RESENHAS BOOK REVIEWS

 

 

Gilberto Hochman

Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil hochman@coc.fiocruz.br

 

 

DISEASE IN THE HISTORY OF MODERN LATIN AMERICA: FROM MALARIA TO AIDS. Armus D, editor. Durham: Duke University Press; 2003. 326 pp.

ISBN: 0-8223-3069-5.

O livro tem como desafio expor o leitor às variadas possibilidades temáticas, contextuais e conceituais de se trabalhar com saúde e doença na América Latina em perspectiva histórica. Reúne 11 ensaios de autores latino-americanos e norte-americanos de variadas filiações institucionais e disciplinares, e em estágios profissionais variados, que discutem as complexas relações entre enfermidade, política, cultura e sociedade em histórias nacionais específicas a partir do final do século XIX e ao longo do século XX.

Desde a década de 1980, historiadores, demógrafos, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos e críticos culturais têm interpelado esse processo a partir de múltiplas filiações intelectuais, buscando na doença e na saúde um modo de organizar aspectos relevantes da experiência histórica dos países de nosso continente. O conjunto de trabalhos selecionados reflete o estado da arte da história e da historiografia da saúde e da doença. Análises que, entre outras, têm permitido descortinar especificidades locais, refletir sobre aspectos comuns, argüir o modo de inserção de cada país nos contextos científicos e médico-sanitários regionais e internacionais, e indagar sobre o lugar da saúde, da medicina e da enfermidade em nossas sociedades e na construção de identidades nacionais, étnicas, raciais, geracionais e de gênero. Essas interrogações, que se refletem no livro, vêm produzindo reavaliações tanto dessa história quanto dos conteúdos da modernidade latino-americana e caribenha e do próprio significado de seu caráter periférico e da própria idéia de periferia.

O capítulo introdutório de Armus nos oferece a melhor e mais exaustiva revisão já publicada da historiografia e da crescente produção histórica sobre enfermidade, medicina e saúde na América Latina. Para essa revisão, organiza e distribui a produção em três estilos narrativos que indicariam os caminhos de uma renovação historiográfica nesse campo: a história biomédica (voltada para processos de produção do conhecimento) que dialoga com a sociologia da ciência, a história da saúde pública (direcionada para as respostas e ações do Estado) que mantém vínculos com a ciência política e a medicina social, e a história sócio-cultural da doença (enfocando as dinâmicas sociais e culturais) que se aproxima dos estudos culturais e da antropologia, sendo este último estilo mais detalhadamente discutido. Ainda que qualquer esforço classificatório possa ser questionável, e o organizador tem claras preferências pela história social e cultural da saúde e doença, o ponto central dessa revisão é que a principal característica da renovação do campo é se afastar de uma história da medicina heróica e positivista e rejeitar determinismos de qualquer espécie, em particular o biológico. A nova perspectiva que emerge, sob a inspiração de Charles Rosenberg, é que a doença existiria a partir de uma espécie de negociação e acordo entre múltiplos atores que resulta em sua nomeação como entidade patológica específica, passível de ser reconhecida e diagnosticada, uma negociação imersa em contextos sociais, culturais e políticos específicos. É mediante esse processo de enquadramento (framing) que as enfermidades assumem o estatuto de entidades conceitualmente específicas e ontologicamente reais.

Os trabalhos reunidos no livro incorporam de modo bastante diferenciado essa perspectiva e se dedicam a analisar a doença e o processo de medicalização imersos em contextos históricos e cenários nacionais específicos. De certo modo, todos se inscrevem em perspectivas pós-foucaltianas e pós-estruturalistas que possibilitam uma maior flexibilidade na compreensão do papel dos médicos, da medicina e da ciência na sociedade moderna, fugindo de chaves interpretativas de caráter otimista ou pessimista. Sobre o Brasil o livro contém três capítulos, sendo que o único que traz novidades é o de Nancy Stepan que é dedicado às respostas precoces e originais dos serviços sanitários brasileiros à presença da malária na Amazônia entre as décadas de 1900 a 1920. Marília Coutinho discorre sobre as possibilidades da ciência na "periferia" a partir da trajetória da tripanossomíase americana a partir de sua descoberta em 1909 por Carlos Chagas. Ainda sobre o Brasil, Patrick Larvie discute as reações sociais e governamentais à epidemia de AIDS/HIV nas décadas de 1980 e 1990, a partir de suas relações com idéias sobre a modernização do país e sobre a sexualidade brasileira, tema recorrente da antropologia brasileira nas duas últimas décadas.

O tema de Marcos Cueto é a epidemia de cólera em 1991 no Peru como reveladora do descompromisso do Estado para com a saúde das populações, das percepções sociais sobre a doença e dos preconceitos contra a pobreza e contra os pobres. A lepra como problema na formação do Estado Nacional na Colômbia e as conseqüências em termos de estigmatização dos doentes, dos pobres e do próprio país é analisada por Diana Obregón. Em seu estudo sobre um manicômio na Bolívia entre 1935 e 1950, Ann Zulawski indica como as hierarquias sociais, étnicas e de gênero existentes na sociedade se reproduziam no tratamento psiquiátrico e na organização da instituição, ao mesmo tempo em que eram tencionadas por processos políticos mais amplos.

Três ensaios dedicam-se ao México, com ênfase no período revolucionário e dois sobre a Argentina. A tensa relação entre a agenda sanitária da Fundação Rockefeller e as políticas sanitárias no México revolucionário é abordada por Anne-Emanuelle Birn, com foco nas ações de combate à ancilostomíase. Os impactos das campanhas governamentais nas transformações das percepções sobre saúde, risco e contágio em torno da sífilis na sociedade mexicana do final do século XIX e primeiras décadas do XX são abordados no ensaio de Katherine Elaine Bliss. O ensaio de Ann S. Blum é sobre os esforços e os obstáculos para se erradicar o hospitalismo na Cidade do México na primeira metade do século XX, a partir da análise das concepções médicas e políticas dos programas governamentais voltados para a infância. A medicalização do comportamento e do corpo feminino e o diagnóstico de uma epidemia de histeria na Argentina em fins do século XIX são os temas de Gabriela Nouzeilles. A partir do tango – letras, dança e experiência social e cultura, Diego Armus articula tuberculose como problema sanitário, relações de gênero e as possibilidades de mobilidade social revelando um quadro complexo sobre a vida na Buenos Aires da primeira metade do século XX.

O processo coletivo de atribuição de sentido à doença e ao adoecimento tem claras e profundas intersecções com a história da América Latina moderna e são bem exemplificadas nos ensaios do livro. Epidemias, endemias, doenças infecto-contagiosas e crônicas e síndromes estão entrelaçadas com processos históricos amplos, tais como nacionalismo, imperialismo, construção de Estado, hierarquias sociais, relações de gênero, conflitos raciais, políticas públicas e identidades sexuais. Podem ser expressões metafóricas ou concretas as causas ou mesmo as conseqüências desses processos. São componentes ativos da construção simbólica e material do Estado e da nação na América Latina.

Assim, ainda que toda coletânea apresente desigualdades entre os capítulos, a boa qualidade dos ensaios juntamente com a reunião de diversas abordagens e de variações contextuais e temáticas torna o livro de Armus uma excelente porta de entrada aos interessados nos temas da história da doença e da história da América Latina, e uma possível agenda de pesquisa para este campo emergente.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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