DEBATE DEBATE

 

As autoras respondem

 

The authors reply

 

 

Ludmila Cerqueira Correia; Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima; Vânia Sampaio Alves

 

 

O exercício do debate em torno do tema dos direitos das pessoas com transtorno mental autoras de delitos se fortalece mediante as contribuições dos debatedores, a quem expressamos nosso reconhecimento pelos valiosos comentários e oportunos questionamentos.

O artigo objetiva discutir o direito à saúde dos internos nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) na perspectiva dos direitos humanos. O assunto agrega temas transversais, quais sejam: o da inimputabilidade penal do louco-criminoso, a sua responsabilidade penal, o papel do Estado na assistência jurídica e de saúde às pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Não pretende o artigo, ao propor a discussão que plasma direito à saúde, direito penal, saúde pública sob o prisma dos direitos humanos, exaurir o tema. Afinal, este assunto remete ao princípio da efetividade dos direitos humanos, seja pelo dinamismo da especialização dos direitos ou pelo mecanismo da operacionalização dos direitos por meio das políticas públicas e da solidariedade social.

A condição de "pessoa vulnerabilizada", expressa tanto nos comentários de Rego quanto nos de Cecílio, caracteriza com fidelidade a situação daquele que sofre de transtorno mental. Para defesa desse grupo vulnerável o Movimento Antimanicomial tem fomentado o debate político, constituindo-se, assim, em um ator social incisivo na luta pela promoção, garantia e defesa dos direitos humanos no Brasil. Tal movimento busca a implementação de políticas sociais que visem não ao mero assistencialismo, mas ao acesso da população brasileira em geral, e das pessoas com transtorno mental em particular, à condição efetiva de cidadãos, chamando atenção para aquelas internadas nos HCTP e reivindicando políticas públicas efetivas, justas e abrangentes nessa área.

A atenção ao louco infrator, segundo Biondi 1, precisa ser reconhecida como um problema de saúde pública. Visando à proteção da pessoa com transtorno mental autora de delito, foi aprovada a Resolução nº. 05, de 4 de maio de 2004, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2, estabelecendo as diretrizes para a adequação das medidas de segurança às disposições da Lei nº. 10.216, de 6 de abril de 2001, reconhecendo a possibilidade de estas pessoas terem acesso aos seus direitos. Entre as diretrizes da resolução destacam-se duas. A primeira enuncia que o tratamento aos portadores de transtornos mentais considerados inimputáveis "visará, como finalidade permanente, à reinserção social do paciente em seu meio tendo como princípios norteadores o respeito aos direitos humanos, a desospitalização e a superação do modelo tutelar". A terceira diretriz, por sua vez, preconiza que o internado deverá "ter acesso ao melhor tratamento consentâneo às suas necessidades, de mesma qualidade e padrão dos oferecidos ao restante da população". Sendo assim, é importante, ainda, que as medidas de segurança, estabelecidas através de decisão judicial, adequem-se aos princípios e diretrizes da política nacional de saúde mental, garantindo-se à pessoa com transtorno mental autora de delito o direito de ser tratada em serviços comunitários de saúde mental.

A nossa argumentação trata de dois aspectos: um relativo à possibilidade de responsabilização penal das pessoas com transtorno mental que cometeram delito e, a segunda, a do direito destas pessoas virem a ser assistidas e tratadas em uma rede de atenção em saúde mental. Essa rede, segundo a política nacional de saúde mental, se constitui de dispositivos diversos que devem proporcionar cuidados de base comunitária, de natureza contínua, integral e humanizada. Respondendo ao questionamento de Diniz, o cuidado da "pessoa ex-sentenciada por transtorno mental" deverá ser proporcionado por meio de uma rede de atenção psicossocial que co-responsabiliza três atores: o Estado, a sociedade e a família. Quanto ao último ator, Gonçalves & Sena 3 estudaram as conseqüências da Reforma Psiquiátrica Brasileira sobre o cuidado do doente mental na família e consideram que o processo de desinstitucionalização do doente mental, quando desacompanhado da constituição da rede de atenção psicossocial, reflete negativamente sobre a família. Nessa perspectiva, para as famílias de pessoas com transtorno mental, a desinstitucionalização só poderá resultar benéfica se houver, concomitantemente, "condições necessárias para viabilizar uma proposta de ressocialização/reabilitação " 3 (p. 50).

A possibilidade da responsabilização criminal das pessoas com transtorno mental autoras de delitos é um debate que compreende o princípio da igualdade como elemento fundamental. Esse princípio, de natureza jus-filosófica, integra a dimensão da unicidade e da singularidade de cada pessoa, sem perder de vista a sua dignidade 4. Enquanto pessoa autora de ato delituoso, este agente estaria passível à mesma responsabilização daqueles em situação similar, no entanto, a condição específica de pessoa com transtorno mental lhe confere o direito a uma assistência especializada. Segundo Barros 5 (p. 129), "a igualdade somente pode colocar-se no campo jurídico quando o sujeito é convocado a responder pelo seu ato no tecido social e inserir a singularidade de seu texto ao responder pelos princípios universais que orientam a convivência na cidade". Para essa autora, a medida jurídica somente atingirá seu fim público se for criada a partir de um projeto que contemple a singularidade de cada caso, com base em princípios universais. E acrescenta que "nos casos dos loucos infratores, veremos que o projeto da modernidade não foi capaz de estender a palavra a todos e condenou-os ao sepulcro do silêncio". Reitera-se, portanto, a necessidade de que essas pessoas respondam pelos seus atos, conjugando responsabilidade com o direito à saúde, compreendido, in casu, enquanto direito à assistência em uma rede de atenção em saúde mental.

A responsabilização não implica desassistência, devendo-se observar as novas diretrizes nacionais no âmbito do sistema penitenciário. O atual Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário 6, instituído pela Portaria Interministerial nº. 1777/2003, de 9 de setembro de 2003, prevê "ações de prevenção dos agravos psicossociais decorrentes do confinamento", e é complementado pela Portaria nº. 268, de 17 de setembro de 2003 7, que determina a criação de serviço de saúde nas unidades prisionais com população acima de 100 pessoas. Ademais, a condição do louco infrator determina que o seu tratamento seja visto como prioridade, garantindo o seu acesso à rede de saúde como para qualquer cidadão, em conformidade com o Princípio da Igualdade 4.

As previsões do Código Penal (art. 99) e da Lei de Execução Penal (art. 3º) asseguram a essas pessoas tratamento e todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Ocorre que, na prática, o que se observa é o atraso nos exames a serem realizados, ambientes insalubres, escassez de profissionais habilitados e pessoas "depositadas" na instituição manicomial judiciária 7. Observa-se, assim, um abismo entre a legislação e as práticas exercidas nos HCTP, que embora sejam instituições hospitalares públicas, não integram o Sistema Único de Saúde (SUS), mas o Sistema Penitenciário. Desse modo, não são regidas pelos princípios previstos na Lei nº. 8.080 e na Lei nº. 8.142, de 1990, que criam e regulamentam o SUS.

Apesar de visar ao tratamento, a estrutura do Manicômio Judiciário é baseada no modelo hospitalocêntrico, desvinculada de um sistema integrado de atenção em saúde mental, sendo o seu mister o da exclusão e segregação das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Nesse sentido, a transformação de tal instituição em "espaço mais justo e humano" é, em si, incoerente. Faz-se necessário oferecer àquelas pessoas tratamento adequado e políticas públicas de inclusão social, como as que vêm sendo adotadas no âmbito do SUS e do novo modelo de atenção em saúde mental, de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica, a partir da Lei nº. 10.216/2001.

Quando se elege uma instituição com características asilares, como é o HCTP, para o tratamento das pessoas com transtorno mental infratoras, verificam-se dificuldades na individualização da medida de segurança, o que inviabiliza a possibilidade de conjugar tratamento e responsabilização. Nessa perspectiva, a reabilitação daquelas pessoas deve estar diretamente relacionada ao conjunto de ações em saúde mental adotadas no país nos últimos anos, o que vem ocorrendo somente em alguns Estados 1.

Os comentários de Dallari sobre a necessidade de ancorar o debate nos princípios da Criminologia contemporânea são acolhidos pelas autoras, que identificam a necessidade do seu oportuno aprofundamento. Em face da relevância e da escassez de produção que integre o Direito e a Saúde Pública na perspectiva dos Direitos Humanos das pessoas com transtorno mental autoras de delitos, as autoras exortam a comunidade científica a novas abordagens do tema, na interface com o Direito Penal, com o Processo Penal propriamente dito e com a Saúde Pública.

 

Referências

1. Biondi E, Fialho J, Kolker T. A reinserção social do portador de transtorno mental infrator: propostas para a adequação das medidas de segurança à Lei 10.216/01. http://www.carceraria.org.br (acessado em 28/Nov/2006).

2. Brasil. Resolução nº. 05, de 4 de maio de 2004, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Dispõe a respeito das Diretrizes para o cumprimento das Medidas de Segurança, adequando-as à previsão contida na Lei nº. 10.216 de 6 de abril de 2001. http://www.justica.gov.br (acessado 28/Nov/2006).

3. Gonçalves AM, Sena RR. A reforma psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos sobre o cuidado com o doente mental na família. Rev Latinoam Enfermagem 2001; 9:48-55.

4. Recaséns-Siches L. Tratado general de filosofia del derecho. 9ª Ed. México DF: Editorial Porrua; 1986.

5. Barros FO. Democracia, liberdade e responsabilidade: o que a loucura ensina sobre as ficções jurídicas. In: Conselho Federal de Psicologia, organizador. Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2003. p. 112-36.

6. Área Técnica de Saúde no Sistema Penitenciário, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.

7. Conselho Federal de Psicologia/Ordem dos Advogados do Brasil. Inspeção nacional de unidades psiquiátricas em prol dos direitos humanos: uma amostra das unidades psiquiátricas brasileiras. Brasília: Conselho Federal de Psicologia/Ordem dos Advogados do Brasil; 2004.

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