DEBATE DEBATE

 

Debate sobre o artigo de Correia et al.

 

Debate on the paper by Correia et al.

 

 

Vera Maria Ribeiro Nogueira

Universidade Católica de Pelotas/Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. vera@mbox1.ufsc.br

 

 

O texto de Correia et al. traz contribuições oportunas ao debate sobre o direito das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. É um tema praticamente ausente na literatura científica atual, embora se situe como um campo que integra, em sua abordagem, diversas áreas do conhecimento devido à interdisciplinaridade exigida em seus tratos teórico e prático, como as autoras corretamente apontam.

Ao discutir o direito à saúde dos internos nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), ressaltam a relação histórica entre assistência psiquiátrica e tratamento das pessoas com transtornos mentais, evidenciando como a exclusão, em nome da atenção asilar, contraria um dos princípios centrais dos direitos humanos – a liberdade. Indicam elementos para a discussão reconstruindo categorias jurídicas relacionadas às penas atribuídas aos loucos-criminosos que, adensadas com o conhecimento psiquiátrico alienista da época, tornaram o antigo manicômio judiciário, posteriormente transformado em HCTP, em uma instituição prisional e, ao mesmo tempo, em uma instituição de custódia. O caráter de custódia revelava uma obrigação legal do Estado no cumprimento da legislação referente ao tratamento asilar do louco criminoso, obscurecendo seu sentido prisional e a ambigüidade derivada da inimputabilidade, da irresponsabilidade, da periculosidade e da medida de segurança 1.

Ainda que atualmente se tenha, no Brasil, um novo quadro paradigmático-conceitual e assistencial – em relação à política de saúde mental, instituída como decorrência da Reforma Psiquiátrica, institucionalizada pela Lei nº. 10.216, que garante direitos humanos aos portadores de transtornos mentais – tais alterações não incidem nos doentes asilados nos HCTP. Eu diria ainda que, em muitos hospitais psiquiátricos, persistem ultrapassadas e nefastas práticas assistenciais, onde o direito do paciente sequer é cogitado.

Em uma abordagem linear, seria factível invocar a legislação inovadora decorrente da Reforma Psiquiátrica e aplicá-la aos HCTP, pois são eminentemente espaços de tratamento psiquiátrico e, portanto, sujeitos à força da lei, uma vez que os seus internos são pessoas com transtornos mentais. Por que isso não ocorre? Entre o texto legal e sua operacionalização efetiva se interpõe, no meu entendimento, o cerne da discussão, que é o tema dos direitos sociais, entre eles o direito à saúde. Não desmerecendo o significado da garantia dos direitos no plano formal, uma valiosa conquista de grupos e segmentos populacionais envolvidos com a questão, o diploma legal, unicamente, não tem força suficiente para sua implementação. Torna-se necessário levar em conta a persistência da disputa entre grupos de interesses distintos que, presentes quando da elaboração e aprovação do texto mencionado, buscam inviabilizar sua operacionalização e extensão para outros espaços terapêuticos, como é o caso dos HCTP.

Nessa linha de argumentação, no sentido de contribuir com as autoras, uma reflexão essencial, que penso ser oportuna apontar, é o trato do direito à saúde como um direito humano, relativo à vida e aos demais direitos formalmente garantidos, e o direito à saúde em sua dimensão social e econômica. Enquanto se discute o direito à saúde como o direito à vida, há uma convergência histórica construída sobre a questão, integrando o rol dos direitos humanos reconhecidos universalmente, sendo inconteste sua validade em tempos atuais. Entretanto, o direito à saúde ao incorporar o conceito ampliado de saúde e a dimensão de sua fruição e garantia efetiva, impõe outra abordagem que pode contribuir para o entendimento tanto da demora na operacionalização da Lei nº. 10.216, como para a materialização das conquistas da Reforma Psiquiátrica também para as pessoas com transtornos mentais autoras de delitos.

Os direitos expressam formas de relação entre grupos e segmentos populacionais com valores, necessidades e interesses distintos, os quais são mediados pelo Estado. São incluídos ou não na agenda pública de acordo com a potencialidade dos sujeitos políticos em aglutinar posições convergentes. Nessa perspectiva os direitos expressam o seu conteúdo relacional, não sendo nômadas na ordem social, ultrapassando, portanto, uma idéia de direito que "apresenta em sua base uma concepção antropológica do sujeito, inevitavelmente liberal: o indivíduo como o primeiro, como o que vem antes de seu ser em sociedade, por isso, portador de direitos" 2. Os direitos são construídos e alterados nos processos societários e constituem-se em expressões valorativas presentes nas regras, hábitos, normas e leis.

Com base na argumentação acima, caberia indagar quais sujeitos políticos representam os interesses dos loucos criminosos, que, de per si, são considerados legalmente como não sujeitos de direitos. Onde se localizam as raízes dos conflitos, ou seja, quais são os interesses acadêmicos, políticos, profissionais, econômicos ou religiosos presentes nessa disputa?

Concluindo, e sem discordar das autoras, manifesto uma preocupação com o cancelamento da inimputabilidade com base nos argumentos anteriormente apresentados sobre a garantia de direitos e suas condicionalidades. Seria o caso de se cancelar definitivamente a inimputabilidade? Não se correria o risco de reduzir a eqüidade no trato das pessoas com transtorno mental autoras de delitos, encarcerando-as junto com delinqüentes comuns ou tornado-as alvo de represálias e maus-tratos?

 

 

1. Peres MFT, Nery Filho A. A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2002; 9:335-55.

2. Liguori G. Estado e "mundialização" em Gramsci. Crítica Marxista 2000; (4-5). http://www.citinv.it/pubblicazioni/CRITICA_MARXISTA (acessado em 10/Out/2000).

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