RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Geni Chaves Fernandes

Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, Brasil. geni@centroin.com.br

Regina Maria Marteleto

Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. regina.mar@terra.com.br

 

 

A FESTA TECNOLÓGICA: O TRÁGICO E A CRÍTICA DA CULTURA INFORMACIONAL. Dunley G. São Paulo: Editora Escuta/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. 229 pp.
ISBN: 85-7541-066-0

O surgimento da metafísica na Grécia antiga, como substituta do conhecimento mítico, marcaria o início da trajetória ocidental de afastamento e rejeição do divino – do extraordinário – que lá apareceu primeiramente como abandono por parte dos deuses em relação aos homens. Na modernidade, a ciência e o processo de secularização tornaram Deus desnecessário, fazendo Nietzsche anunciar reflexivamente, na virada para o século XX, a morte de Deus. A festa tecnológica que hoje vivemos, com seu consumo desmesurado, em uma cultura centrada nos mídia que fazem circular informação, seria a comemoração do triunfo do humano sobre o divino, após um período de luto pela morte de Deus. Ao mesmo tempo, as próteses informacionais trazidas à existência pelo homem no auge deste processo, parecem recolocá-lo diante do extraordinário, diante de forças que ameaçam levá-lo à perdição. Haveria no contemporâneo um sentimento de horror, escamoteado pela ilusão do domínio pleno sobre a vida que a tecnologia traz. O homem desamparado, "... abandonado pelos deuses, tornou-se ambiguamente algoz e vítima de seu próprio projeto ocidental – niilista na modernidade e indiferente na contemporaneidade" (p. 23).

É especialmente em Hölderlin, Freud, Nietzsche e Heidegger que Dunley vai buscar os alicerces para operar um pensamento sobre a festa tecnológica, tendo como foco as próteses informacionais (híbridos do humano e do não-humano) enquanto seu ponto mais crítico e ainda não pensado. Seu trabalho constitui um pensamento preparatório que busca expor, nas próteses informacionais, a ferida encoberta mas (re)aberta, que separa o humano do divino.

Nessa separação voluntária do divino, o homem ocidental criou meios para ter certezas, moldando o mundo à sua feição e criando instrumentos que culminam nas próteses tecnológicas. Mas, ao fim, encontra a si mesmo ainda incerto e mortal, e aterrorizado com seu excesso de finitude, com seu "não ser Deus".

A autora pensa sobre o desejo humano desmesurado de ser separado (de Deus), de ser indivíduo, seguro por sua ação de conhecimento acerca do indeterminado e inexplicável do real. Pensa ainda a ação obrada pela metafísica – da vontade de saber à vontade de dominar –, como paradoxalmente desejo de fundir-se a Deus (de ser Deus – desembaraçado do desamparo).

No pensamento moderno, Nietzsche e Freud representam modos de exposição da ferida ao desfecharem golpes sobre uma filosofia da ordem que pretende o controle absoluto (do Absoluto), e buscam modos para liberar o homem, dissolvendo um "eu" que se queria completo e incitando-o a assumir seu desamparo e indeterminação.

Para Dunley, faz-se necessário um pensamento preparatório frente às oportunidades e riscos que o contemporâneo embute. Citando o texto de Hölderlin, trabalhado por Heidegger, que alerta que "... onde mora o perigo é lá que também cresce o que salva", Dunley lembra que a técnica, embora atue como mera reprodução, ou como repetição automática, guarda uma descoberta sobre a existência (um desencobrir) que revela a ação criadora e a diferença. Mas, ao citar também Vernant, lembra o "... perigo que cresce naquilo que salva". Isto é, a repetição típica da técnica aponta o perigo do desejo automático de fusão que se apresenta contemporaneamente na conexão a uma rede única – o mega-híbrido –, que coloca como origem do social o capital flexível, mas que é um retorno degradado do desejo de continuidade, de fusão com o divino, que aí indiferencia, anula, ou que, nos moldes freudianos, é instinto de morte.

O pensamento trágico apresenta o sentimento de real como um duplo do real, um simulacro, não representável pela razão conceitual. É preparatório, ao colocar a realidade angustiante da indeterminação e do desamparo que costuma ficar protegida, na vida cotidiana, pelas ilusões de certeza que retiram da vida "... sua dimensão constituinte de acaso, a sua dimensão trágica, tentando com isto banir o terror ..." (p. 61).

Tendo por hipótese que o real tem um caráter múltiplo, excessivo, hiperbólico, a técnica (em sentido amplo) seria uma ação extratora e repetidora deste excesso, que também é um desocultamento do real, que produz sentido ao inexplicável. O homem, na tentativa de fuga do desamparo, quer colocar o real sob domínio, submetendo-o a uma explicação definitiva. Entretanto, a técnica teria um potencial de salvação, na medida em que guarda com a arte um "parentesco consangüíneo". Embora ambas, arte e técnica, expressem a angústia do estar lançado no acaso do devir, a arte, diferencialmente da técnica, opera uma crítica às certezas petrificadas construídas pela metafísica, que desrealizam a vida.

O pensamento preparatório de Dunley mais abre portas e questões do que as fecha ou conclui. Ele convida à necessidade de exibir, de colocar em cena, com o pensamento trágico, a ferida aberta pela separação com o divino, apelando ao sentimento do real, de modo a convocar o pensamento à reflexão acerca da condição humana: um pensamento que nega qualquer pretensão de domínio organizado sobre a existência ou de apoderamento sobre outrem, lembrando que somos humanos e que podemos nos alegrar ao querer que assim o seja.

Para a autora, "... o trágico pode ser ponte sobre o abismo" (p. 222) em uma contemporaneidade desmesurada, onde se encontra um homem que pode assumir seu dilaceramento, o homem trágico da aurora, de Nietzsche.

Na perspectiva da cultura ocidental contemporânea, que permite uma trilogia de reflexões não excludentes: a origem grega, a iminência de acabamento ou fim e a possibilidade de um recomeço, Dunley se debruça sobre a terceira, vislumbrando nas próteses informacionais o reaparecimento, dissimulado pelas certezas de domínio que a tecnologia parece proporcionar, do desejo de fusão com o divino, quer dizer, o desejo de estar no lugar do pleno domínio do mundo, que se confunde com o desejo de individuação, de independência frente ao divino. Entretanto, a ponte entre este desejo encoberto de fusão com o divino e o conhecimento e a técnica, está mais bem explorada em seu livro na cultura grega e na modernidade do que no seu (re)apacerimento nas redes informacionais (o mega-híbrido humano e não- humano).

A linguagem acadêmica própria de uma Tese de Doutorado, e pouco familiar a não filósofos, assim como o uso de termos gregos – mesmo trabalhados pela autora – podem aparecer como barreiras às suas intenções de apresentar o pensamento trágico como um pensamento preparatório para o leitor contemporâneo.

A leitura induzida pelo título da obra poderá causar decepção a alguns leitores, já que a questão central da autora parece não ser a "festa tecnológica" e a "cultura informacional", que surgem somente enquanto aspectos do contemporâneo a partir dos quais pode reincidir o pensamento dos limites humanos frente à sua pretensão de domínio.

Resta-nos saber de que modos tal pensamento preparatório poderia difundir-se. Se Heidegger falava da ação de dominação que acaba colocando o homem também como um fundo de reserva disponível para uso – restrito a trabalhar –, hoje, as transformações tecnológicas, oriundas de sua ação de dominação, tendem a colocar os homens como dispensáveis, substituídos que vão sendo pelos próprios instrumentos que criaram. Embora o contexto contemporâneo possa guardar nesta perplexidade a possibilidade de, suscitando o terror (ele não merece seu destino) e a compaixão (isto poderia acontecer comigo) levar o homem a pensar acerca do que fez consigo mesmo em sua rota de fuga do acaso, não se descartam daí a possibilidade crescente da barbárie, numa busca ainda mais desenfreada por amparo.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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