RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Maria Ligia de Oliveira Barbosa

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. mligia@ifcs.ufrj.br

 

 

A CIÊNCIA COMO PROFISSÃO: MÉDICOS, BACHARÉIS E CIENTISTAS NO BRASIL (1895-1935). Sá DM. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 216 pp. (Coleção História e Saúde).

ISBN: 85-7541-077-6

O livro A Ciência como Profissão: Médicos, Bacharéis e Cientistas no Brasil (1895-1935) tem uma primeira qualidade, que se desdobra em várias outras: uma escrita clara e bem elaborada, capaz de desenhar uma problemática atraente e agradável, característica não muito comum aos trabalhos científicos, como bem mostra a autora. Junte-se a isso o fato de que este livro traz à baila uma temática importante no processo de constituição da modernidade no Brasil: as bases da formação de uma comunidade científica orientada por parâmetros que se estabeleciam como dominantes nos países mais avançados.

Mas como se conta essa história? Qual é exatamente a história a ser contada? Começando pela primeira pergunta, o como, encontra-se, no primeiro capítulo, uma rica discussão da historiografia da ciência e, subordinada a ela, de uma forma um tanto truncada, da sociologia da ciência, ou, pelo menos, de uma versão dela que a autora por vezes chama de "análise institucional". A perspectiva apresentada tem o mérito, inegável, de chamar a atenção para alguns equívocos históricos resultantes de abordagens tão marcadamente paulistas que acabam deixando de lado fatos relevantes, como a criação da primeira universidade no Brasil, em 1920, no Rio de Janeiro. Entretanto, a insistência em "inverter a tradicional causalidade sociológica contexto/produção de textos", em vez de levar a uma "reflexão pluricausal", cria dificuldades para realizar a proposição ampla: "compreender como os cientistas brasileiros das primeiras décadas do século XX, ao informar os traços e perfis que reconheciam então em si mesmos, estavam escrevendo contra os padrões estabelecidos, idealizando na verdade uma nova identidade e um novo sentido para seu mundo". A apresentação dos discursos é extremamente bem feita, mas alguns leitores podem ficar desapontados pela ausência de uma descrição mais trabalhada dos "traços e perfis" objetivos desses atores.

Quanto à segunda questão: qual é a história contada? Na verdade, tem-se aqui uma "história da corte brasileira" em período de mudança política e social (a virada do século XIX ao XX), vista particularmente pelo ângulo das percepções distintas do que seria o verdadeiro trabalho científico, da transformação do sentido que se atribuía à cultura e da representação que se fazia, em nosso país, do que deveria ser o "homem culto". As facetas distintas desse "homem culto" são evidenciadas nos embates entre os antiquados bacharéis com sua vocação literária, pomposa e retórica, e os novos cientistas, distantes da linguagem do "belo" para tentar chegar ao "racional". Assim, assistimos a disputas (verbais, ou no máximo, por cargos...) algumas vezes ferozes, nas quais, aparentemente, mais que desenvolver aquilo que já foi chamado de "saberes modernos", tratava-se de denegrir as formas antigas do pensamento "enciclopédico", considerado então um empecilho ao progresso que a ciência prometia.

No segundo capítulo, a autora mostra que aquilo que outrora se constituíra em motivo de orgulho, nossa glória intelectual, nossos autores e oradores donos de amplos (mesmo que pouco profundos) conhecimentos sobre o mundo, passam a ser objeto de chacota, de crítica desdenhosa por parte da "sociedade culta da capital federal". Os intelectuais (uma lista imensa de possibilidades: "doutores, cronistas, bacharéis, parlamentares, poetas, publicistas, declamadores, médicos, letristas, escritores, conferencistas, acadêmicos, filólogos, romancistas, artistas, oradores, polemistas, professores, prosadores, polígrafos, sábios ou homens de ciências, conhecedores de várias línguas, líricos") eram pessoas bem nascidas, formalmente educadas e passíveis de classificação tanto como "homens de letras" ("enciclopédicos e poliglotas, seu delicado espírito fora educado pela literatura") quanto como "homens de ciências" ("porque por elas ilustrados").

No quadro da sociedade do século XIX, dominava uma cultura "auditiva" na qual a difusão do conhecimento se fazia fundamentalmente de forma oral, por meio de conferências, tribunas parlamentares, lições, memórias. Perfeitamente adaptados a ela, nossos intelectuais de outrora expressavam também uma representação tradicional do mundo onde o título de doutor transfigurava-se numa série de privilégios sociais. E, nesse ponto, surge uma indagação que perpassa todo o livro, ainda que não se explicite como tal: quais seriam os elementos propriamente sociais que poderiam distinguir aqueles que eram chamados de intelectuais ou literatos daqueles que ficaram conhecidos como cientistas? Pela forma da narrativa, fica difícil distinguir características específicas de um e outro grupo, de forma a explicar sua diferenciação. É interessante observar que a perspectiva que os intelectuais generalistas, tradicionais, tinham do significado e do lugar social do seu trabalho, o critério de legitimação das suas atividades, não se distancia demais, e muito menos se opõe àquele dos cientistas: um certo senso de missão, fundado no domínio do conhecimento (generalista, entre os intelectuais, especializado, entre os cientistas). E quando se combina essa perspectiva com a idéia de que aos doutores cabiam inúmeros privilégios, chega-se a outra das indagações que o livro suscita: a proposta inovadora dos cientistas representava uma crítica objetiva ao tradicionalismo dos bacharéis? Avançaria essa proposta para além da especialização, redefinindo o conteúdo do mérito acadêmico? Não há indícios de uma resposta positiva. Ao contrário: se a crítica aos bacharéis se aprofunda (no capítulo 3, são expostas as agruras por que passaram os literatos na tentativa de se estabelecer como grupo profissional especializado e bem definido) os cientistas não se constrangem por buscar as glórias tradicionais, como o pertencimento à Academia Brasileira de Letras! Nesse ponto, insinua-se com maior força, uma problemática de natureza, talvez, um tanto excessivamente teórica e que já se mostrara no primeiro capítulo: ao escolher tratar as idéias ou os textos como possíveis criadores de novas situações históricas, por atraente que possa parecer tal procedimento metodológico, corre-se o risco de perder capacidade explicativa. E é exatamente o que acontece aqui: além das preferências pessoais ou intenções, o que poderia explicar a diferenciação no interior de um corpo de intelectuais cujas trajetórias individuais tinham muito mais a juntá-los que a separá-los? E, ao tratar do processo de atribuição de um novo sentido a um determinado tipo de atividade, ela mesma tomando novas facetas, a autora nos brinda com um belíssimo material (textos e discursos) que provoca questões, centrais para a explicação do desenvolvimento de um grupo profissional, mas que são deixadas de lado pela reduzida atenção dada aos atores e agentes responsáveis não só pelo discurso, mas também pela inauguração de novas práticas sociais.

O capítulo 4 avança na caracterização do debate que se estabeleceu na tentativa de criticar o bacharelismo e, ao mesmo tempo, enaltecer e reforçar a especialização do conhecimento, que avançava a passos largos – no exterior. Esse debate era ainda marcado pela oralidade e pelas mesmas – ou quase – tribunas do século anterior.

O panorama internacional, objeto do capítulo 5, mostrava então um conjunto de modelos ou paradigmas que eram, ao mesmo tempo, exemplo a seguir e parâmetro embrionário das formas, cada vez mais necessárias, da padronização da linguagem científica. A tendência à internacionalização das práticas científicas, que acontecia mesmo no Brasil e contava com a participação ativa dos nossos compatriotas, foi um recurso social importante para os cientistas brasileiros, na busca da afirmação do seu lugar como profissionais da ciência.

O sexto capítulo finaliza o livro mostrando os documentos e discursos que foram instrumentos da luta dos novos cientistas no processo de estabelecimento de uma legitimidade para sua existência como grupo social, na sua busca pelo reconhecimento social de suas atividades. Como não poderia deixar de ser, essa legitimidade constrói-se sobre as mesmas bases das formas anteriores de dominação no campo intelectual, ajuntando diferenças de substância, é claro, mas mantendo as formas institucionais. É importante destacar isso: as instâncias de consagração social permaneciam as mesmas: academias, institutos, sociedades literárias e científicas, participação no debate político. Cabe observar que as formas institucionais novas são apenas mencionadas, aparecendo como fruto deste trabalho de instituição que foi, na verdade, realizado pelo conjunto dos cientistas participantes dos embates públicos do início do século XX. Assim, é citada a criação das universidades no formato moderno e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por exemplo. No entanto, a obra peca por omissão ao não mencionar a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), resultado do mesmo esforço e incluindo personagens importantes tanto na área das ciências biológicas como das exatas, além de educadores.

Essa questão traz de volta a classificação feita deste livro como uma "história da corte": trata-se de um belo trabalho, que lida com o aparecimento de um corpo profissional de cientistas, ou melhor, com o desenvolvimento de um conjunto de idéias que geram condições favoráveis a este processo. Aqui, repete-se a observação feita em relação à proposta teórica, que acaba reduzindo, pelo menos parcialmente, o alcance do estudo ao escolher tratar dos discursos e idéias, deixando de lado seus autores. Mas a essa questão se ajunta uma outra: são raras as menções ao trabalho científico na área de engenharia, por exemplo. Mesmo dos profissionais que atuavam na "corte". E mais raras ainda são as menções a profissionais de outros estados (só alguns poucos casos em São Paulo). Com isso, o estudo restringe a noção de "cientista" não só a uma única região geográfica, como também a uma única área do conhecimento, considerando apenas os expoentes das ciências biológicas no Rio de Janeiro.

Mas, desse ponto de vista, talvez a omissão mais importante seja outra: para a discussão do desenvolvimento das idéias de cientificidade e especialização do trabalho científico, não há qualquer alusão ao livro essencial de José Murilo de Carvalho sobre a Escola de Minas de Ouro Preto. Não se trata de cobrar a presença de um autor, bastante, e merecidamente, citado ao longo do texto. Na verdade, trata-se de indicar que a contribuição dessa instituição teria sido decisiva para o entendimento do processo de constituição da profissão científica no nosso país, tanto do ponto de vista da internacionalização deste campo, visível na formação, qualidade e atuação do corpo docente daquela instituição, quanto do ponto de vista da especialização do trabalho em ciência, bem clara na criação dos seus departamentos e na organização do currículo e das atividades de formação.

O livro A Ciência como Profissão: Médicos, Bacharéis e Cientistas no Brasil (1895-1935) percorre inúmeros e bem elaborados caminhos para tratar do seu tema. Nesse percurso permanece o problema da definição, da construção social de um ator coletivo, de um grupo profissional, pois vemos apenas a nebulosa de idéias que contribuiu para isso, mas desconhecemos os sóis e planetas que originaram essas idéias, os atores ou agentes que se denominavam cientistas. Como já foi bem demonstrado pela sociologia, um nome coletivo raras vezes é apenas um nome. Em geral, um nome esconde atrás de si uma gama de pessoas e atividades, um conjunto de modos de agir e de pensar particulares, uma instituição, no sentido sociológico do termo. Ainda assim, no conjunto, trata-se de um livro excelente, bem escrito e com um profundo trabalho de pesquisa documental. É louvável também pela visão crítica que tem da historiografia, tão bem delineada no primeiro capítulo. Os pontos sobre os quais se argüi representam uma espécie de homenagem (à moda sociológica, é bom dizer) que tenta, a partir de um texto provocativo e estimulante, inferir algumas questões contextuais!

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br