RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Rodrigo Pires de Campos
Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.
rodrigopires@unb.br

 

 

POLÍTICAS INTERNACIONAIS DE SAÚDE NA ERA VARGAS: O SERVIÇO ESPECIAL DE SAÚDE PÚBLICA, 1942-1960. Campos ALV. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 318 pp.

ISBN: 85-7541-081-4

Políticas Internacionais de Saúde na Era Vargas: O Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960 analisa a história do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) e suas políticas de saúde no Brasil entre 1942 e 1960. A importância de tal análise – bastante profunda e amparada por uma extensa pesquisa de documentos históricos – encontra-se na natureza polêmica do SESP e de suas ações no Brasil. Criado em 1942, sob a estrutura do então Ministério da Educação e Saúde (MES) do Brasil, o SESP respaldava-se num acordo entre os governos norte-americano e brasileiro, e realizava suas políticas em parceria com o Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA). Além disso, o SESP era financiado por recursos internacionais e também nacionais, possuindo completa autonomia jurídica, administrativa e financeira no âmbito daquele Ministério. Por fim, o acordo que o originou tinha, para os norte-americanos, um objetivo muito específico e imediato: criar condições sanitárias adequadas nos vales do Amazonas e do Rio Doce que garantissem o provimento de matérias-primas cruciais aos esforços militares dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

O desafio de Políticas Internacionais de Saúde na Era Vargas: O Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960 é demonstrar que o SESP, até então pouco compreendido e amplamente criticado por se constituir uma iniciativa elitista, imperialista e bélica, de fato integrou-se às diretrizes estratégicas do governo federal na Era Vargas, e suas políticas sanitárias contribuíram, eventualmente, para as aspirações de expansão da autoridade pública no país durante a Era Vargas. Fruto de sua tese de doutorado em História pela Universidade do Texas em Austin, Estados Unidos, concluída em 1997, o autor ampara-se na teoria desenvolvida por S. J. Stern sobre instituições internacionais do sistema mundial. Desvencilhando-se da dicotomia "centro" e "periferia", Stern propõe que tais instituições "não são entidades homogêneas e monolíticas, mas sim arenas de poder e de disputa cultural" (p. 21). Nessa linha de raciocínio, o IAIA e o SESP (representando aqui o "centro" e, mais particularmente, o interesse dos Estados Unidos) não se restringem a impor, simplesmente, suas normas e procedimentos à periferia (representada aqui pelo governo federal do Brasil à época), "mas sim interagem com as realidades 'locais', o que faz com que suas ações sejam moldadas/negociadas pelos interesses dos países onde atuam" (p. 21). Duas variáveis adotadas pelo autor explicam como funciona essa interação: a importância do Estado em cada país e a existência ou não de um sentimento ou movimento nacionalista, e a presença ou ausência de uma tradição científica e/ou de políticas sanitárias já consolidadas. Daí, deriva a sustentação desse argumento de uma interação equilibrada no caso do SESP no Brasil, pois além do forte movimento nacionalista promovido pelo governo do Brasil da época, era inegável a forte e consolidada tradição sanitária encontrada pelo SESP no país.

Políticas Internacionais de Saúde na Era Vargas: O Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960 é dividido em três grandes partes, cada qual composta por dois ou mais capítulos. A Parte I é composta por dois capítulos. O Capítulo 1, intitulado O Instituto de Assuntos Interamericanos e o Serviço Especial de Saúde Pública demonstra, com uma visão aguçada da evolução da conjuntura das relações internacionais da segunda metade do século XIX e, particularmente, da primeira metade do século XX, como Brasil e Estados Unidos eventualmente realizaram um acordo de cooperação em saúde e saneamento que estabeleceu, em meados de 1942, o SESP no Brasil. Elementos aparentemente desconexos como a crescente integração de mercados e a nova mentalidade de interdependência sanitária mundial, conferências internacionais em saúde, a Grande Depressão dos Estados Unidos, o fortalecimento das relações culturais, econômicas e comerciais entre América Latina e Europa, particularmente entre Brasil e Alemanha na década de 1930, o novo projeto norte-americano da Boa Vizinhança e do Pan-Americanismo na América Latina, a captura pelos japoneses de mercados asiáticos provedores de borracha para os Estados Unidos, a nova percepção da importância da "medicina tropical" nos esforços de guerra, são combinados com maestria para explicar o desencadeamento de fatos que levaram à criação do SESP no Brasil.

No Capítulo 2, intitulado E o Brasil Continuava a Ser um 'Imenso Hospital', descrevem-se dois momentos chaves anteriores às primeiras ações do SESP no Brasil. Primeiramente, a negociação das bases militares no Brasil e seus percalços e contradições justamente num governo marcado pelo nacionalismo e pela declarada simpatia à Alemanha. Em segundo lugar, as primeiras pesquisas sobre as condições nosológicas do Nordeste, realizadas pelo exército dos Estados Unidos já em 1941, antecedendo as ações do SESP no Brasil, com a intenção de detectar as doenças que constituiriam maior risco às suas tropas. Pode-se observar pelo relato do Capítulo 2 que, se por um lado os relatórios elaborados eram tendenciosos em considerar apenas as doenças que ameaçariam soldados norte-americanos, por outro transcenderam seu objetivo militar ao proverem uma visão bastante concreta da gravidade da situação da saúde no país que, por sua vez, indicava caminhos para a execução de políticas preventivas.

A Parte II, intitulada Combatendo Nazistas e Mosquitos é composta por quatro capítulos. O Capítulo 3 intitula-se O Controle da Malária nas Bases Militares Norte-Americanas no Brasil. Partindo da constatação de que a malária foi o principal problema sanitário enfrentado por tropas norte-americanas nos diversos continentes durante a Segunda Guerra Mundial, descrevem-se as atividades do SESP, isoladamente ou em parceria com outras instituições brasileiras, para o controle da malária nas três maiores bases militares norte-americanas do Brasil, localizadas nas cidades de Belém, Recife e Natal. A opção por abordar as três maiores bases indica a necessidade, reconhecida pelo autor, de pesquisas historiográficas futuras nas demais bases.

No Capítulo 4, intitulado A Outra Face da Guerra: A 'Batalha da Borracha' e o Programa da Amazônia, observa-se de forma mais enfática a defesa do argumento de que as políticas desenvolvidas pelo SESP na região amazônica coincidiam com o projeto do governo Vargas de construção do Estado e da Nação. Para tanto, descreve-se como os norte-americanos chegaram à conclusão de que para aumentar a produção de borracha necessária como matéria-prima para a indústria bélica norte-americana, havia uma carência de mão-de-obra e esta, por sua vez, dependia de medidas sanitárias adequadas. Sendo a malária a principal ameaça identificada nas pesquisas realizadas pelos norte-americanos, as prioridades do SESP tornaram-se as mesmas já identificadas por competências sanitárias do governo brasileiro desde o início do século XX: combater a malária para explorar a produção de borracha e abrir estradas de ferro para integrar o país. Nesse sentido, as políticas de controle da malária no Programa da Amazônia – implementadas em três etapas, quais sejam o controle emergencial da malária por meio da atebrina, a pesquisa científica de vetores e epidemiologia, e o controle da malária a longo prazo – vieram a estabelecer uma importante rede de unidades sanitárias naquela região, servindo, assim, como um "instrumento de expansão da autoridade pública, mesmo quando a agência esteve orientada para atender os objetivos militares dos norte-americanos" (p. 126).

O Capítulo 5, intitulado Organizando o Trabalho: O Exército de 'soldados da borracha', aborda a carência de mão-de-obra na Amazônia e a conseqüente iniciativa do Programa Migração do SESP – subsidiado pelos Estados Unidos –, em parceria com o Departamento Nacional de Imigração do Brasil (DNI), formalizado em dezembro de 1942. A descrição relata os inúmeros avanços e retrocessos desse programa até sua extinção total com a proximidade do fim da Segunda Guerra Mundial em 1944. Dentre as razões para retrocessos do programa durante sua implementação, descrevem-se problemas de ordem burocrática, a disparidade do perfil qualitativo e quantitativo dos migrantes, os meios e condições precários de transporte destes migrantes até o vale amazônico, maximizados com a ameaça de submarinos alemães na costa brasileira, e as inúmeras doenças que os afetavam dadas as condições de alimentação, transporte e higiene nos alojamentos em que ficavam rumo à Amazônia.

O Capítulo 6, intitulado Minerais para a Guerra: Os Programas do Rio Doce e da Mica, avança na descrição de dois outros programas com fins bélicos iniciados no Brasil no âmbito dos Acordos de Washington, também apoiados pelo SESP, para a extração do minério de ferro – Programa Rio Doce – e do mica e quartzo – Programa do Mica. Tais quais o Programa Amazônico, observa-se que esses dois Programas contaram com o suporte de saneamento do SESP. Porém, somente no Programa Rio Doce tal suporte transcendeu os objetivos bélicos e gerou uma infra-estrutura sanitária importante para a região, posteriormente incorporada aos governos municipais por meio da criação de autarquias municipais para geri-las. Já o Programa do Mica, mesmo tendo expandido até o Estado de Goiás, teve um caráter mais emergencial e, dessa forma, não gerou resultados significativos para a melhoria das condições sanitárias ou de infra-estrutura das regiões onde foi implantado.

A terceira e última parte de Políticas Internacionais de Saúde na Era Vargas: O Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960 intitula-se Construindo Saúde Pública e é composta por três capítulos. No Capítulo 7, O SESP e o IAIA no Pós-Guerra: Estratégias e Transformações, descreve-se o processo que vai do hiato político em que o IAIA, e por conseqüência o SESP, encontravam-se num breve, mas intenso, período entre o final da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, quando pairavam dúvidas entre os líderes norte-americanos sobre a continuidade destas iniciativas na América, até o momento em que o IAIA, em função de três eventos cruciais – o reconhecimento do grande êxito registrado na experiência do SESP no Brasil, o início da chamada Guerra Fria, e a nova mentalidade do desenvolvimento internacional – consolida-se ao ser reconhecido como um instrumento poderoso da política externa norte-americana, tornando-se o modelo da nova concepção dos Estados Unidos de cooperação técnica internacional, expressa no Ponto IV do discurso de posse do Presidente Harry Truman em 1949. Com isso, fica registrada a consolidação e ampliação gradual das atividades do SESP no Brasil, garantindo existência até 1960, quando o mesmo se converte na Fundação Serviço Especial de Saúde (FSESP), a qual passou para a responsabilidade do Ministério da Saúde e perdurou até 1991.

No Capítulo 8, Construindo a Administração Sanitária no Brasil, demonstra-se como o SESP se reestruturou e redefiniu suas atividades, partindo de uma ênfase originalmente centrada no saneamento ambiental e controle da malária em áreas produtoras de matérias-primas estratégicas para os Estados Unidos, rumo ao novo objetivo de construção de uma administração sanitária integrada. Reforça-se a noção de que não houve modelo importado de políticas sanitárias dos Estados Unidos reproduzido no Brasil; pelo contrário, argumenta-se que "a diversidade cultural e política local, além da tradição sanitária brasileira, determinou uma transação de mão dupla" (p. 222). Descrevem-se, ainda, de forma didática, os quatro pilares de sustentação do novo projeto de saúde pública do SESP no Brasil: capacitação de pessoal de saúde; educação sanitária; estabelecimento de uma rede horizontal integrada de unidades de saúde; e expansão desta rede pelos departamentos estaduais de saúde.

No Capítulo 9, Os Modelos Horizontal Integrado e Vertical: Colaboração na Expansão do Poder Público, analisam-se, de um lado, as convergências e complementaridades técnicas existentes entre dois modelos co-existentes de administração sanitária na Era Vargas: o modelo horizontal propugnado pelo SESP e o modelo vertical, propugnado pelo então Ministro da Saúde, Gustavo Capanema. De outro lado, em contraposição, descrevem-se as divergências e distensões entre duas concepções distintas de administração sanitária que, de fato, marcaram todo o século XX e, mais pontualmente, a atuação do SESP no Brasil durante toda a década de 1950: a que defendia a melhoria das condições sanitárias para a melhoria da saúde e da economia, e a que defendia o desenvolvimento econômico para a melhoria das condições sanitárias do país. Destacam-se indicativos de que a partir de meados da década de 1950, no segundo governo Vargas, a segunda passa a ocupar lugar de destaque, exercendo influência nos governos posteriores do Brasil.

Inquestionavelmente, Políticas Internacionais de Saúde na Era Vargas: O Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960 é uma obra de referência obrigatória aos leitores e pesquisadores interessados na evolução das políticas de saúde pública no Brasil do século XX, de uma perspectiva nacional e, principalmente, internacional. De fato, além de abordar um assunto reconhecidamente pouco explorado até o momento, cria a possibilidade de um novo olhar sobre uma iniciativa de cooperação internacional pioneira e polêmica na conjuntura do maior conflito internacional registrado no século XX. Muito além disso, explora teorias e variáveis de análise que possibilitam melhor compreender o paradoxo da conjugação entre interesses nacionais e internacionais no âmbito da cooperação internacional, bem como os benefícios de um conflito internacional para as economias de países periféricos, temas das Relações Internacionais ainda bastante atuais e intrigantes.

Os leitores, porém, devem estar atentos para evitar, ao final da leitura, uma supervalorização do papel do SESP na integração de políticas sanitárias do Brasil da época. O próprio autor destaca, em alguns momentos do texto, a capacidade já instalada de recursos humanos e instituições de saúde existentes no Brasil à época. Além disso, mesmo considerando que as instituições internacionais interagiram com as nacionais, "moldando e negociando" com base em seus interesses, o fato é que havia, sim, um grande desequilíbrio de forças determinado por uma ação predominantemente unilateral: o estabelecimento de uma agência internacional, com elevado grau de autonomia e independência, dentro do governo federal brasileiro. Nota-se, assim, um desequilíbrio no balanço das relações entre Estados Unidos e Brasil, restando a este último apenas manobrar com o que lhe restou. Parece sensato, portanto, analisar a interação entre interesses norte-americanos e brasileiros considerando a situação extrema da ameaça de um conflito internacional e da aparente inevitabilidade da ação norte-americana em nosso país.

A própria presença do SESP – e posteriormente da FSESP – na estrutura do MES por um total de 48 anos mereceria maior análise. O fato de o SESP constituir-se em um apêndice implantado na estrutura do MES por dezoito anos não recebe a devida atenção, já que o foco está nas políticas sanitárias do SESP no período, e não em sua aceitação no âmbito daquele Ministério. Por isso, seria interessante ler relatos das percepções acerca do SESP entre burocratas e profissionais da saúde atuando no Ministério no período em questão. Certamente tais relatos identificariam potenciais efeitos perniciosos dessa implantação para as políticas sanitárias do Brasil emanadas do Ministério, tais como desequilíbrios em hierarquias, perda de autoridade, desconfiança, e talvez até mesmo desmotivação.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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