REVISÃO REVIEW

 

Triagem e intervenção breve em pacientes alcoolizados atendidos na emergência: perspectivas e desafios

 

Screening and brief intervention for alcoholic patients treated at emergency rooms: prospects and challenges

 

 

Maria Luiza SegattoI; Ilana PinskyII; Ronaldo LaranjeiraII; Fabiana Faria RezendeI; Thaís dos Reis VilelaI

IPrograma de Atenção à Pessoa com Dependência Química, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil
IIDepartamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar os princípios gerais, conceitos e principais elementos da intervenção breve, com uma revisão da literatura sobre sua aplicação em pacientes alcoolizados atendidos na emergência. Aborda a aplicabilidade da triagem como primeiro passo para o processo da intervenção breve e a utilização de instrumentos padronizados e validados que proporcionam informações úteis para um feedback consistente. Finalmente, destaca os desafios associados com a triagem nas salas de emergência como falta de tempo, formação inadequada dos profissionais, medo de incomodar o paciente e crença de que os alcoolistas não respondem às intervenções. Enfatiza-se, contudo, a importância da Intervenção Breve na emergência, que é viável e eficaz e a necessidade de pesquisas para determinar os ajustamentos dos profissionais e dos serviços de saúde.

Alcoolismo; Triagem; Serviços Médicos de Emergência; Aconselhamento


ABSTRACT

The purpose of this article was to present the general principles, concepts, and main elements of brief intervention, with a literature review on its use for alcoholic patients treated at emergency rooms. It also presents the applicability of screening as a first step to the brief intervention process and the use of validated standard instruments that allow useful information for consistent feedback. Finally, it highlights the challenges associated with screening in emergency rooms due to insufficient time, inadequate professional training, fear of annoying the patient, and common beliefs that alcoholics do not respond to such interventions. Meanwhile, it emphasizes the relevancy of brief emergency intervention, which is both feasible and efficient, and the need for research to define the relevant adjustments by professionals and the health care system.

Alcoholism; Triage; Emergency Medical Services; Counseling


 

 

Introdução

O consumo de substâncias psicoativas e as farmacodependências representam um importante fator de risco para os indivíduos e as sociedades em todo o mundo. O relatório sobre a saúde no Mundo de 2002 indicou que 8,9% da carga global das doenças resultam do consumo dessas substâncias. O mesmo relatório mostrou que em 2000, o tabaco representou 4,1%, o álcool 4% e as drogas ilícitas 0,8% da carga global das doenças 1. Contudo, os resultados sobre a carga global das doenças indicam que a maior parte dos problemas de saúde no mundo é em decorrência de substâncias lícitas (álcool, tabaco) e não das ilícitas (cocaína, maconha, heroína, dentre outras).

Entre os dez principais fatores de risco, em termos da carga das doenças evitáveis, o tabaco era o quarto e o álcool quinto, em 2000, e continuam no topo da lista das previsões para 2010 e 2020.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que haja aproximadamente 2 bilhões de pessoas em todo o mundo que consomem bebidas alcoólicas e 76,3 milhões apresentam algum tipo de desordem por causa do uso do álcool. Os índices de mortalidade e morbidades associadas a tal consumo são consideráveis em todas as partes do mundo. O álcool causa 1,8 milhão de mortes (3,2% do total) e uma perda de 58,3 milhões (4% do total) dos anos de inabilidade ajustados à vida (DALY) 1.

Na Europa, o consumo do álcool foi responsável por 55 mil mortes na faixa etária entre 15-29 anos em 1999 2. Estima-se que 46% das mortes por acidentes de trânsito, suicídio, homicídio e outros tipos de violência intra e interpessoal são atribuídos ao consumo de álcool 3.

Em 1992, um estudo multicêntrico brasileiro 4 mostrou prevalências do uso de álcool entre 7,6 e 9,2%, no entanto em 2001, um abrangente estudo nacional registrou taxa de 11,2% de dependentes de álcool na população geral do Brasil 5. Outra pesquisa realizada no país 6 mostra prevalência de 12,4% entre pacientes hospitalares.

 

Emergência e álcool

Os problemas relacionados ao uso de álcool são significativos nos hospitais gerais e especialmente na emergência, sejam os bebedores de risco, nocivos ou dependentes 7,8,9. Números expressivos de atendimentos, direta ou indiretamente, são realizados, ora pelas causas externas "intencionais" (lesões auto e heteroinfligidas), ora "não intencionais" (acidentes de trânsito e outros tipos de acidente), ou outros eventos clínicos, mas que requerem o cuidado hospitalar 10,11,12.

Nos últimos vinte anos, diversos estudos investigaram o consumo do álcool e suas conseqüências nos serviços de emergência 9,13,14,15,16,17,18. Estes estudos evidenciam a associação de álcool e emergência e demonstram sua relevância em todo o mundo: Estados Unidos 19,20,21,22,23, México 24,25,26, Canadá 27,28, Inglaterra 11,12,29, Escócia 30, Austrália 31,32, Taiwan 33 e Nova Zelândia 34,35.

A prevalência do uso de álcool representa uma parcela substancial dos pacientes atendidos na emergência. Estima-se que 110 milhões de visitas a estes serviços nos Estados Unidos a cada ano sejam relacionados ao abuso do álcool, sendo 24 a 31% de todos os pacientes tratados na emergência e 50% dos ferimentos graves (isto é, pacientes que requerem a admissão no hospital, geralmente numa unidade de cuidado intensivo) 36.

O impacto do abuso de bebidas alcoólicas, problemas associados e sintomas da dependência em pacientes admitidos na emergência também foram verificados em 15 estudos realizados em sete países numa metanálise. Concluiu-se que as variáveis sócio-culturais, quantidade e freqüência de consumo são fatores que antecedem a relação álcool-ferimento 37.

No Brasil, estudos em emergência são limitados e a maioria é focada no consumo de álcool; no entanto eles confirmam a associação entre acidentes e agressões e alcoolemia positiva 38,39.

 

Emergência e intervenção breve

O beber excessivo conduz claramente muitos pacientes à emergência com problemas de saúde física e mental. As repercussões dos transtornos decorrentes do uso de álcool (compreendendo abuso e dependência) são bem conhecidas e descritas na literatura. As conseqüências podem ser de ordem psíquica (como ansiedade, depressão, violência e suicídio), orgânica (cardiopatias, neuropatias, doenças hepáticas e neoplasias, dentre outras) e sócio-econômica 40,41.

O principal objetivo da intervenção breve é reduzir o risco de danos ocasionados pelo consumo de substâncias psicoativas e com isso reduzir a possibilidade do aparecimento de problemas relacionados ao consumo de tais substâncias. Estas demandam um tempo conciso e por isso podem ser utilizadas para complementar a rotina dos atendimentos nos serviços de saúde, promover a motivação para mudança e auxiliar o paciente na tomada de decisões 42.

Estratégia específica de intervenção com dependentes de álcool e outras drogas têm apresentado índices de eficácia, seja para reduzir o consumo, seja para motivar a abstinência, ou facilitar o encaminhamento para tratamento especializado, amenizando os problemas sociais e custos associados 43.

De Micheli et al. 44, em um estudo para verificar a efetividade da intervenção breve nos serviços de saúde direcionado aos jovens e adolescentes, concluíram que uma sessão de intervenção breve foi suficiente para reduzir a prevalência e a intensidade dos comportamentos negativos relacionados ao consumo de drogas em adolescentes.

Outro estudo examinou quinze modalidades de tratamento psicossocial e revelou que as mais eficazes são as terapias cognitivas comportamentais que incluem treinamento de habilidades sociais, reforço comunitário e terapia familiar 45. Além disso, as intervenções breves realizadas diretamente na emergência ou em unidades de atendimento de trauma demonstraram eficácia.

O relatório publicado por Chafetz et al. 46 demonstrou que a intervenção poderia motivar pacientes alcoólico-dependentes para iniciar o tratamento. Esses investigadores relataram que 65% dos pacientes com dependência do álcool que receberam a intervenção, orientações e encaminhamentos para tratamento especializado na emergência obtiveram respostas satisfatórias, comparada com os 5,4% do grupo-controle, que recebeu apenas orientações.

Um grande número de experimentos controlados com intervenções breves em serviços de saúde foi realizado 47,48,49,50,51,52 e mostrou que, em comparação com os controles, os bebedores excessivos reduziram o consumo do álcool em até 20% 53.

No Brasil, um estudo foi realizado em 1988 por Masur et al. 54 com o objetivo de testar a efetividade da intervenção breve no tratamento da dependência de substâncias psicoativas. Comparando essa técnica com a psicoterapia de grupo, de enfoque psicodinâmico, os resultados mostraram que, sob alguns aspectos, a intervenção breve apresentou melhores resultados, sendo uma alternativa viável na abordagem de álcool e drogas.

Embora um número de estudos avalie subseqüentemente a eficácia da intervenção breve na emergência, é difícil compará-los devido ao perfil da amostra, tipos de intervenções (uma ou mais sessões) e limitações metodológicas 36. Somente quatro estudos, nesta revisão de literatura, analisaram a eficácia da intervenção breve em pacientes na emergência, de acordo com padrões científicos de aleatoriedade e existência de grupo-controle, como descrito na Tabela 1.

A intervenção breve é um enfoque de terapia de tempo limitado, com estratégia de aconselhamento centrada no paciente, focando mudanças de conduta e aumento de adesão. O primeiro impacto das intervenções breves é motivacional, isto é, desencadear a decisão e o comprometimento com a mudança 55.

A motivação é um processo dinâmico, vale dizer, é um estado de prontidão ou disposição para mudança, que pode variar de tempos em tempos ou de uma situação para outra; é um estado interno, mas pode ser influenciado por fatores externos 56.

Prochaska & DiClemente 57 estabeleceram a existência de estágios de mudança que nos permitem avaliar o estado motivacional do paciente. São eles:

• Pré-contemplação: o paciente apresenta pouca ou nenhuma preocupação com os problemas associados ao uso de drogas ou desejo de modificar comportamentos. Nesta fase é possível auxiliá-lo na avaliação dos problemas associados à adição;

• Contemplação: o paciente se preocupa com os problemas relacionados ao uso de drogas, mas não apresenta um plano de mudança. É o início da conscientização e da busca de maiores informações para compreender sobre os problemas decorrentes, mas não se engajou num plano de recuperação;

• Preparação: o paciente apresenta preocupação, estando apto para modificar seus comportamentos. Possui plano de ação, embora não o coloque em prática;

• Determinação: o paciente está determinado, ou seja, tomou uma atitude de mudança;

• Ação: o paciente coloca em prática os planos para modificar comportamentos, mesmo que tenha dificuldades de alcançar o objetivo desejado, a abstinência;

• Manutenção: o paciente alcança os objetivos traçados, adquire novos comportamentos, novas atitudes e assume a responsabilidade pelo tratamento.

As fases acima identificam o estágio em que se encontra o paciente permitindo-nos direcionar e/ou personalizar as intervenções. Seis elementos são propostos para a intervenção breve 58, utilizando-se do acróstico transposto para o português, "ADERIR": Auto-eficácia, Devolução, Empatia, Responsabilidade, Inventário e Recomendações.

Estes seis elementos, manejados em períodos breves de aconselhamento parecem ser o alicerce das intervenções motivacionais que trabalham os seguintes aspectos:

• Devolução: proporcionar oportunidades de reflexão sobre sua situação no momento e motivá-lo para a mudança por meio da avaliação sobre o seu estado atual, os problemas clínicos, psíquicos e as conseqüências do consumo de álcool;

• Responsabilidade: este elemento enfatiza a responsabilidade do paciente no processo de mudança. O princípio é que ninguém poderá mudar seu hábito se ele não quiser. O que vai fazer com as informações, orientações e estratégias de mudança é uma decisão pessoal;

• Recomendações: baseiam-se em conselhos claros, advertências, encaminhamentos e orientações quanto ao tratamento e cuidados primários que podem levar o paciente a abandonar os comportamentos aditivos;

• Inventário: consiste em oferecer aos pacientes uma variedade de estratégias alternativas para modificação do seu comportamento-problema, e ele fará sua escolha pessoal;

• Empatia: mesmo quando os pacientes são "confrontados", com feedback ou recebem conselhos diretos, isso pode ser feito de maneira altamente empática. A empatia do terapeuta é um forte determinante da motivação e da mudança do paciente;

• Auto-eficácia: É o reforço da auto-estima, da esperança e do otimismo do paciente. Refere-se à crença de uma pessoa em sua capacidade de realizar e ter êxito em uma tarefa. Desta forma, a meta é persuadir o paciente para que ele se sinta capaz de fazer uma mudança bem sucedida na área que apresenta problemas;

A aplicação de questionários para avaliar e oferecer feedback personalizado deve mensurar os seguintes aspectos: quantidade e freqüência do uso de álcool, sinais e sintomas da síndrome da dependência (estreitamento do repertório, saliência do beber, tolerância, síndrome de abstinência, percepção subjetiva da compulsão de usar, alívio ou evitação dos sintomas da síndrome da abstinência com o consumo do álcool e reinstalação da doença), dependência física e emocional, conseqüências e riscos do uso do álcool na vida.

Para realizar a entrevista motivacional é necessário que se identifiquem os diferentes estágios motivacionais do paciente 56, o que implicará um gerenciamento de caso e definição de estratégias específicas de tratamento, considerando os cinco princípios gerais: (i) expressar empatia; (ii) desenvolver a discrepância; (iii) evitar a argumentação; (iv) trabalhar a resistência; e (v) promover a auto-eficácia.

 

Aplicabilidade da triagem em pacientes atendidos na emergência

A triagem é o primeiro passo para o processo da intervenção breve. Consiste em uma simples forma de identificar as pessoas cujo consumo de álcool pode prover risco à saúde, assim como para aqueles que estão experimentando problemas relacionados ao álcool, incluindo a dependência 59.

A triagem proporciona informação ao profissional de saúde para desenvolver um plano de intervenção e aos pacientes, um feedback que pode ser utilizado para motivá-los na mudança de hábitos. Recomenda-se a utilização de um instrumento padronizado e validado 59.

Degutis 20 demonstrou que a aplicação de questionários para triagem que medem a quantidade e freqüência do uso de álcool é viável nos serviços de emergência. O AUDIT (Questionário de Identificação de Transtornos pelo Consumo de Álcool) e o CAGE (Cut Down/Annoyed/Guilty/Eye-opener Questionnaire) são exemplos de instrumentos para triagem.

O AUDIT possui as seguintes vantagens: curto, fácil de utilizar, flexível, proporciona as informações úteis para que seja provido o feedback. É consistente com as informações da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – 10ª Revisão (CID-10) de consumo e dependência de álcool, centrado no consumo recente. É um instrumento validado em muitos países e disponível em muitos idiomas 59.

O AUDIT contém dez perguntas. Os três primeiros itens medem a quantidade e freqüência de consumo habitual e ocasional de álcool. As três perguntas seguintes se referem à ocorrência de possíveis sintomas de dependência. Os quatro últimos itens avaliam os problemas recentes e passados associados ao consumo de álcool 59.

Um estudo com jovens adultos com idade entre 18 e 39 anos nas salas de emergência verificou a eficácia da intervenção e triagem no local 60. Nessa pesquisa, 87% dos pacientes atendidos na sala de emergência consentiram em se submeter à triagem. Destes, 43% apresentaram problemas com álcool segundo a escala AUDIT. A alta prevalência de problemas relacionados ao álcool neste estudo indicou a aplicabilidade da utilização de instrumentos para triagem e intervenção.

O CAGE é também um instrumento para rastreamento da dependência do álcool. Assim como o AUDIT, o CAGE não faz o diagnóstico, mas aponta os prováveis casos de dependência. Tem a vantagem de ser de fácil e de rápida aplicação porque é constituído por apenas quatro questões 61,62.

 

Desafios associados com a triagem em salas de emergência

Algumas barreiras foram apontadas pelos profissionais da atenção primária para a realização de triagem e aconselhamento aos pacientes em relação ao consumo de álcool 59. Considera-se que essas dificuldades também ocorrem nos serviços de emergência. Entre elas podem ser citadas: falta de tempo; formação acadêmica insuficiente; medo de incomodar o paciente; crença de que os alcoolistas não respondem às intervenções.

Tempo

Uma preocupação comum dos profissionais de saúde refere-se ao tempo disponível para esse fim. Isto é corroborado pela demanda e urgência no serviço de saúde.

No entanto, a Intervenção Breve é um método que pode ser administrado no curso de uma rotina sem requerer um tempo significativo. Pode-se distribuir aos pacientes um teste de autopreenchimento, ou as perguntas também podem integrar-se à entrevista da história clínica. Em qualquer um dos casos, a triagem requer apenas de 2 a 4 minutos. A pontuação e análise do teste se realizam em menos de um minuto 59.

Com os resultados disponíveis, somente uma pequena proporção de pacientes (5-20%) irá requerer a intervenção breve. Para aqueles que o teste foi positivo, a intervenção irá necessitar de menos de cinco minutos na maioria dos casos. Se for necessária uma terapia breve, recomenda-se que seja entregue um folheto de auto-ajuda 59.

A falta de tempo é o maior obstáculo para a triagem e intervenção em salas de emergência. Por conseguinte, autores sugerem que existem intervenções que são adaptadas ao tempo limitado desses locais. Um tipo de intervenção breve pode ser realizado em menos de 10 minutos e já foi desenvolvida e testada por profissionais de emergência 63.

Formação acadêmica insuficiente

Muitos profissionais de saúde sentem que sua formação é insuficiente para a triagem e aconselhamento dos pacientes em relação ao consumo de álcool. Apesar da falta de formação dos profissionais, existem variadas técnicas de triagem e intervenção, que são relativamente simples e que também possibilitam o profissional a utilizá-las em um hospital 59.

Medo de incomodar os pacientes com um assunto sobre álcool

Outro erro freqüente sobre as Intervenções Breves é achar que os pacientes podem irritar-se com as perguntas sobre seu consumo, tentarem negar problemas e resistirem à conduta sobre o consumo. Apesar de existir a negação e a resistência em alguns pacientes, os bebedores de risco raramente não são cooperativos. A experiência obtida por vários estudos demonstra que os pacientes são cooperativos e a maioria deles aprecia que os profissionais de saúde mostrem a interação do álcool com a saúde 59.

O álcool não é um assunto que deva ser tratado em serviços de emergência

Este erro se contradiz pela grande quantidade de evidências que mostram como o consumo implica uma variedade de problemas relacionados com a saúde. Esses problemas não só afetam a saúde dos indivíduos, como também de suas famílias e comunidade. O consumo de álcool pode causar diversas enfermidades, como cirrose hepática, câncer (boca, garganta, mama). Quanto maior o consumo de bebida alcoólica maior risco de danos, acidentes, problemas no trabalho, violência doméstica, afogamento, suicídio e outros problemas sociais e legais. A ingestão de álcool excessiva produz efeitos secundários na saúde e no bem-estar das pessoas em seu círculo social mais próximo 59.

Os alcoolistas não respondem às intervenções

Os profissionais de saúde confundem as diversas formas de consumo excessivo com a dependência de álcool, pois a mesma afeta uma pequena porção da população adulta em muitos países (3-5% nas nações industrializadas), no entanto o consumo de risco é prejudicial e geralmente afeta uma proporção mais ampla (15-40%) 59.

Os objetivos de um programa sistemático de intervenção breve são: identificar e distinguir as pessoas com dependência de álcool das que estão em um estado inicial de sua evolução, para poder auxiliar na prevenção de uma posterior progressão para a dependência; identificar os bebedores de consumo de risco e prejudicial, que podem ter desenvolvido a síndrome da dependência. A intervenção pode prevenir e reduzir os danos graves relacionados com o álcool 59.

Contrariando as crenças populares, a intervenção breve pode ser efetiva em ambas as populações. As pessoas com dependência de álcool respondem bem ao tratamento formal e com o apoio comunitário que proporcionam as associações de auto-ajuda 59.

A diferença entre as pessoas com dependência de álcool e os bebedores de risco e prejudicial é que as primeiras deveriam ser encaminhadas para atenção especializada, já para as segundas devem ser dados conselhos simples e uma terapia breve.

Vários ensaios clínicos demonstram que as intervenções breves reduzem os níveis globais de consumo de álcool, previnem futuros problemas, melhoram a saúde e reduzem os custos sanitários 59.

 

Futuros desafios

Os estudos sugerem que a intervenção breve na emergência é praticável e eficaz, todavia pesquisas são necessárias para determinar a execução e demais ajustamentos referentes às necessidades dos profissionais e dos serviços de saúde na emergência. Tais pesquisas devem contemplar:

• Inclusão dos pacientes com diferentes tipos de traumas físicos, bem como outras queixas clínicas (intoxicações, queimaduras, tentativa de suicídio etc.);

• Estudos baseados em métodos intervencionistas, para detectar discrepâncias entre as amostras (grupo-intervenção e grupo-controle) no que se refere ao consumo do álcool e outras conseqüências negativas;

• Avaliação de componentes específicos da intervenção (por exemplo, critérios da intervenção motivacional e aconselhamento) para determinar o que é mais eficaz na emergência. Tais análises poderiam esclarecer se a eficácia da intervenção depende da prontidão dos pacientes para mudar e/ou da severidade de seu ferimento ou doença, se os "impulsionadores" são benéficos, e o seguimento desses pacientes deve ser conduzido pelo telefone, pessoalmente ou através de visitas domiciliares;

• Estabelecimento do custo-benefício dos vários tipos de intervenção;

• Investigação de métodos para superar obstáculos, dificuldades e inabilidades para executar estas medidas;

• Avaliar a intervenção para grupos culturalmente diversos, que representam uma proporção significativa de pacientes na emergência, mas não foram foco de estudos existentes.

 

Considerações finais

Acredita-se que alguns aspectos em relação à aplicação da intervenção breve em serviços de emergência merecem ser discutidos. Entre eles, destaca-se a necessidade de incorporar na formação dos profissionais de saúde manejo clínico com as substâncias psicoativas e a importância da definição de triagem, intervenção e incorporação das mesmas na rotina da prática clínica mediante envolvimento de toda a equipe de funcionários da emergência (enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais etc.), ou ainda outras alternativas como educadores, métodos computadorizados interativos, ou trabalho voluntariado.

 

Colaboradores

M. L. Segatto participou da concepção, elaboração do estudo, redação, revisão bibliográfica e revisão crítica do artigo. F. F. Rezende e T. R. Vilela participaram da elaboração, redação, revisão bibliográfica e revisão crítica do artigo. I. Pinsky e R. Laranjeira participaram da revisão crítica do artigo.

 

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Correspondencia
M. L. Segatto
Programa de Atenção à Pessoa com Dependência Química
Universidade Federal de Uberlândia
Av. Engenheiro Diniz 523
Uberlândia, MG 38400-462, Brasil
ml.segatto@uol.com.br

Recebido em 22/Mar/2006
Versão final reapresentada em 07/Fev/2007
Aprovado em 15/Fev/2007

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br