HEPATITE C: ASPECTOS CRÍTICOS DE UMA EPIDEMIA SILENCIOSA. Teixeira R, Martins Filho OA, Oliveira GC. Belo Horizonte: COOPMED/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 212 pp.
ISBN: 85-85002-80-0

Identificado apenas em 1989, o vírus da hepatite C representa um dos mais relevantes problemas de saúde pública nos dias atuais. O desenvolvimento de técnicas laboratoriais que permitem o seu diagnóstico, disponíveis desde 1992, tornou possível estimar em cerca de 170 a 200 milhões de infectados em todo o mundo. Duas características da sua história natural conferem à hepatite C uma enorme importância médico-sanitária: o longo período em que a infecção permanece completamente assintomática, fazendo com que o indivíduo não tome conhecimento dela e, portanto, não procure atenção especializada, e a sua capacidade de se tornar crônica em até 85% dos infectados, elevando o risco de desenvolvimento de complicações graves, como cirrose hepática e câncer de fígado. Não sem razão, a hepatite C vem sendo apontada como a mais importante pandemia desse início de século 21, sendo responsável já pela maioria dos casos de transplantes de fígado em inúmeros países.

A despeito de toda essa importância, persiste ainda um considerável grau de desconhecimento acerca dessa moléstia, tanto entre a população geral, como, até mesmo, entre profissionais da saúde. Nesse contexto, são muito bem-vindos os textos que detalhem a doença e procurem esclarecer os seus múltiplos aspectos, contribuindo para disseminar conhecimentos úteis à sua prevenção e à redução dos seus danos. É exatamente esse o papel desempenhado pela excelente obra intitulada Hepatite C: Aspectos Críticos de uma Epidemia Silenciosa. De autoria de Rosângela Teixeira, da Universidade Federal de Minas Gerais, e de Olindo Assis Martins Filho e Guilherme Corrêa de Oliveira, ambos do Centro de Pesquisas René Rachou, a obra congrega a participação de 31 profissionais de diferentes áreas do conhecimento, resultando na mais abrangente revisão sobre a hepatite C já publicada em língua portuguesa.

Composto por 18 capítulos, o livro se inicia por uma revisão de aspectos epidemiológicos da doença e dos seus impactos na saúde pública. Nessa parte, enfatiza-se o contato com sangue contaminado como o grande fator implicado na transmissão e se destaca a existência de grupos preferenciais de risco, representados pelos usuários de drogas injetáveis, hemofílicos, indivíduos infectados pelo HIV, pacientes em hemodiálise, população encarcerada, vítimas de acidentes perfuro-cortantes e recipientes de sangue e hemoderivados. Ainda no que diz respeito aos aspectos epidemiológicos, um capítulo inteiro é dedicado à questão da hepatite C em odontologia, no qual se chama a atenção para o risco mais elevado a que estão sujeitos os profissionais dessa área.

O capítulo relativo aos métodos moleculares aplicados ao diagnóstico da doença faz uma breve revisão da estrutura do genoma do vírus hepatite C e detalha os procedimentos e vantagens das técnicas qualitativas, quantitativas e de genotipagem.

O processo de fibrose hepática é abordado em dois capítulos. No primeiro deles, descrevem-se as suas alterações morfológicas e funcionais, discutem-se os papéis representados pela ativação das células hepáticas estreladas, pelo sistema imune e pelo sistema renina-angiotensina na gênese do processo e tecem-se considerações sobre as possibilidades atuais e futuras do tratamento antifibrótico. No segundo, abordam-se os aspectos evolutivos da fibrose hepática na hepatite C crônica, com destaque aos fatores do hospedeiro que se associam à progressão, bem como aos sistemas de classificação utilizados, que se baseiam na atividade histológica e no estágio da fibrose.

Os aspectos imunológicos relacionados à infecção pelo vírus da hepatite C são detalhadamente revistos em diferentes capítulos, no que diz respeito tanto aos mecanismos de imunidade celular e humoral ativados em resposta ao agente agressor, como ao papel do complexo maior de histocompatibilidade na evolução da infecção e da doença.

Destaque especial é dado a algumas manifestações extra-hepáticas da hepatite C, abordadas em três capítulos específicos. Em um deles discute-se a crioglobulinemia mista, partindo de uma revisão sobre classificação de crioglobulinas e cobrindo os métodos para sua detecção, significado clínico e características dos auto-anticorpos e imunocomplexos presentes na infecção crônica, principais manifestações clínicas e abordagem terapêutica. Em outro, abordam-se as manifestações cutâneas, tanto as associadas à hepatite C crônica, com destaque para a porfiria cutânea tardia e o líquen plano, como aquelas decorrentes do próprio tratamento da moléstia. Um terceiro capítulo sobre manifestações extra-hepáticas dedica-se a um assunto geralmente pouco valorizado em publicações relativas à hepatite C, qual seja o aparecimento de achados bucais. Nele, são discutidas as possíveis associações da doença com o líquen plano oral, as sialoadenites, o câncer bucal e a síndrome de Sjögren, além de outras menos estudadas, como a doença de Behçet e o eritema multiforme.

A importante questão da hepatite C em portadores de insuficiência renal crônica submetidos a hemodiálise é detalhadamente discutida em um capítulo específico, no qual se abordam os aspectos epidemiológicos e a história natural da infecção entre esses pacientes, as limitações da utilização das enzimas hepáticas ALT e AST para diagnóstico e acompanhamento, os aspectos clínicos e as medidas recomendadas para o controle da transmissão em unidades de diálise. No mesmo capítulo, faz-se uma revisão dos achados patológicos renais secundários à hepatite C crônica e discutem-se opções terapêuticas na busca de resposta virológica sustentada.

Outro capítulo aborda as possíveis manifestações pulmonares associadas ao tratamento da hepatite C com interferon e ribavirina, discutindo a possibilidade de efeitos colaterais de gravidade variável, como envolvimento pulmonar intersticial, sarcoidose, hiperreatividade brônquica, hipertensão pulmonar e derrame pleural.

A doença apresenta uma distribuição muito menos freqüente na infância do que na idade adulta, razão pela qual esse tópico tem sido pouco explorado em publicações sobre hepatite C. Ilustrativo desse fato é a inexistência de protocolos específicos de tratamento aprovados para uso em crianças. Não obstante, a ocorrência infantil mostra algumas peculiaridades que fazem por merecer uma abordagem específica na obra analisada, com destaque para os comentários referentes ao risco relativamente baixo de transmissão vertical, o que, juntamente com o curso benigno da infecção e a falta de propostas profiláticas específicas, desaconselha a realização de testes para detecção do anti-HCV de rotina em gestantes, ao contrário do que se preconiza para a hepatite B. Destaque ainda para a discussão sobre o fato de que os percentuais de cronificação se mostram semelhantes quando se comparam crianças com adultos, muito embora as lesões histológicas graves decorrentes da infecção sejam significativamente menos freqüentes em pacientes que a adquiriram em idades mais precoces, o que parece sugerir um papel protetor da infecção na idade infantil.

Os aspectos referentes ao tratamento da hepatite C crônica são extensamente discutidos em três capítulos. Nestes, incluem-se tópicos relativos aos esquemas atualmente disponíveis, alternativas terapêuticas futuras, dificuldades representadas pelos pacientes com fibrose avançada não respondedores ou recidivantes ao tratamento prévio com interferon convencional, isoladamente ou em associação com a ribavirina, e a questão atualíssima da recorrência da doença em pacientes receptores de fígados transplantados.

Além dos tópicos de natureza médica e biológica anteriormente referidos, o livro inclui dois capítulos finais que enveredam para temas pouco valorizados na literatura especializada, ainda que extraordinariamente importantes para médicos e pacientes: uma discussão sobre aspectos psicológicos do paciente com hepatite C e a sua própria visão acerca da doença que o aflige. O primeiro, escrito por profissional da área da psicologia, aborda de modo sucinto os diferentes estágios pelos quais passa o indivíduo ao longo de todo o processo da sua moléstia, com as correspondentes respostas emocionais a cada um deles. O segundo foi escrito por um portador crônico de hepatite C, e este, nas suas próprias palavras, discorre sobre o impacto do diagnóstico, as mudanças na qualidade de vida, a angústia sobre o futuro e os caminhos encontrados para aumentar a auto-estima no encontro com aqueles que compartilham o mesmo problema. Aborda com muita propriedade a questão da desinformação, distribuída didaticamente em onze tópicos contendo os principais enganos existentes sobre a hepatite C, e enfatiza a relevância dos grupos de apoio no suporte aos pacientes.

Hepatite C: Aspectos Críticos de uma Epidemia Silenciosa é um livro extremamente útil para todos aqueles que se preocupam com a problemática representada por essa endemia no quadro sanitário nacional. Abrangente, detalhada, com um texto baseado em bibliografia ampla e atualizada, e mostrando um caráter de interdisciplinaridade fundamental na atenção integral ao paciente com hepatite C, é obra marcante em língua portuguesa, destinada a virar referência a estudantes, profissionais da saúde e das demais áreas envolvidas com o problema.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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